Coluna do Anderson Schreiber

De São Conrado para o STF: uma nota sobre a liberdade de expressão

Crimes contra a honra não deveriam mais existir. São vestígios históricos de uma legislação ultrapassada

fundo nacional para a ciência
Ministro Nunes Marques / Crédito: Marcos Oliveira/Agência Senado

O ministro Nunes Marques, do Supremo Tribunal Federal (STF), solicitou à Procuradoria-Geral da República (PGR) a abertura de investigação contra o colunista e professor da USP Conrado Hübner Mendes por crimes contra a honra. A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) emitiu nota afirmando que Nunes Marques está errado. A Associação dos Juízes Federais do Brasil emitiu nota afirmando que Conrado Hübner está errado. Faltou uma nota afirmando que estão errados os crimes contra a honra.

Crimes contra a honra não deveriam mais existir. São vestígios históricos de uma legislação ultrapassada, que considerava que a honra de um cavalheiro valia mais que a liberdade do plebeu que o ofendia. Encarcerar alguém por injúria, calúnia ou difamação, como recomenda a letra do Código Penal brasileiro, em seus artigos 138 a 140, ofenderia não apenas a Constituição da República, mas os mais basilares sentimentos de justiça. Nem é isso que se espera, a rigor, quando se processa alguém por crimes contra a honra no Brasil. A invocação destes tipos penais tem servido, nas últimas décadas, mais ao propósito de intimidar e ameaçar que propriamente a obter algum resultado prático.

Na maioria das vezes, os crimes contra honra são instrumentos a serviço do “overreacting”. É sintomático que sejam manejados frequentemente por “vítimas” mais poderosas que seus supostos ofensores. Jornalistas, por exemplo, tornaram-se uma espécie de alvo preferencial desta prática.

O processo criminal, independentemente do seu desfecho, produz um transtorno tão desproporcional que faz qualquer testemunha ter saudades dos tempos em que esse tipo de pendenga se resolvia por meio do duelo – método bem mais igualitário, embora excessivamente definitivo.

Processar criminalmente alguém por crimes contra a honra tem, além de tudo, essa consequência evidente: a providência é tão desmedida que atrai toda simpatia para o acusado, quando não o converte em mártir ou o santifica. São Conrado, vale lembrar, é expressão que designa não apenas o bispo alemão Conrado de Constança, canonizado em 1123, mas também o bairro do Rio de Janeiro que exprime, talvez de modo mais intenso que qualquer outro, o choque entre extremos, confrontando, em menos de três quilômetros de extensão, a realidade dura da maior favela do país com a vida glamorosa de quem circula entre condomínios de luxo, clube de golfe e um nada módico fashion mall. Os textos de Conrado Hübner são exatamente assim: promovem uma colisão entre extremos, ao confrontar aquilo que se espera das instituições brasileiras com a realidade do seu funcionamento cotidiano.

Seu frasismo mordaz, que encontrou no Twitter sua quintessência, desvela apenas a face mais publicitária de uma proposta genuína e inédita na academia brasileira: um constitucionalismo realista, que, longe das românticas promessas de porvir que marcaram a produção pós-redemocratização, cobra incisivamente uma tomada de atitude em relação ao que estamos deixando de ser, no todo ou em parte, aqui e agora.

Enquanto muitos constitucionalistas sonham com uma cadeira no Supremo, Conrado Hübner sonha com outro Supremo – e isso por si só, concorde ou não o seu leitor, já é motivo suficiente para lê-lo e ouvi-lo.

Há mais razões, porém: a crítica de Conrado Hübner desempenha um papel fundamental na sociedade brasileira ao incentivar a avaliação e o controle permanente dos atos praticados pelas chamadas autoridades judiciais, que “se acostumaram com o tratamento excessivamente deferente que recebiam na esfera pública”, como destacou Daniel Sarmento em texto publicado no JOTA.[1] Sarmento, ele próprio um luminar do constitucionalismo, qualificou Conrado Hübner como o “mais importante e corajoso crítico das instituições do nosso sistema de justiça, notadamente do STF. É um intelectual público no sentido mais profundo dessa expressão, que busca ‘falar a verdade ao poder’.

Li atentamente o texto de Conrado Hübner que lhe rendeu o pedido de abertura de processo criminal pela prática de crimes contra a honra. Vi uma crítica contundente, com expressões duras, mas que não transbordaram, em nenhum momento, do seu específico objeto de estudo, que é o funcionamento das instituições brasileiras e o modo como seus integrantes exercem seu papel institucional. Sua crítica restringe-se à atuação de um magistrado enquanto tal, ou seja, aos atos que praticou em julgamentos específicos. E assim ocorre em outros tantos dos seus textos e tweets.

Compreendo, porém, que algum destinatário dos seus comentários possa eventualmente discordar, sentindo-se ofendido ou injustamente ultrajado. Nessa hipótese, o destinatário tem o direito de rebater. Tem até, no extremo, o direito de ajuizar uma ação de reparação pelos danos morais que acredite ter sofrido, pagando as necessárias custas judiciais e correndo o risco de perder a demanda, caso em que arcaria, ainda, com os ônus da sucumbência. Seria tudo parte do jogo democrático. O que parece descambar do tabuleiro é cogitar seriamente da prática de crime, movimentando órgãos públicos em virtude desta cogitação.

Que alguém possa ser criminalmente processado por uma crítica, ainda que dura, a um ministro da Suprema Corte no exercício de sua função soa como um anacronismo injustificável. Que possa ser condenado soa como antítese da democracia. É nisto, aliás, que o episódio difere inteiramente de outros em que se dirigiram ameaças à integridade física de um integrante do Supremo Tribunal Federal. Avaliar criticamente a atuação de um ministro do STF é um exercício democrático. Pretender calá-lo ou agredi-lo é exatamente o oposto.


[1] Daniel Sarmento, A perseguição contra Conrado Hübner Mendes e os riscos à democracia, publicado no JOTA em 26.7.2021.

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