Força política em expansão
Embora o dito popular diga que “religião e política não se misturam”, as estatísticas mostram o contrário. Assim como os militares, os evangélicos foram decisivos para a vitória de Jair Bolsonaro em 2018. O então candidato conseguiu estabelecer um relacionamento muito próximo com o eleitorado evangélico e especialmente com seus líderes que, por sua vez, ganharam muito desde o início de seu mandato como presidente. Incluindo a ascensão na pauta de costumes e um assento na mais alta corte do país. Mas será que a religião importará nas eleições deste ano? Será que as pesquisas eleitorais estão conseguindo capturar adequadamente essa dimensão?
Os números mostram que o segmento evangélico é uma força política em processo de expansão, enquanto o católico em retração. Em perspectiva, os levantamentos dos últimos censos demográficos sinalizam uma grande transformação em um país onde mais de 90% da população se identificava como católica ante os 5,8% que se declaravam como evangélicos em 1970.
Os números estão defasados
Qual vai ser o peso do eleitorado católico e evangélico nas próximas eleições? No último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2010, a população adepta do catolicismo havia diminuído para 64,6% da população (cerca de 123,3 milhões de pessoas), enquanto que a população evangélica saltou para 22,2% do total (cerca de 42,3 milhões de pessoas). Apenas no período compreendido entre 1991 e 2010, o aumento em número absoluto de evangélicos foi de 16 milhões de adeptos, uma média de 4.383 fiéis por dia.
Mas estes números estão provavelmente muito defasados e não refletem fielmente o corte religioso na população atual. Uma pesquisa de 2020 do instituto Datafolha mostrou que o percentual de evangélicos pode estar próximo a 31% do total da população, enquanto o percentual de católicos é próximo a 50% da população total.
A transformação no perfil religioso, e consequentemente de crenças e valores dos brasileiros, tem reflexos profundos na cultura, na economia e também na política. Não apenas na ocupação de postos chave na Esplanada dos Ministérios durante os governos, mas também sobre o vetor de temas que os eleitores terão que avaliar na hora de decidir o voto.
Especialmente entre os evangélicos, existe uma variedade de denominações com orientações e agendas distintas entre si. No entanto, de maneira geral, essas igrejas têm preferências eleitorais significativamente diversas dos católicos, particularmente nos grandes centros urbanos e periferias das regiões metropolitanas no país.
Ironicamente, o dado sobre a adesão religiosa – tão relevante para entender as escolhas do eleitor – está sendo desconsiderado pelos institutos de pesquisa. O problema é mais complexo do que simplesmente decidir incluir ou não essa informação no desenho amostral da pesquisa, porque as informações sobre a proporção entre católicos e evangélicos estão desatualizadas até que o novo Censo demográfico esteja disponível.
Religião é variável dependente nas pesquisas
Uma análise exclusiva das descrições metodológicas em 251 pesquisas sobre a corrida presidencial, registradas até o momento no site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mostrou que não existe nenhuma empresa utilizando cotas para religiões, nem usando o recorte religioso como variável de pós-estratificação (técnica usada para correções de diferenças entre a amostra esperada e a obtida na pesquisa).
Ou seja, se a informação sobre a adesão religiosa dos eleitores não é usada como referência para o balanceamento das amostras, ela entra nas sondagens eleitorais como variável dependente. O que não é de todo ruim, pois é possível avaliar quão próximo a amostra de respondentes obtida em um levantamento específico está da população teórica ou esperada.
Razão entre evangélicos e católicos
Calculei a razão entre evangélicos e católicos (REC) nas últimas sondagens eleitorais divulgadas por uma pequena amostra de institutos. O resultado detalhado na figura abaixo mostra uma fonte de potencial ruído (ainda que aleatório) em alguns destes levantamentos de opinião. Entre uma pesquisa e outra, é possível observar diferenças substantivas do valor REC.
Por exemplo, uma comparação deste indicador calculado para as últimas duas pesquisas realizadas pela consultoria Futura revela uma diferença de 11 pontos entre uma pesquisa e outra. No levantamento realizado em maio, a participação de católicos foi de 55% e a de evangélicos, 26%, resultando em um valor REC de 47%. Já no levantamento realizado em junho, a participação de católicos foi de 52% e a de evangélicos, 30%, resultando em um valor REC de 58%.
O principal dilema nesta análise é como avaliar o REC calculado. Como não existe dado atualizado sobre o corte de religião no país, comparar o REC obtido na pesquisa com a razão entre evangélicos e católicos no último Censo – estatística oficial – levaria a um erro de percepção.
Aceitando os números estimados pela pesquisa Datafolha, realizada em 2020 com o objetivo de medir o perfil religioso no país, o valor teórico para REC seria de 62 pontos. Outra maneira de comparar, também considerado um “chute educado”, seria usar a própria média do REC como valor esperado: 56 pontos. Quanto mais distante o valor REC estiver do valor teórico (abaixo ou acima), mais desproporcional é a amostra em relação aos dois grupos majoritários no país.
Por que isso importa?
Já se tornou senso comum que a polarização adquiriu maior dimensão e importância nas eleições brasileiras, transcendendo as tradicionais categorias demográficas. A última eleição mostrou que mais do que candidatos e partidos, os brasileiros estão cada vez mais divididos também pelo corte religioso, por valores morais e costumes. Neste ano, em se mantendo a mesma separação retratada em várias pesquisas eleitorais, a clivagem das preferências por Lula e Bolsonaro entre católicos e evangélicos será ainda mais acentuada do que há quatro anos.
Como um apaixonado pelos números das pesquisas eleitorais, minha principal preocupação é com a qualidade das pesquisas, em especial, pela seleção adequada da amostra populacional. Às vezes não adianta usarmos os métodos mais sofisticados se o básico, o arroz com feijão de uma amostra representativa, não é atendido. É certo que, sem dados atualizados do Censo, qualquer tentativa de estabelecer um número ideal para a razão entre evangélicos e católicos não passa de um exercício matemático abstrato.
Além do problema real em mãos, existe também o problema simbólico que o ruído nas pesquisas pode causar. Em tese, aceitando as melhores estimativas, os evangélicos representam cerca de 30% da população total, mas quando o foco são as eleições é provável que recebam 85% das manchetes de jornais e revistas no país.
Lula x Bolsonaro entre católicos e evangélicos
O gráfico abaixo apresenta a média mensal da intenção de votos para Lula e Bolsonaro entre católicos e evangélicos. Considerando a evolução das estimativas, Lula abre 21 pontos de vantagem sobre Bolsonaro no segmento católico no mês de julho: 49% a 28%. De janeiro a julho, Lula cresceu de 46% para 49%, mas Bolsonaro cresceu mais: 6 pontos, saindo de 22% para 28%.
Por sua vez, Bolsonaro tem uma vantagem de 15 pontos percentuais sobre Lula no segmento evangélico: 47% a 32%. Essa diferença já foi bem menor no início do ano, quando Bolsonaro recebia o apoio de 39% contra 36% de Lula entre os evangélicos.
Como o JOTA procura reduzir o ruído em sinais de pesquisas?
Uma maneira de mitigar as diferenças de uma pesquisa para outra e enfrentar o problema de escassez de evidências (dados muito esparsos no tempo) passa pela construção de modelos probabilísticos, baseados em Processos Gaussianos, para funcionar como um interpolador de dados.
Um interpolador vai sempre prever o valor observado onde existem dados (pesquisas de intenção de votos entre católicos e evangélicos, por exemplo). A parte complicada com a qual o modelo precisa lidar é saber o que prever entre uma sondagem e outra. Teoricamente, a intenção de votar em A ou B não muda bruscamente se outras variáveis explicativas também não mudarem drasticamente. Por exemplo, se observamos Y = 5 quando X = 10; então devemos esperar que Y permaneça próximo de 5 quando a mudança em X for pequena, digamos X = 10,5.
Nessa lógica, qual será a intenção de voto para Bolsonaro (ou Lula) numa pesquisa quando ela entrevistar mais evangélicos (ou católicos) do que o esperado?
O modelo usado para produzir as análises da Balança em 22 calcula diariamente várias estimativas de intenção de voto para cada candidato, em cada segmento de interesse. Quando uma pesquisa é divulgada, o novo dado é comparado com o que o modelo havia projetado anteriormente. A série de dados é então atualizada com a nova evidência sobre a posição do candidato no segmento e novas projeções são realizadas.