Em 2017, o Senado Federal, quando da criação de uma Comissão de Assuntos Econômicos dedicada a avaliar a funcionalidade do sistema tributário nacional, apontou uma série de distorções.
Dentre outras conclusões, consta do relatório final dos trabalhos que(1) “ao contrário do resto do mundo, onde pessoas físicas recorrem à abertura de empresa na tentativa de fuga do elevado Imposto de Renda, no Brasil a preferência é do empregador ao contratar como pessoa jurídica um prestador individual de serviço, em razão do seu elevado custo”.
E continuou afirmando que “neste ponto, é importante ressaltar que não se deve focar apenas nos aspectos arrecadatórios, mas, principalmente, deve-se considerar os potenciais efeitos sobre a eficiência da economia. Uma eventual alteração na tributação de dividendos, por exemplo, sem uma avaliação a respeito da tributação incidente sobre as pessoas jurídicas pode se converter em apenas um novo aumento de carga tributária, que já é elevada no Brasil.”
É nesta toada que propostas de reforma da legislação tributária vêm sendo alvo de intensos debates nos últimos anos. Neste momento, o protagonismo está a cargo do projeto de lei nº 2.337 de 2021, que implementa uma série de alterações na legislação do imposto de renda.
Já tive a oportunidade de escrever e tecer severas críticas ao referido projeto(2), mas neste artigo devo abordar o que pode ser encarado, talvez, como o principal problema no referido projeto de lei: a falta do consentimento social!
É fato que, em nossa sociedade pós-moderna, o direito vem sofrendo grande pressão. As novas realidades sociais encurralam o direito. A sociedade é plural e impõe severos desafios à democracia. Não é possível identificar com facilidade o “topo” ou os lugares comuns em uma sociedade tão diferente. E esta constatação, de igual forma, dificulta a construção e a manutenção de uma unidade no sistema jurídico.
Impõe-se a todos, mas em especial ao poder estatal, a observância da Constituição Federal. As ações do Estado devem sempre ser motivadas em valores constitucionais.
Estes valores constitucionais posicionam-se como os verdadeiros pontos comuns no atual sistema jurídico, especialmente por seus fundamentos, objetivos e princípios republicanos que, não à toa, ocupam espaço nos primeiros artigos da Carta Constitucional de 1988.
Quer-se dizer que, constatadas disfuncionalidades no sistema tributário ou, no que interessa a este artigo, na estrutura da tributação sobre a renda, os poderes da república tem o dever constitucional de agir para a correção de rumos.
Esta correção de rumos deve ter como norte, como já dito, os fundamentos, objetivos e princípios republicanos. É corolário do princípio da eficiência disposto no artigo 37 da Constituição Federal de 1988.
De um lado, se o poder legislativo mantém-se inerte, estará descumprindo o seu papel constitucional, prestigiando regras que ferem os referidos valores constitucionais. Mais do que isso, a inércia legislativa provoca os demais poderes da república a atuarem de forma a suprir-lhe a falta, seja o judiciário legislando pela via da interpretação e o poder executivo legislando por normas infralegais. E ambas as situações respondem pela mais do que perceptível indignação social fulcrada na falta de segurança jurídica, desafiando a legalidade textual ou “não interpretativa” e provocando elevada litigiosidade entre os particulares e o estado. Vira uma espécie de vale-tudo.
É inegável, portanto, que identificadas disfuncionalidades no sistema nasce o dever do legislativo de agir! Todavia, erros na avaliação dos efeitos provocados pela tributação podem causar consequências nefastas, para não dizer trágicas.
A ação de “mudar por mudar” ou para agradar parcela da população com finalidades populistas ou eleitoreiras não representa o cumprimento do dever legislativo. Deve-se sempre modificar o que está errado e que pode produzir melhores resultados. É a busca incessante pela maximização de ganhos e minimização de perdas, em uma relação positiva de custo-benefício. Nesta linha, deve-se preservar a todo custo aquilo que produz resultados positivos, sendo que alterações que piorem os efeitos provocados – sempre à luz dos indicados valores constitucionais – é igualmente indesejável pelo sistema jurídico.
A história nos ensinou que a instituição de tributos exagerados contribuiu para distúrbios sociais, como há poucos meses viu-se na Colômbia, e para guerras históricas, como a revolução francesa, a revolução americana, revolução inglesa e, aqui, a inconfidência mineira.
A aprovação de um projeto de lei que traga mudanças tão significativas à legislação do imposto de renda deve ser precedida de intensos e profundos debates, sempre respaldados em estudos técnicos, simulações e exibição de dados confiáveis, de forma transparente e submetido ao crivo social.
Neste século XXI, temos fenômenos como as redes sociais e a evolução da informação. É retratada por Manuel Castells (3) como uma sociedade em rede da era da informação. Em seu livro, diz que “identifica os traços característicos dos movimentos sociais da sociedade em rede, movimentos que articulam a presença na internet com a presença espontânea nas ruas e praças, movimentos descentralizados, que surgem espontaneamente da indignação contra a injustiça, sem organização partidária e sem liderança centralizada. Seus temas e origens são muito diversos, mas repetem as mesmas formas e em todos eles o espaço de autonomia que a rede representa é essencial.”
A sociedade e os grupos de interesse constroem argumentos e os propagam de uma nova forma, muito mais rápida e vulnerável a manipulações. E isto é um grande perigo à própria democracia, levando-se em conta que a argumentação pode sempre conduzir a conclusão ao interesse de quem interpreta, vale dizer, a mesma história pode ser contada sob diferentes perspectivas.
Como acentuou Ricardo Guibourg, em evento realizado no âmbito do Núcleo de Estudos Fiscais da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas(4) a interpretação principialista e o neoconstitucionalismo permitem que todos possam decidir o que bem entenderem. Parece hábito dizerem que quando querem melhorar o direito, querem tornar a coisa mais justa. E isso não é algo ruim. Como disse Ulpiano, o direito dá a cada um o que é seu, mas não sabemos o que é de cada um. Quando o direito vem explicar, não entendemos e continuamos discutindo. É a dificuldade que temos para prevenir e para curar o que ele chama de “vírus do direito”.
É por tal razão que a identificação de distorções no sistema e das medidas necessárias para afastá-las devem sempre ser precedidas de amplos debates, de modo a buscar um equilíbrio valorativo, mantendo ou alterando, no todo ou em parte, o sistema que se apresenta problemático.
A repulsa social ganha energia quando uma proposta deste jaez é feita por iniciativa de uma das partes que integram a relação jurídica. Foi o caso do projeto de lei 2.337 de 2021, preparado unilateralmente e apresentado sem nenhum debate prévio à Câmara dos Deputados pelo Ministério da Economia, sob a caneta da Receita Federal do Brasil.
O interesse eminentemente arrecadatório do órgão fazendário é uma característica construída a partir de comportamentos reiterados por décadas e difícil de suplantar. Causa justa desconfiança por si só. Pode ser exemplificado pela revelação de Saulo Ramos na obra Código da Vida, ao retratar situação por ele testemunhada, na qual funcionários do então Ministério da Fazenda deliberavam a implementação de exigência fiscal sabidamente ilegal ao argumento de que a maioria dos contribuintes não reclamaria e, os que reclamassem em juízo, demorariam cerca de dez anos para receber, adiando o problema para governos posteriores(5).
É preciso construir confiança social e com ela consentir previamente de que propostas de amplas reformas não piorarão a situação econômica, social, política ou jurídica, mas, ao contrário, trarão mais-valia aos fundamentos, objetivos e princípios republicanos.
Deve-se romper a desconfiança de que os representantes do povo, eleitos democraticamente, descolaram da vontade popular a partir do momento em que eleitos, rendendo-se a pressões de partidos políticos e de grupos econômicos que os levaram e os mantêm no poder.
Previne-se, neste extremo, uma indesejável ruptura da legitimidade democrática, o que deve ser combatido a todo custo, em prol da unidade do estado democrático de direito. Não é por demais concluir que o prévio consentimento social legitima a democracia, previne erros, evita conflitos e rupturas institucionais, traz paz social, ordem e progresso. É, portanto, mais do uma recomendação, mas um dever republicano.
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SENADO FEDERAL. Comissão de Assuntos Econômicos. Relatório do Grupo de Trabalho destinado a avaliar a funcionalidade do sistema tributário nacional. Brasília, 2017
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Eduardo. 15 razões contra a reforma do Imposto de Renda. Valor Econômico. Fio da Meada. São Paulo: 25.08.2021. Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/fio-da-meada/post/2021/08/15-razoes-contra-a-reforma-do-imposto-de-renda.ghtml
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CASTELLS, Manuel. A comunicação em rede está revitalizando a democracia. Entrevista por Malu Fontes/Correio da Bahia.Fronteiras do Pensamento: 05.2015. Disponível em: https://www.fronteiras.com/entrevistas/manuel-castells-a-comunicacao-em-rede-esta-revitalizando-a-democracia.
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GUIBOURG, Ricardo. O vírus do direito. Núcleo de Estudos Fiscais, Fundação Getúlio Vargas. Conferência proferida em: 09 jun. 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Gz_tR_JG2Cc.
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RAMOS, Saulo. Código da Vida, São Paulo: Planeta do Brasil, 2007, p. 297.