Pandemia

Covid-19 e a lógica das ações coletivas

Precisamos, mais do nunca, do Estado Coordenador, que coordene interesses individuais

Crédito: Fernando Crispim/Amazônia Real

Todo vilão merece um apelido na história. Átila, rei dos Hunos, foi chamado de o “flagelo de Deus”. Basílio II, líder do Império Bizantino, foi chamado de o “matador de búlgaros”. Maria I, da Inglaterra, foi apelidada de “blood Mary” por tratar com crueldade cristões protestantes. Ivan IV, primeiro Czar e soberano russo, foi chamado de o “terrível.”

O coronavírus não poderia ficar de fora. Ele é, por certo, um vilão à altura. Sua vilania consiste em trazer falência. Nos dois sentidos, sua vilania traz falência dos sistemas de saúde – razão pela qual exige-se da sociedade isolamento social – e sua vilania traz recessão, com possível falência de muitas empresas. Somos uma teia social sensível, somos seres interdependentes e, ao romper essa teia, o vírus nos lembra fatalmente disso.

Extrai-se a partir daí o primeiro ponto a ser abordado sobre os efeitos da Covid-19: temos a clara percepção de que somos interdependentes. Somos um coletivo, que convive com o indivíduo. E, sempre fomos. Nada mudou, apenas ganhamos perspectiva e clareza.

Em Roma, estivemos conectados e coesos. Estávamos juntos. Éramos uma comunidade coesa. O cidadão romano não era parte do povo, ele era o povo na defesa da coisa comum. Não se distinguia o cidadão da coletividade a ele associada, havia uma equivalência conceitual entre povo e Estado.

Por isso, em Roma, não se falava em representação na ação popular, tampouco era um problema o fato de o comando normativo do julgado na ação popular afetar terceiros que não participaram da demanda, ainda que os prejudicasse.

Quando a história é coletiva e impessoal, inexistindo particularidades a serem acomodadas, convivíamos bem com a ideia de ser afetado sem a participação individual.[1]

No período medieval, estivemos juntos e conectados. O indivíduo era vinculado naturalmente a sua comunidade. Vinogradoff dizia que a vida medieval era comunitária na essência.

Tudo que a torna “inconveniente e estranha sob o ponto de vista do ethos individualista, a tornava apropriada para um estado de coisas governado por tendências coletivas” [2].

A distância da autoridade central (rei), a limitação da comunicação, o perigo das estradas no período medieval, tudo favorecia à proximidade geográfica, à cooperação e à socialização. Os bens não eram coletivos, eram individuais, mas havia utilidade na organização comunitária do modo de vida, para facilitação da defesa, por exemplo.

Então, veio o Estado Moderno e, junto com ele, a “individualização em massa”[3]. O Estado não precisa barganhar com grupos, a relação do Estado passa a ser direta com o indivíduo, por meio da norma jurídica.

Tudo o que indivíduo pode apropriar sozinho, bom isso pode ser dele. Se ele não consentiu, ele não está obrigado e mais máximas do individualismo. Enfim, houve pronta valorização da autonomia individual e do ethos individualista.

E, toda discussão sobre o papel do governo e do mercado é um “debate sobre como fazer para que os indivíduos possam perseguir, por si sós, os seus próprios objetivos”.[4]

O coletivo, que já foi refúgio e o local de proteção do indivíduo, ainda sobrevive. Mas, sobrevive meio de escanteio, quase pedindo desculpas por existir.

As ações coletivas, por exemplo, são necessárias, mas junto com elas vem todo um arcabouço teórico para justificar sua existência (representatividade adequada, legitimidade extraordinária, coisa julgada secundum eventum litis e outros institutos).

O coletivo precisa ser justificado atualmente. E, sejamos realistas, mesmo com todo um arcabouço teórico, poucos são os que realmente as aceitam de bom grado.

Até que, agora, a Covid-19 chegou trazendo novidades:

  • O vírus chegou numa sociedade ainda muito individual, nos lembrando, assim como em séculos atrás, que estamos todos juntos e conectados. O indivíduo não consentiu para isso, ele não foi incluído voluntariamente, ele foi tragado para o coletivo (um coletivo adormecido, mas sempre latente);
  • O vírus chegou trazendo falência – principalmente dos sistemas de saúde – e falência é juízo UNIVERSAL, coletivo por excelência. A falência exige rateio igualitário ou, no nosso caso, isolamento social, para que não seja necessário estabelecer “ordem preferencial” de quem vive e de quem morre;
  • O vírus mostrou nossa conexão e, mais do tudo, mostrou nossa interdependência. É curioso que, mesmo isolados e com distanciamento geográfico, estamos conectados.

Estamos conectados, sempre estivemos. Em Roma, no período medieval, e até no Estado liberal e mínimo, estivemos e estamos conectados. Mesmo que o ethos individualista teime em ocultar a nossa face coletiva (que convive com a individual), somos lembrados dela de tempos em tempos, especialmente quando alguma ameaça ou risco surgem

Mas não é tão fácil como parece. Não basta reconhecer nossa conexão e interdependência, para que automaticamente os indivíduos passem a agir voluntariamente na promoção desses interesses comuns ou coletivos. E, não é preciso ir longe para demonstrar isso.

Vemos isso hoje, no combate a pandemia: mesmo cientes da importância do isolamento social, mesmo sabendo que todos ganhariam se houvesse uma cooperação integral dos indivíduos na redução da curva da doença e na preservação do sistema de saúde, muitos são aqueles que não promovem esses interesses e que, por isso, saem deliberadamente do isolamento. A Itália é um fatal e infeliz exemplo disso. Mas, porque isso acontece?

Mancur Olson responde essa pergunta, em 1971, em seu trabalho seminal chamado a “lógica da ação coletiva”. Tomando por base o princípio da maximização da utilidade marginal da economia, ele diz que a cooperação individual ao interesse coletivo falha, porque a consequência da contribuição de cada indivíduo para a promoção do benefício coletivo não exerce “uma distinção noticiável para o grupo como um todo, ou não gera ônus ou recompensa para qualquer membro do grupo visto individualmente”.[5]

O mesmo raciocínio vale no contexto da pandemia. Como a consequência da contribuição individual na esfera coletiva não é notada e como a contribuição individual envolve custos (no caso, a restrição ao direito de ir e vir) sem recompensa pessoal visível, o indivíduo não arca com esse custo pessoal.

Olson denomina essa realidade de grupo latente. São grupos cujos membros não percebem a recompensa individual pela sua ação, tampouco notam a recompensa coletiva, e, por isso, maximizam sua utilidade pela deserção, evitando custo pessoal. O que parecia simples – bastava cooperar – tende a ser fonte de desastre para a esfera agregada.

Para essas hipóteses, o mercado não regula, o mercado falha. São precisos incentivos negativos ou positivos para ação do indivíduo na promoção do interesse coletivo, o qual – diga-se de passagem – ele é parte interessada.

Conclui o autor, então, que como subproduto, emergem instituições cujo objetivo é tornar possível a coordenação desses interesses em prol do bem público ou do bem coletivo, a exemplo do Estado regulador.

O vírus Covid-19 veio nos lembrar que somos comunidade, que temos laços de pertença ao coletivo. Mas, isso não é suficiente. Precisamos, mais do nunca, do Estado Coordenador, que coordene interesses individuais – mesmo que sem perceptível recompensa pessoal ou coletiva – na promoção dos interesses coletivos e do bem comum.

Aqueles que defendem o Estado mínimo, podem continuar assim no futuro. Aqueles que defendem o Estado regulatório, podem continuar assim no futuro. Hoje, no entanto, eu, você e o mercado liberal precisamos de um Estado Coordenador e de um líder Estadista.

Nosso vilão já está pronto para ganhar seu apelido – Covid-19, o isentão – ele mata indiscriminadamente, sem preferencias ou limitações partidárias, com ou sem ideologia.

 


[1] Nesse sentido, conferir: BRUNS, Carl Georg. Le azioni popolari romane per Carlo Giorgio Bruns. Traduzione di Vittorio Scialoja, com prefazione e note del traduttore, in Studio Giuridici I, Roma, 1933, p.179-212; FADDA, Carlo. L’azione popolare: studio di diritto romano ed attuale. Edição reproduzida (1894). Roma: L’erma, 1972 (Studia Juridica XXVI), p.371; CASTELLO, Juliana Justo Botelho. Litigância de massa: as ações coletivas e técnicas de agregação. Estudo comparado ao sistema jurídico estadunidense. Tese de Doutorado (Doutora em Direito Processual Civil). Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Disponível em: <https://teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2137/tde-11022015-074446/publico/Tese_Integral_JulianaJustoBotelhoCastello.pdf>. Acesso em 17 de abril de 2020.

[2] VINOGRADOFF, Sir Paulo. Villainage in England: essays in english mediaeval history. Oxford: Clarendon Press, 1892, p.14).

[3] ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Tradução Vera Ribeiro. Revisão e notas Renato Janine Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994, p.148-149.

[4] SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2019, p. 270.

[5] OLSON, Mancur. The logic off collective action: public goods and theory of groups. 20 ed.  Harvard University Press: Massachusetts, 1999, p. 44.

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