ABDE

Aspectos econômicos da requisição administrativa

Faltam estudos empíricos sobre o impacto das requisições administrativas no mercado

Novo SARS-CoV-2 de Coronavírus Micrografia eletrônica de varredura colorida de uma célula apoptótica (vermelha) infectada com partículas do vírus SARS-COV-2 (amarela), isoladas de uma amostra de paciente. Imagem capturada no NIAID Integrated Research Facility (IRF) em Fort Detrick, Maryland. Crédito: NIAID

Esquecida durante as últimas décadas nas prateleiras da doutrina do direito administrativo, a requisição é um instituto jurídico que, de repente, ganhou enorme notoriedade entre autoridades públicas brasileiras e estrangeiras, em esferas de governo nacionais, regionais e locais. Todas elas encontraram na requisição administrativa uma ferramenta ágil e poderosa para – num passe de mágica – contornar a falta de insumos médico-hospitalares e mesmo a ausência de recursos públicos no orçamento para o combate ao coronavírus.

A ferramenta da requisição popularizou-se depressa. Neste texto, pretendemos analisar alguns aspectos de Law & Economics desse velho instituto jus-administrativo, cujas origens perdem-se entre os conceitos medievais de “jura quaesita” e “jus eminens”, passando pelo princípio franco-revolucionário da “égalité devant les charges publiques”.

A questão, a nosso ver, é que, ao retirar da prateleira da doutrina do direito administrativo o conceito de requisição, muitos agentes públicos esqueceram-se de desempoeirar o instituto antes de utilizá-lo. As antigas “requisições civis e militares” de que pouco falavam os nossos manuais de direito administrativo não conheciam instrumentos hermenêuticos mais complexos e transdisciplinares, hoje à nossa disposição.

Era comum, por exemplo, dizer que a desapropriação era o meio mais radical de intervenção do Estado na propriedade privada, pois transferia definitivamente – mediante prévia e justa indenização – a propriedade para a esfera jurídica estatal. Mas o que vemos hoje? Bens privados consumíveis como EPI’s, medicação e álcool em gel, requisitados pelo ente público sem sequer haver prévia e justa indenização, diante da catástrofe sanitária…

Bom, a constituição dispõe, no art. 5°, XXV1, e no art. 22, III2, sobre a legítima possibilidade de os entes federados requisitarem bens privados em casos de urgência, com posterior e justa indenização. Em alguns outros dispositivos infraconstitucionais, como o art. 15, XIII, da Lei 8.080/903 e o art. 3º, VII, da Lei 13.979/204, regulamentou-se a possibilidade de o Estado requisitar bens e serviços para situação emergencial de saúde. À luz dos dispositivos citados, é possível construir a seguinte matriz:

Para além dessas conclusões preliminares, existem dois pontos importantes que merecem reflexão mais detalhada: um é sobre a eficiência econômica da requisição administrativa de bens; o segundo aspecto cuida da possibilidade de requisição administrativa de serviços profissionais.

Quanto à requisição de bens, vemos hoje que vários entes federados, de modo não coordenado, estão se apressando para utilizar a requisição administrativa. Esquecem, porém, que, se utilizada indiscriminadamente, a requisição termina por extinguir com toda a logística dos insumos (equipamentos de proteção Individual, medicamentos, respiradores etc.) essenciais ao combate da COVID-19. Será que os gestores públicos consideraram que os fornecedores podem deixar de abastecer o mercado para as necessidades futuras? As duas decisões (de gestores e de fornecedores) estão intimamente relacionadas, assim, podemos usar a teoria dos jogos para tentar entender melhor o que ocorrerá ou poderia acontecer num cenário hipótetico.

O modelo teórico tem dois jogadores: o Estado e o fornecedor em posições opostas. O objetivo do primeiro é se abastecer para prestar o serviço público de saúde, enquanto o do segundo é auferir lucro para sobreviver. O ente público começa o jogo e tem basicamente duas estratégias: comprar (sabendo os preços médios praticados) ou requisitar (que pode se desdobrar em 3 situações). O fornecedor tem duas opções: sair do mercado ou reabastecer seu estoque comercial.

Vale salientar que o combate à pandemia perdurará no tempo durante muitas semanas, então podemos considerar este um jogo repetitivo, sendo melhor visualizado no gráfico abaixo5:

A visualização facilita o uso da ferramenta do “backward induction” para resolver o problema. Olhamos de trás pra frente! Se o Estado COMPRA (primeira possibilidade do gráfico acima), a melhor estratégia do fornecedor é se reabastecer, pois irá receber seu lucro todas as vezes que ocorrer o jogo. Caso haja requisição administrativa sem pagamento imediato – identificado como REQUISIÇÃO I – a melhor decisão do comerciante é sair do mercado, para não aumentar seu prejuízo. Se, contudo, o pagamento for imediato mas em valor inferior ao preço de fábrica – a REQUISIÇÃO II na figura – o fornecedor também preferirá sair do mercado, pois ele terá todos os custos de oportunidade, mas não terá o benefício do lucro. Por fim, na REQUISIÇÃO III, o ente público requisita e oferece um preço justo, superior ao valor de fábrica acrescido do custo de oportunidade. Nessa situação, o jogador da iniciativa privada poderia ter interesse em permanecer no mercado e obter N vezes o lucro da operação, a cada nova rodada. Em outras palavras, temos um “equilíbrio de Nash” (situação onde os jogadores não tem estímulo para mudar sua estratégia) que é a compra (pelo Estado) com reabastecimento (do fornecedor).

Todavia, ao contrário de um contrato de uma compra e venda normal, essa requisição tem custos adicionais para o Poder Público, o que a torna sumamente ineficiente: custos administrativos, legais, logísticos e até policiais de ir buscar os estoques requisitados. Isso sem contar o fato de que – sendo uma requisição e não uma compra e venda – não se pode garantir a responsabilidade do fornecedor por defeitos no produto…

Assim, podemos resumir o jogo de forma a afirmar que, se houve a COMPRA, o vendedor dos insumos continuará no mercado, buscando novos caminhos para aumentar a importação ou a produção dos bens necessários para a pandemia. Por outro lado, na maioria das situações em que há REQUISIÇÃO administrativa haverá posterior ineficiência ou irracionalidade. Apenas na última situação da figura (a REQUISIÇÃO III), é que seria possível o fornecedor continuar a abastecer o mercado se sua margem de lucro lhe garantisse o mínimo para ficar no mercado. Essa situação, todavia, é desvantajosa para o próprio Estado. Vale ressaltar que conduta racional do comerciante não é nociva à sociedade, esse ânimo de buscar novos produtos é essencial em uma situação de guerra, como a atual, e para a própria sobrevivência do fornecedor.

O segundo ponto a ser analisado aqui diz respeito à requisição de serviços profissionais médico-sanitários, uma questão administrativo-constitucional, que engendra também uma importante base econômico-filosófica. Será que uma norma infraconstitucional – como o art. 15, XIII, da Lei 8.080/90, o art. 3º, VII, da Lei 13.979/20 e tantas outras normas estaduais ou municipais – poderia restringir um direito fundamental, no caso a liberdade individual, e obrigar um profissional de saúde a oferecer seus serviços compulsoriamente?

À primeira vista, é forçoso reconhecer que a ordem jurídico-constitucional brasileira admite, em nome da supremacia do interesse público, algumas formas legítimas de exercício compulsório de função pública relevante, tais como o serviço militar, os mesários eleitorais e os jurados do tribunal do júri.

O mestre argentino Miguel Santiago Marienhoff, em seu clássico Tratado de Derecho Administrativo, não descarta a possibilidade de requisição de serviços a pessoas físicas: “El cargo público o la función pública no sólo pueden ser ejercidos o desempeñados sobre la base del acuerdo de voluntad de las partes (Administración Pública y administrado), sino también en mérito a una actitud coactiva del Estado sobre el administrado o particular, de cuyo ‘consentimiento’ se prescinde en dicho supuesto” (Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1965, Tomo III B, p. 88, n. 908). E elenca alguns aspectos relativos o regime excepcional dessa requisição administrativa de serviços pessoais: “En sustancia, la obligación que la carga pública o prestación personal obligatoria le impone al administrado implica una restricción a la libertad de éste; por tanto, tal obligación sólo puede resultar de una ley formal, sea ésta del Congreso o de las legislaturas locales. (…) Su duración es temporaria. Debe ser breve, circunstancial, ocasional o accidental. Si así no fuese, el pueblo donde imperase el sistema de la prestación personal obligatoria, permanente o de larga duración, covertiríase en un pueblo de esclavos” (Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1965, Tomo III B, p. 88-89, n. 909).

O francês Pierre Soubelet tem opinião semelhante e a complementa com a distinção entre “réquisition d’emploi des personnes” (“cette réquisition porte directement sur la personne de son destinataire”) e “réquisition de services des personnes” (“cette réquisition affecte la personne du requis non dans son identité mais au regard de ses capacités professionnelles; elle ne porte que sur l’activité et ne concerne qu’indirectement la personne exerçant cette activité”). Em qualquer dos casos “pendant le temps de la réquisition, le requis est devenu agent de l’administration. (…) La réquisition est un acte grave au regard des libertés individuelles et du droit de propriété. Aussi l’exercice de cette prérogative par la puissance publique est-il enserré par des textes précis qui règlent la portée et la durée des réquisition” (Prefets et Requisitions Civiles, in La Revue Administrative, a. 45, n. 267, p. 215).

Assim, embora seja juridicamente viável a requisição de serviço médico-sanitário a um profissional da saúde, há de se observar, em primeiro lugar, a legalidade formal da requisição (não pode ser realizada por mero decreto!), em segundo lugar, o oferecimento de plenas condições de trabalho seguro, sob pena de macular indelevelmente o direito fundamental à vida e à dignidade humana do prestador do serviço, e em terceiro lugar o caráter subsidiário da requisição como “arme d’ultime recours”. A vocação da requisição administrativa é a terapia intensiva, excepcional, radical, e não a do tratamento ordinário, repetitivo e duradouro.

É preciso chamar atenção para esse aspecto temporal de ambas as requisições (de bens e de serviços). A presença de uma urgência generalizada, intensa ou aguda – a urgência imediata -, é uma das notas características fundamentais da requisição administrativa, diferenciando-a de outras modalidades de intervenção do Estado na propriedade, como a desapropriação por exemplo. Utilizá-la num jogo de múltiplas e seguidas jogadas tende a enfraquecê-la.

Por fim, ressaltamos que faltam estudos empíricos sobre o impacto das requisições administrativas no mercado, mas os resultados preliminares (informações colhidas com fornecedores requisitados) demonstram que o modelo teórico é bem robusto para a situação e que esse instituto de direito administrativo não deve ser usado em situações que perduram por muito tempo (jogos repetitivos).

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1 XXV – no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;

2 Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

III – requisições civis e militares, em caso de iminente perigo e em tempo de guerra;

3 Art. 15. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios exercerão, em seu âmbito administrativo, as seguintes atribuições:

XIII – para atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias, a autoridade competente da esfera administrativa correspondente poderá requisitar bens e serviços, tanto de pessoas naturais como de jurídicas, sendo-lhes assegurada justa indenização;

4 Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas:

VII – requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa; e

5 Sabemos que jogos sequenciais são apresentados em sua forma extensiva (como árvore), mas, para facilitar a compreensão dos não acostumados com aquela formatação, preferimos um desenho de mais fácil compreensão.

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