CPC

Citação por edital no processo penal

Uma leitura a partir das disposições do CPC/15

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Prezados leitores do JOTA,

Na coluna desta semana, recebemos nosso amigo Bheron Rocha, defensor público estadual, que nos instigou a debater um tema de intersecção do processo penal com o processo civil, com um texto sobre a citação por edital.

Dessa feita, trazemos algumas reflexões acerca do tema, a partir das ideias organizadas pelo Professor Bheron.

Boa leitura!

Citação por edital no processo penal: uma leitura a partir das disposições do CPC/15

Jorge Bheron Rocha

É comum que os juízes, nos processos penais, determinem a citação do acusado por edital tão logo seja certificado pelo oficial de Justiça que aquele não foi encontrado no endereço fornecido pelo Ministério público na denúncia, decisão esta que desconsidera a evolução das ferramentas de busca hoje disponibilizadas aos magistrados e membros do Ministério Público, quando não se verifica nos autos qualquer tentativa, mínima que seja, de encontrar o réu, para que, de fato e de direito, este possa exercer seu direito ao devido processo legal, contraditório e ampla defesa.

No tocante à citação do réu por edital, sob o regramento do Processo Civil, o juiz pode diligenciar no sentido de requisitar aos órgãos públicos, como Departamentos de Trânsito, Secretarias de Finança ou Caixa Econômica, ou ainda às concessionárias de serviços públicos, como Companhias de distribuição de energia elétrica, operadora de telefonia, entre outras, informações sobre o endereço do réu constantes em seus cadastros. É a regra do § 3º do art. 256 do CPC/15:

Art. 256 (…) § 3o O réu será considerado em local ignorado ou incerto se infrutíferas as tentativas de sua localização, inclusive mediante requisição pelo juízo de informações sobre seu endereço nos cadastros de órgãos públicos ou de concessionárias de serviços públicos

A questão sobre a qual este artigo pretende se debruçar é a de saber se é possível a aplicação desta regra do processo civil ao processo penal, e, caso positivo, sob qual fundamento, notadamente diante do que pode ter sido um silêncio eloquente do art. 15 do CPC, ou seja, uma proposital não referência ao processo penal, uma vez que, constando no anteprojeto da comissão de juristas, o legislador a extirpou em uma das fases da tramitação1.

A citação é o ato pelo qual se dá ciência da existência e do conteúdo do processo ao réu, executado ou interessado, bem como se dá a sua convocação para dele fazer parte e, querendo, se defender. Ela é vital para o pleno exercício do contraditório e da ampla defesa, e está prevista nas Convenções Internacionais de que o Brasil é signatário. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos – Decreto n. 592, de 6 de julho de 1992, assim prescreve:

ARTIGO 14

1. Todas as pessoas são iguais perante os tribunais e as cortes de justiça. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com devidas garantias por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil. A imprensa e o público poderão ser excluídos de parte da totalidade de um julgamento, quer por motivo de moral pública, de ordem pública ou de segurança nacional em uma sociedade democrática, quer quando o interesse da vida privada das Partes o exija, que na medida em que isso seja estritamente necessário na opinião da justiça, em circunstâncias específicas, nas quais a publicidade venha a prejudicar os interesses da justiça; entretanto, qualquer sentença proferida em matéria penal ou civil deverá torna-se pública, a menos que o interesse de menores exija procedimento oposto, ou processo diga respeito à controvérsia matrimoniais ou à tutela de menores.

2. Toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa.

3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualmente, a, pelo menos, as seguintes garantias:

a) De ser informado, sem demora, numa língua que compreenda e de forma minuciosa, da natureza e dos motivos da acusação contra ela formulada;

b) De dispor do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa e a comunicar-se com defensor de sua escolha;

c) De ser julgado sem dilações indevidas;

d) De estar presente no julgamento e de defender-se pessoalmente ou por intermédio de defensor de sua escolha; de ser informado, caso não tenha defensor, do direito que lhe assiste de tê-lo e, sempre que o interesse da justiça assim exija, de ter um defensor designado ex-offício gratuitamente, se não tiver meios para remunerá-lo;

e) De interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusão e de obter o comparecimento eo interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições de que dispõem as de acusação

A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) – Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992, a seu turno, determina:

Artigo 8. Garantias judiciais

1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

  1. a) direito do acusado de ser assistido gratuitamente por tradutor ou intérprete, se não compreender ou não falar o idioma do juízo ou tribunal;

  2. b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;

  3. c) concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa;

  4. d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor;

  5. e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei;

  6. f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos;

O CNJ recomenda que, antes de o magistrado determinar a citação por edital, seja confirmado o endereço ou verificado o paradeiro do réu por meio de convênios disponibilizados pelo Poder Judiciário, como o Infojud (Sistema de Informações do Judiciário) e o Infoseg (Informações de Segurança).

Podemos ver concretamente a observância desta medida no próprio Manual Prático de Rotinas das Varas Criminais e de Execução Penal do CNJ:

2.1.2.3. Requisição de informações, antecedentes e certidões

Rotina:

Deverá a Serventia verificar se o Ministério Público promoveu a juntada

das folhas de:

a) antecedentes da Justiça Federal, Estadual, Institutos de Identificação e

INTERPOL;

b) consulta ao SINIC, INFOSEG e INFOPEN.

Também alguns Tribunais, ao editarem manuais, estabelecem a obrigatoriedade de consulta a banco públicos de dados e de outros meios ao alcance, antes de procederem com a citação por edital. Tomemos como exemplo o Manual Prático de Rotinas das Varas Criminais do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte:

6.3.3.5.

CITAÇÃO POR EDITAL

A citação por edital ocorre quando o acusado não foi encontrado. No entanto, antes de proceder à confecção do edital de citação, deve a Secretaria efetuar busca de novo endereço do acusado nos próprios autos, bem como no SAJ, INFOSEG, Receita Federal e demais meios que estiverem ao seu alcance. Encontrado um endereço diverso daquele em que se tentou citar pessoalmente o acusado, ainda não diligenciado, cumpre à Secretaria expedir novos mandados de citação, tantos quantos forem necessários, com o fim de efetivamente citá-lo. Não havendo novo endereço, deve a Secretaria certificar isso e expedir ofício, por ato ordinatório, para os órgãos responsáveis pelos estabelecimentos penitenciários do Estado, visando descobrir se o acusado se encontra preso em alguma carceragem e, simultaneamente, elaborar o edital de citação. Com a resposta do ofício e sendo encontrado o acusado, deve a Secretaria tomar as providências para a sua citação pessoal.2

Muitas vezes consta nos sistemas ESAJ ou Pje outras ações, cíveis ou criminais, algumas inclusive mais atuais, em que figura pessoa com o mesmo nome do acusado, fato que, por si só, já justificaria uma averiguação para constatar se se trata da mesma pessoa e a obtenção de endereço mais atualizado, inclusive com o contato do advogado que o representa.

Além disso, o Código de Ritos Criminais acolhe a aplicação subsidiária da Legislação Processual Civil, por força do art. 3º daquele Codex:

Art. 3º A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.

O entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal é de que, de fato, o Código de Processo Civil é aplicado subsidiariamente aos feitos criminais.

Na Medida Cautelar no HC 151800/SP, o ministro Marco Aurélio entendeu, ainda sob a égide do CPC/73, que “considerada a falta de previsão legal específica, tem-se a incidência do artigo 297 do Código de Processo Civil, com aplicação subsidiária viabilizada pelo artigo 3º do Código de Processo Penal, a revelar o poder geral de cautela, visando evitar a ocorrência de dano irreparável ou insuficiência de providências diversas.”.

No STJ também inúmeros são os casos de aplicação subsidiária, dos quais trazemos como exemplo a aplicação “da regra contida no artigo 132 do Código de Processo Civil de 1973”3 e do “art. 552, § 1° (…) acerca da antecedência com que devem ser as partes intimadas para a audiência de instrução e julgamento”4.

Certamente se deve diferenciar a aplicação subsidiária da supletiva5. Será caso de aplicação subsidiária quando 1) houver lacuna, ou seja, ausência de regramento específico 2) as normas do Novo CPC se mostrem compatíveis. Deve-se verificar, ademais, se o silêncio normativo não foi escolha do legislador, que deixou a lacuna de forma proposital, pois a “ a analogia é técnica de integração entre normas e não forma de revogação de disposições”6. Assim inexistindo “…norma processual penal, e há a possibilidade, guardada a compatibilidade com o sistema acusatório, de aplicação analógica de norma processual civil. O juiz, assim, para a completude do ordenamento jurídico, procede à utilização da norma processual civil compatível com a situação analisada”7.

Também pode acontecer de a disposição existente no Código de Processo Penal ser incompatível com a Constituição, porquanto o Código de ritos Criminal foi editado sob a égide de outra realidade constitucional, social e cultural. Nestes casos de não recepção, o julgador deve afastar a norma não recepcionada, o que levará a uma lacuna; o segundo passo será preencher essa lacuna com alguma norma processual penal, e, se inexistente tal norma, utilizar uma norma processual civil compatível. Assim, pode ocorrer que a norma processual penal não seja “compatível com o sistema acusatório determinado pela Constituição, devendo o julgador inicialmente afastá-la como não-recepcionada (se anterior a 5 de outubro de 1988) ou como inconstitucional (se posterior à 5 de outubro de 1988), procedendo ao preenchimento da lacuna deixada com a norma processual civil que não se contraponha à natureza de garantia do processo penal”8.

Já a aplicação supletiva se dá na hipótese de disciplinamento incompleto ou deficiente do ordenamento processual penal. Neste sentido:

“As normas do Novo CPC atinentes à fundamentação das sentenças (art. 489) é exemplo claro de aplicação a que se dá quando do disciplinamento incompleto ou deficiente norma processual penal. O CPP indica superficialmente o conteúdo das decisões, mas não o faz com a riqueza de minudências com que trata o NCPC, muito mais condizente com o Princípio da fundamentação das decisões judiciais previsto no art. 93, IX na Constituição de 1988.”9

Se não for o réu citado grande prejuízo pode resultar, tendo em vista que não poderá (a) exercer a autodefesa – a oportunidade de dar sua versão perante a Autoridade Judiciária, mas, e principalmente, ouvir as testemunhas e fornecer elementos necessários e (b) exercer defesa técnica eficiente – o múnus do defensor com eficiência e eficácia, de forma a ferir o art 5º (…) LV que dispõe que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.10

Apesar da jurisprudência profícua do STJ e STF acerca da comunicação entre os sistemas processuais, estes mesmos tribunais ainda não pacificaram no que concerne à ampliação de garantias no processo penal. Veja-se que o STJ tem decisões em ambos os sentidos, apesar de a questão da esgotabilidade de meios de citação se relacionarem muito mais à execução civil, existem decisões paradigmáticas em termos de processo penal, a exemplo do Habeas Corpus nº 50.311/ES ,

“Os autos evidenciam não terem sido esgotados todos os meios à disposição do juízo para, em seguida, proceder à citação editalícia do paciente. Tratando-se, a citação por edital, de medida de exceção, devem ser esgotadas todas as diligências para o fim de ser localizado o réu, sob pena de restar caracterizada nulidade (…) o paciente possuía endereço certo, obteve segunda via de carteira de identidade perante a Secretaria de Segurança Pública do Estado do Espírito Santo já no curso da ação penal, possuía emprego fixo vinculado à Prefeitura de Vitória/ES e conta corrente no Banco do Estado do Espírito Santo – BANESTES (fls. 30, 32 e 34/40). Verifica-se, por conseguinte, não terem sido esgotados os meios possíveis para se encontrar o paciente” 11

Mas também há posicionamentos no sentido inverso, de que bastam que sejam “exauridas todas as possibilidades de localização do recorrente nos endereços constantes dos autos”, sem mais diligências12.

A temática é candente, e, a partir dos fundamentos convencionais, constitucionais e legais aqui expostos, resta claro que a esgotabilidade dos meios para encontrar o réu, antes de se proceder á citação por edital, é medida que se impõe, podendo e devendo ser utilizada subsidiariamente a disposição do art. 256, §3º do Código de Processo Civil ao processo penal.

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1 Art. 14. Na ausência de normas que regulem processos penais, eleitorais, administrativos ou trabalhistas, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletivamente. (http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/496296/000895477.pdf?sequence=1)

2 http://ww4.tjrn.jus.br:8080/sitetj/pages/intranet/manuaisProcedimentos/manual-criminal-parte1-ritoordinario.pdf

3 STJ – AREsp 785707 MG, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior.

4 STJ – HC 109967/RJ, Rel. Min. LAURITA VAZ.

5 Neste mesmo sentido DIDIER, CUNHA e CABRAL no novíssimo Por uma nova teoria dos procedimentos especiais. Salvador: Editora Juspodivm. 2018. p. 92 e ss.

6 ROCHA, Jorge Bheron. Sistemas Processuais: A questão da aplicação supletiva e subsidiária do art. 15 do Novo CPC. In O Novo Código de Processo Civil e a perspectiva da Defensoria Pública. Roger, Franklyn (org) Juspodivm: Salvador. 2017.

7 Ibidem.

8 Ibidem.

9 Ibidem.

10 “O direito à ampla defesa abrange a autodefesa e a defesa técnica. A autodefesa, que pode ser exercida ou não, é consubstanciada em dois direitos, doutrinariamente: o direito de presença e o direito de audiência. O primeiro diz respeito à oportunidade de o acusado tomar posição em relação às provas produzidas e às alegações. O segundo refere-se ao momento do interrogatório, quando o acusado poderá influir sobre o convencimento do julgador.”. QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: (o princípio nemo tentetur se detegere e suas decorrências no processo penal). São Paulo: Saraiva, 2003, p. 74-75 apud VIGARANI, Daniela. Inexigibilidade de produzir prova contra si e o conflito com a busca da verdade real no processo penal (Disponível em http://www.unisul.br/content/navitacontent_/userFiles/File/pagina_dos_cursos/direito_tubarao/monografias_2008a/Daniela_Vigarani.pdf. Acesso em 21/11/2008)

11 Min. Gilson Dipp, DJ 08/5/2006.

12 RHC nº 83.972/PR, Min. Ribeiro Dantas.

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