Processo Civil

Ainda o rol do agravo de instrumento. Agora é restritivo

Talvez tenhamos que sofrer mais para aprender o que diz o art. 1.015 do CPC/15

agravo de instrumento
Crédito: Luiz Silveira/Agência CNJ

Prezados leitores do JOTA,

Anatole France, escritor que ocupou uma cadeira na Academia Francesa de Letras e foi Prêmio Nobel de Literatura em 1921, foi sucinto ao afirmar que “muito aprendeu quem bem conheceu o sofrimento”.

Talvez tenhamos que sofrer mais para aprender o que diz o art. 1.015 do CPC/15, que trata das hipóteses de cabimento do agravo de instrumento.

Em junho de 2017, tivemos a oportunidade de apresentar o debate doutrinário acerca do tema, nesta coluna, afirmando que após a entrada em vigor do CPC/15 acentuou-se o debate sobre a natureza do rol do referido artigo (taxativo, exemplificativo ou taxativo de intepretação extensiva), sobretudo porque a prática diária acendeu luzes sobre o problema, deixando ele de ser meramente teórico, para ocupar espaço nos Tribunais brasileiros[1].

Não demorou e a questão chegou ao Superior Tribunal de Justiça, que, rapidamente, afetou dois recursos especiais, como representativos da controvérsia, para análise perante a Corte Especial do Tribunal[2].

Em julgamento que se estendeu por alguns meses, com 3 pedidos de vista, o órgão máximo da Corte, por sete votos a cinco, decidiu que o rol do artigo 1.015 do Código de Processo Civil de 2015 tem taxatividade mitigada e admite a interposição de agravo de instrumento quando verificada a urgência na situação. Isso significa que foi retomada a ideia do CPC/73, em que havia disposição expressa nesse sentido, e que, portanto, são admitidas outras hipóteses de admissão do recurso que não estão enumeradas no art. 1.015.

A tese vencedora, sustentada pela relatora, foi deduzida no sentido de que “o rol do artigo 1.015 do CPC é de taxatividade mitigada, por isso admite a interposição de agravo de instrumento quando verificada a urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação”[3].

Ainda de acordo com a Min. Nancy Andrighi, “a taxatividade do artigo 1.015 é incapaz de tutelar adequadamente todas as questões em que pronunciamentos judiciais poderão causar sérios prejuízos e que, por isso, deverão ser imediatamente reexaminadas pelo segundo grau de jurisdição”.

Por outro lado, a orientação divergente foi iniciada pela ministra Maria Thereza de Assis Moura, para quem a taxatividade do rol do artigo 1.015 deveria ser mantida. Para ela, foi uma opção do legislador restringir as hipóteses de cabimento do agravo de instrumento e não estaria na alçada do STJ expandir esse leque de opções, sobretudo porque tal modificação deveria ser feita pela via apropriada, do Poder Legislativo[4].

Prevaleceu, contudo, a tese da Ministra relatora. Vale uma informação procedimental importante, que alimenta o sofrimento dos operadores do direito: a Corte Especial é composta de 15 Ministros e apenas 12 votaram nesse caso. Um julgamento com a composição completa da Corte poderia levar a um resultado diferente, na medida em que, aos 5 votos divergentes, poderiam se somar os 3 faltantes, e totalizar 8 no sentido da tese da Ministra Maria Thereza de Assis Moura.

Mas não foi esse resultado, por enquanto, e temos que, hoje, a tese consolidada pelo STJ é a de que o rol do artigo 1.015 do CPC/15 possui taxatividade mitigada, admitindo a interposição de agravo de instrumento quando verificada a urgência na situação.

O sofrimento não para.

Recentemente, logo após o julgamento da Corte Especial, a Segunda Turma do STJ foi chamada a se pronunciar sobre as hipóteses de cabimento, dessa vez, para falar do parágrafo único do art. 1.015.

O acórdão foi exarado nos seguintes termos:

  1. Preliminarmente, esclareço que a Corte Especial do STJ afetou o ProAfR no REsp 1.696.396/MT ao rito dos Recursos Repetitivos, art. 1.036 e ss. do CPC, para definir a natureza do rol do art. 1.015 do CPC e verificar a possibilidade de sua interpretação extensiva, contudo determinou pela não suspensão do processamento dos recursos de Agravo de Instrumento que versem “sobre idêntica questão em tramitação no território nacional.” O processo sub examine não aborda análise do art. 1.015 do CPC, mas do seu parágrafo único.
  2. O TRF decidiu que não cabe o recurso de Agravo de Instrumento contra despacho do juiz que determinou o envio dos autos ao contador judicial para elaboração de cálculos, “orientando a utilização do Manual de Cálculos da Justiça Federal para fins de atualização do valor devido.”, porque tal decisão se destina “ao andamento do processo” e sua viabilidade não está inserta no art. 1.015 do CPC.
  3. No entendimento correto do Tribunal de origem, o novo CPC buscou dar maior efetividade e celeridade ao trâmite processual, restringindo as hipóteses de utilização do recurso de Agravo de Instrumento. Dessarte, o rol do art. 1.015 do Código de Processo Civil deverá ser interpretado taxativamente.
  4. É certo que as hipóteses de Agravo de Instrumento trazidas pelo art. 1.015 do CPC de 2015 são taxativas, principalmente quando tratar do Processo de Conhecimento, localizado no Livro I da parte especial, mas também é correto que o exegeta pode valer-se de interpretação extensiva em decorrência das especificidades de cada caso.
  5. Ninguém questiona que a “Ação de Embargos à Execução”- apesar da impropriedade da utilização do termo “ação” pelo Tribunal a quo, pois a ação se caracteriza por ser, segundo a teoria abstrata, nas lições Cândido Dinamarco Rangel, Teoria Geral do Novo Processo Civil, Ed. Malheiros, pag. 49, “o direito a obter um pronunciamento do juiz acerca de uma pretensão (decisão de mérito), independentemente de esse pronunciamento ser favorável ou desfavorável àquele que o pede.”- é autonôma à demanda executiva, contudo está englobada no Processo de Execução, contido no Livro II da parte especial.
  6. Assim sendo, ao contrário do entendimento do Tribunal de origem, a interposição do Agravo de Instrumento no Processo de Execução é prevista expressamente no parágrafo único do art. 1.015 do CPC, portanto o seu cabimento foi delineado pelo legislador.
  7. Contudo, para a otimização do Código de Processo Civil, deve o exegeta interpretar restritivamente o dispositivo legal no sentido de que o Agravo de Instrumento não pode ser utilizado como meio de impugnação de toda e qualquer decisão interlocutória proferida no Processo de Execução, porquanto tal liberdade iria de encontro à celeridade que se espera do trâmite processual. Ademais, se, a cada decisão proferida pelo juiz a quo, o Tribunal de revisão for instado a se manifestar imediatamente sobre o seu acerto ou desacerto, haverá drástica diminuição na efetividade do processo.
  8. Não obstante o decisum impugnado possuir conteúdo decisório, desnecessário, neste momento, a interposição do recurso de Agravo de Instrumento contra despacho ou decisão do magistrado que determina a elaboração dos cálculos judiciais.
  9. Recurso Especial não provido.

(REsp 1700305/PB, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 25/09/2018, DJe 27/11/2018)

Das partes destacadas, extraem-se pontos interessantes, que valem a pena ser repetidos.

Afirma o acórdão que o rol do art. 1.015 do Código de Processo Civil deverá ser interpretado taxativamente, mas “o exegeta pode valer-se de interpretação extensiva em decorrência das especificidades de cada caso”.

Ora, não foi essa a decisão da Corte Especial do STJ, que, ao afastar expressamente a possibilidade de interpretação extensiva, autorizou apenas a mitigação para os casos de urgência, quando se constatar a inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação.

É bem verdade, e disso não nos distanciamos, que a decisão da Segunda Turma se deu quando ainda não finalizado o julgamento da Corte Especial. Aqui reside mais um problema, ou talvez dois. O primeiro é que deveria ter a Turma aguardado[5] o desfecho da decisão da Corte Especial, na medida em que já iniciado o julgamento da Corte, até pela segurança e harmonia jurídicas. O segundo é que o acórdão da Turma expressamente diz que o caso não é semelhante ao do órgão máximo (não se referiria aos incisos do art. 1.015), mas, mesmo assim, “crava” um entendimento sobre o ponto, que se mostraria contrário ao resultado final do outro processo.

Veja-se como o acórdão da Segunda Turma foi além.

Ao dizer que tratava de interpretar o parágrafo único do art. 1.015, adotou posição que caminha em sentido oposto à posição acolhida pela Corte Especial, na medida em que restringiu as hipóteses de cabimento do agravo de instrumento, enquanto no julgamento do órgão maior o objetivo foi amplia-las.

Repita-se o que disse o acórdão da Turma: “para a otimização do Código de Processo Civil, deve o exegeta interpretar restritivamente o dispositivo legal no sentido de que o Agravo de Instrumento não pode ser utilizado como meio de impugnação de toda e qualquer decisão interlocutória proferida no Processo de Execução, porquanto tal liberdade iria de encontro à celeridade que se espera do trâmite processual.

Concluiu o aresto, asseverando que “se, a cada decisão proferida pelo juiz a quo, o Tribunal de revisão for instado a se manifestar imediatamente sobre o seu acerto ou desacerto, haverá drástica diminuição na efetividade do processo”.

Veja-se a dicotomia. Linhas acima o julgado afirma que a intepretação deve ser extensiva (em contrariedade ao entendimento da Corte Especial), e, em seguida, analisando outra parte do mesmo dispositivo, afirma que deve se interpretar restritivamente.

É quase incompreensível, se realmente não for, que um mesmo recurso (agravo de instrumento), seja interpretado, a partir de um mesmo dispositivo legal, de duas formas diversas num mesmo julgamento. Um paradoxo judicial.

Não há sentido lógico em se restringir a aplicação do agravo de instrumento nas hipóteses de processo de execução, e admitir a ampliação de seu cabimento nas demais situações enumeradas nos incisos do art. 1.015.

Valem as observações feitas por Gajardoni, Dellore, Roque e Oliveira Jr., que transcreve-se pela completa aplicabilidade ao raciocínio:

“A limitação ao cabimento do agravo de instrumento na fase cognitiva do processo é contrastada com a ampla possibilidade de sua utilização na liquidação e no cumprimento de sentença, no processo de execução e de inventário. Basta, no particular, que em tais processos seja proferida decisão interlocutória, a fim de ser viável o manejo do agravo de instrumento. Tal amplitude decorre consideração sobre a verticalidade com que tais decisões atingem as esferas jurídicas das partes.” [6]

O objetivo do legislador, ao decotar o art. 1.015, e inserir algumas hipóteses no parágrafo único foi exatamente amplia-las, haja vista a abertura interpretativa e procedimental de tais expressões, que estabelecem o cabimento de agravo contra decisões proferidas “no processo de execução”.

As razões para a restrição imposta pelo acórdão valeriam, tout court, para os casos específicos regulados no restante do dispositivo legal. Repete-se para demonstrar o encaixe perfeito: “se, a cada decisão proferida pelo juiz a quo, o Tribunal de revisão for instado a se manifestar imediatamente sobre o seu acerto ou desacerto, haverá drástica diminuição na efetividade do processo”. Por que isso só valeria para a fase de execução? Não há razão lógica para a distinção. E menos ainda, quando a distinção não se sustenta na exegese do disposto, e no âmbito da própria Corte

Talvez seja o caso de aplicarmos a máxima de Niels Bohr, “ainda bem que chegamos a um paradoxo. Agora, há esperança de conseguirmos algum progresso”.

Tomara que o progresso seja a revisão também pela Corte Especial dessa situação específica do parágrafo único do art. 1.015, e, se possível, que seja analisado o cabimento do agravo de instrumento, em todas as suas situações descritas no referido artigo, pelo colegiado completo, a fim de se dar mais certeza e segurança à decisão tomada.

Quem sabe assim não passamos a aprender de uma vez por todas o real significado do agravo de instrumento, acabando com esse sofrimento.

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[1] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-cpc-nos-tribunais/o-rol-taxativo-de-hipoteses-do-agravo-de-instrumento-09062017

[2] REsp 1.696.396/MT e REsp 1.704.520/MT, ambos da relatoria da Min. Nancy Andrighi. Publicado em 19/12/2018.

[3] REsp 1.696.396/MT e REsp 1.704.520/MT, ambos da relatoria da Min. Nancy Andrighi, publicado em 19/12/2018.

[4] Essa posição foi defendia também por um dos autores desta coluna, em artigo disponível em https://www.academia.edu/35174124/O_rol_taxativo_das_hip%C3%B3teses_de_cabimento_do_agravo_de_instrumento.

[5] Não se desconhece o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça de que a afetação de recursos à sistemática dos repetitivos não suspende os demais processos semelhantes, exceto se houver decisão expressa nesse sentido. Todavia, na hipótese, o julgamento do repetitivo já havia se iniciado, daí porque seria recomendado aguardar o seu desfecho para evitar exatamente esse tipo de situação.

[6] GAJARDONI, Fernando da Fonseca [et. al.]. Execução e Recursos: Comentários ao CPC de 2015, v. 3. São Paulo: Método, 2017, p. 1075.