Estudado pela Receita Federal desde antes da pandemia, o novo modelo para o cálculo dos preços de transferência deve vir via medida provisória. A opção, porém, divide opiniões. Se, por um lado, há quem aponte que este é o único instrumento que permite que as mudanças valham a partir de 2023, por outro há quem acredite que a edição de uma MP pode prejudicar os debates em torno de uma discussão tributária tão relevante. Há, ainda, o risco de o tema não ser convertido em lei, e a medida perder a validade.
As mudanças nas regras de cálculo dos preços de transferência brasileiros foram anunciadas em abril. Apesar de o texto ainda não ter sido divulgado, está claro que a ideia da Receita é aproximar o nosso sistema ao utilizado pelos países da OCDE. Assim, sairiam de cena as margens fixas, por meio das quais os contribuintes optam por um dos métodos de preço de transferência disponíveis, e entraria em jogo o princípio “arm’s length”, tido como mais preciso, porém mais complexo.
As alterações devem afetar de forma direta as multinacionais, já que o preço de transferência é uma forma de calcular a tributação incidente em operações internacionais envolvendo partes relacionadas.
PL ou MP?
Apesar da atuação da Receita para a alteração tributária, não estava claro qual seria o instrumento utilizado para a mudança: projeto de lei (PL) ou MP. Ao que tudo indica, entretanto, deve ser trilhado o segundo caminho, já que uma medida provisória sobre preços de transferência já saiu da Receita, sendo encaminhada à secretaria-executiva do Ministério da Economia.
A opção pela MP, porém, não garantirá que a nova regra surta efeito ainda em 2022. Isso porque, segundo o parágrafo 2º do artigo 62 da Constituição, a MP que implicar na instituição ou majoração de impostos só produzirá efeitos no exercício financeiro seguinte ao que houver sido convertida em lei.
De acordo com Renata Emery, sócia líder da área tributária do escritório Tozzini Freire e especialista em tributação internacional, as novas regras de preço de transferência poderiam ser consideradas, de forma indireta, como majoração de tributos. “Embora não expressamente estejam majorando alíquotas do imposto [de renda], são ajustes que vão aumentar a tributação”, diz.
Vigência em 2023?
Para parte dos especialistas consultados pelo JOTA, no contexto atual, levando em consideração que qualquer discussão no Congresso sobre o tema virá apenas após as eleições, a MP se mostra a única alternativa para que as novas regras valham em 2023. A via, assim, seria mais benéfica se comparada a um projeto de lei que, pelo tempo de tramitação, poderia jogar as alterações para 2024.
“Não há garantias de que [o novo modelo de preço de transferência] vai ser aprovado ainda neste ano, mas existe uma chance maior de a matéria ser analisada e aprovada via MP do que por projeto de lei”, sintetiza a tributarista Ana Cláudia Utumi, sócia do Utumi Advogados.
O instituto, por outro lado, é criticado por especialistas que acreditam que é necessário mais tempo para a análise de um tema tão complexo. Além disso, em um ano eleitoral e de incertezas, é grande as chances de que a MP não seja convertida em lei até o final de 2022.
Medidas provisórias têm prazo de vigência de 60 dias, prorrogáveis por igual período. Caso não haja análise pelo Congresso no período há o risco de perda de eficácia do texto.
“Vejo grandes chances, em sendo uma MP, de ser rejeitada ou não ser convertida em lei no prazo estipulado pela legislação”, diz Bruna Camargo Ferrari, sócia do Lobo de Rizzo Advogados e professora da pós-graduação da FGV Direito SP.
“Teria tempo até o final do ano, em teoria, para [o texto] ser convertido em lei, mas é um ano complicado, de eleição. Me questiono se com essa forma açodada não se corre o risco de não converter em lei”, afirma Renata Emery.
Arm’s length
Apesar de a minuta da MP não ter sido disponibilizada para o público em geral, as apresentações e estudos da Receita Federal sobre preços de transferência permitem uma dedução do que deve vir na MP sobre o tema.
A principal mudança gira em torno do fim do atual modelo de margens fixas para adoção de algo próximo do princípio “arm’s length”, utilizado pelos países da OCDE. A metodologia prevê que a tributação incidente sobre operações entre partes relacionadas localizadas em países distintos seja determinada através do comparativo com operações semelhantes praticadas por partes independentes. A ideia é que seja possível chegar ao valor da operação caso ela fosse praticada por empresas não ligadas.
No sistema brasileiro, em que o contribuinte escolhe um dos métodos disponíveis, há maior risco de dupla tributação ou dupla não tributação das operações. Assim, por mais que a tendência, segundo tributaristas, é que as novas regras aumentem a carga tributária, as multinacionais apostam na segurança jurídica trazida pela adoção do modelo OCDE.
Outro ponto já abordado pela Receita seria o fechamento do cerco aos intangíveis, que pela sistemática atual conseguem escapar dos cálculos de preços de transferência. Seria o caso, por exemplo, dos royalties.
O novo regramento também abriria espaço para a adoção de modelos de tributação específicos. Seriam os chamados “safe harbours”, que permitiriam que setores ou operações determinadas pela legislação não se submetessem às regras gerais.
Ana Cláudia Utumi, entretanto, destaca um ponto de indefinição: haverá um período de transição entre o atual modelo e as novas regras? Ela salienta que o modelo utilizado pelos países da OCDE apresenta uma complexidade muito superior ao brasileiro, e seria salutar um período de adaptação.