A pauta identitária é o laço em comum da nova onda de esquerda na América Latina. No Brasil, se o ex-presidente Lula (PT) for eleito, a história será escrita sem que a afinidade com a agenda seja determinante para a vitória. Já no cenário de reeleição de Jair Bolsonaro (PL), o peso do eleitorado preocupado com avanços progressistas nos costumes terá sido definidor. São sintomas de um país católico que caminha para se tornar uma nação de maioria evangélica na próxima década, o que só vai ampliar o protagonismo do grupo no rumo da política.
Só Bolsonaro parece ter entendido as implicações práticas da mudança do perfil religioso do país, e vem colhendo de forma dilatada os resultados da escolha em acenar para o grupo desde o primeiro dia de mandato. O apelo aos preceitos morais é tão forte que pastores com relevância em Brasília apostam que a eleição se definirá nas frentes econômica e evangélica. Mesmo que, em termos práticos, a chamada agenda de costumes não tenha avançado no Congresso, operadores de partidos oriundos das igrejas dizem que não se trata do que foi aprovado, mas sim do que seria aprovado em caso de vitória do candidato petista.
É quando entra outro instrumento também manuseado com mais destreza por apoiadores bolsonaristas: a relevância da campanha digital, que acontece entre os compartilhamentos de vídeos muitas vezes descontextualizados e imprecisos. O presidente da República já tem mais da metade do eleitorado evangélico ao seu lado, e pastores mais entusiasmados com a campanha apostam que os números podem chegar a 70% até outubro, diante da propaganda eleitoral oficial e a decantação dos pagamentos turbinados do Auxílio Brasil que atendem majoritariamente mulheres e pobres, dois componentes que formam a maioria dos templos.
Tanto otimismo dialoga com a letargia da campanha petista em reagir à confusão do púlpito com o palanque, ancorada na noção equivocada de que o apoio no segmento poderia vir sem assumir compromissos conservadores. A aposta de que a deterioração da realidade econômica da população faria o evangélico lembrar que presidente bom era o Lula ruiu na primeira semana da campanha, sem que os petistas saibam exatamente o que colocar no lugar para religar pontes.
Novos canais nas redes sociais voltados ao público religioso devem entrar em prática nos próximos dias. A expectativa é que o deputado André Janones lidere a ofensiva. O político mineiro é membro da Igreja Batista da Lagoinha, a mesma que no último dia 7 recebeu Bolsonaro e a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, em um culto. A estratégia pode até dar certo, mas não afasta a urgência de repactuação do diálogo para a qual o ex-presidente Lula não tem demonstrado disposição, ainda mais depois de assistir Michelle compartilhando imagens do petista com representantes de religiões de matriz africana.
O PT pode até se esforçar para manter o foco na preocupação do eleitor com a economia como caminho para a vitória em outubro. Mas a dinâmica que o próprio partido ajudou a construir na primeira semana da campanha deixou evidente que a “guerra santa” já é uma realidade da disputa. Virar as costas para o fato implicaria expor a limitação de um projeto que diz ter a reconstrução como mote. Buscar construir na adversidade é o verdadeiro sentido da retomada à normalidade, e a relevância da religião no projeto de país foi uma dimensão da legenda que demonstrou entender ao absorver na sua formação as aspirações das comunidades eclesiais de base.