
Durante a quarentena, tornou-se comum a divulgação pela imprensa do “índice de adesão ao isolamento social” no estado de São Paulo. Em forma de porcentagem, esse índice mostra a parcela da população que se manteve em um mesmo local por município ou mesmo por bairro. Assim, governo e população podem saber facilmente que, por exemplo, no dia 23 de novembro de 2020, Bebedouro era o município com o maior isolamento social do estado (49%), à frente da capital (40%).
A apresentação diária de dados de deslocamentos de pessoas pode lembrar alguma das ameaças à liberdade e à privacidade que nos acostumamos a ver em filmes distópicos de ficção. Um governo que sabe quantos cidadãos estão em casa e quantos estão se deslocando não sabe demais? A forma como esse sistema foi implementado em São Paulo, entretanto, não gera esse tipo de preocupação e atende às diretrizes da Lei Geral de Proteção de Dados.
Como será mostrado, o Sistema de Monitoramento Inteligente (SIMI) surgiu de acordo que preservou a anonimidade dos dados compartilhados. Essa anonimização dos dados foi o fundamento para que o sistema fosse considerado regular pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o diferencia de outro sistema de compartilhamento de dados, criado pela Medida Provisória (MP) 954/20, declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
O SIMI foi criado através de acordos celebrados em março e abril deste ano entre o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), vinculado à Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo, e operadoras de telefonia móvel.
Por meio de tais acordos, as operadoras forneceram ao IPT acesso à chamada Plataforma Big Data, que agrega dados de diferentes operadoras sobre quantos aparelhos estão conectados a cada antena de transmissão de dados celulares.
Mais concretamente, foi fornecido um login e uma senha ao IPT que permite o acesso a gráficos e mapas de índice de isolamento do dia anterior, por município e por bairro. O fundamental aqui é que esses dados são disponibilizados ao IPT de modo anonimizado e agrupado.
Isso quer dizer que não há nenhum recurso pelo qual o instituto possa identificar a localização e a movimentação de uma pessoa específica e sequer que permita filtragem dos dados por operadoras ou por qualquer outro critério que não seja município e bairro.
É tecnicamente impossível a “reversão do processo de anonimização” para acompanhar um grupo – delimitado por gênero, idade, raça, classe social, religião, etc. – e muito menos um indivíduo.
O fornecimento de dados agregados dessa forma pela Plataforma Big Data atende precisamente à cláusula do acordo celebrado entre IPT e as operadoras segundo a qual não haverá “tratamento de qualquer dado pessoal, tendo em vista que todos os DADOS são anonimizados”.
As informações retiradas da Plataforma Big Data são, assim, dados anonimizados nos termos da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (“dado relativo a titular que não possa ser identificado, considerando a utilização de meios técnicos razoáveis e disponíveis na ocasião de seu tratamento”, conforme seu art. 5º, III) e estão, por isso, fora da regulação dessa lei para dados pessoais (art. 12, caput).
Trata-se, também, do tipo de informação agregada que a Lei Geral das Telecomunicações permite que seja divulgada, ao prever que “a prestadora poderá divulgar a terceiros informações agregadas sobre o uso de seus serviços, desde que elas não permitam a identificação, direta ou indireta, do usuário, ou a violação de sua intimidade” (art. 72, §2º, Lei 9.472/97).
A situação é diferente da colocada pela MP 954 de 17 de abril deste ano, que tratava de compartilhamento de dados entre operadoras de telefonia e o IBGE para fins de realização de recenseamento. Ao contrário do que ocorre com o SIMI em São Paulo, a MP previa que as operadoras deveriam fornecer “a relação dos nomes, dos números de telefone e dos endereços de seus consumidores, pessoas físicas ou jurídicas” (art. 2º, caput).
Ou seja, tratava-se efetivamente de dados pessoais individualizados. A ideia era que esses dados fossem utilizados apenas para “realizar entrevistas em caráter não presencial” (art. 2º, §1º) durante a pandemia de Covid-19 (art. 1º, p.u.) e que, superada a pandemia, as informações seriam eliminadas (art. 4º).
A MP foi objeto de cinco ADIs – 6387, 6388, 6389, 6390 e 6393 – e foi suspensa pela relatora, ministra Rosa Weber, medida posteriormente referendada pelo pleno do STF. O STF entendeu que a MP violava direitos à intimidade e à vida privada (art. 5º, X, CF) e o direito à privacidade mencionado nos artigos 1º e 2º da Lei Geral de Proteção de Dados.
O problema estava em não haver delimitação de quais seriam as finalidades das estatísticas retiradas dos dados coletados, além de a Medida Provisória não prever nenhum mecanismo para garantir que os dados seriam mantidos em sigilo e utilizados apenas para finalidades estatísticas.
Trata-se de problemas que não existem no Sistema de Monitoramento Inteligente (SIMI). A finalidade do compartilhamento dos dados com o IPT é clara – monitoramento de adesão ao isolamento social – e há mecanismo eficiente para garantir que essa finalidade não seja desvirtuada – a anonimização dos dados, cujo detalhamento máximo possível é a identificação de número de pessoas por bairro e por município. A reversão da anonimização é impossível aqui, pois os dados são compartilhados com o Estado de São Paulo já agregados por localizações não mais específicas que bairros.
Ao analisar a legalidade do SIMI, o Judiciário atentou-se a essas diferenças. Foram impetrados mandados de segurança perante o TJSP e mesmo habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça e em todos os casos a decisão final foi pela legalidade do sistema.
Ao julgar o Mandado de Segurança nº 2073723-23.2020.8.26.0000, em 4 de junho, o Órgão Especial do TJSP reconheceu o caráter agregado e anonimizado dos dados fornecidos na Plataforma Big Data. O relator destacou que se tratava precisamente do conceito de dado anonimizado fixado pelo art. 5º, III da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, além de chamar atenção para o Regulamento Sanitário Internacional da OMS, promulgado pelo Decreto Federal 10.212/20, segundo o qual as informações de saúde coletadas devem ser, como regra, “processadas anonimamente” (art. 45, 1). Com isso, o julgamento foi pela inexistência de afronta a direito individual entendimento reiterado pelo mesmo Órgão Especial em acórdãos posteriores.
O SIMI também foi questionado através de habeas corpus. Apontando-se o governador do Estado como coator, os julgamentos foram feitos pelo STJ (art. 105, I, c), CF). Além de questões processuais, cujo tratamento não convém neste espaço, as decisões monocráticas se basearam na impossibilidade de identificação individual para indeferir as petições iniciais.
O ministro Napoleão Nunes observou que “não se verifica na impetração qualquer elemento que induza à clara identificação do usuário pelo sistema SIMI” (HC 572959, julgado em 13/05/2020). A ministra Laurita Vaz igualmente apontou que “tanto o Governo estadual, como as operadoras de telefonia celular, esclarecem que no sistema implementado os usuários não são especificadamente individualizados” (HC 572996, julgado em 16/04/2020).
Dados pessoais valem dinheiro e dão a seus possuidores muito poder. A tutela desses dados é, por isso, uma das principais questões a ocupar aqueles preocupados em proteger direitos fundamentais contra ameaças vindas de grandes empresas e de governos.
Ao mesmo tempo, a capacidade que temos hoje de coletar e processar esses dados possibilita o aperfeiçoamento de diversas políticas públicas. A questão é, então, como usar esse potencial sem violar direitos garantidos por leis e pela Constituição.
Ao fornecer ao governo e à população dados atualizados, abrangentes e confiáveis, o Sistema Integrado de Monitoramento Inteligente presta um enorme serviço à política estadual de combate à Covid-19. E, por manter irreversivelmente anonimizados os dados coletados, não o faz à custa de direito algum.
O episódio 43 do podcast Sem Precedentes analisa a nova rotina do STF, que hoje tem julgado apenas 1% dos processos de forma presencial. Ouça: