Artigo

Vigilância digital em tempos de pandemia

Crise do coronavírus tem mostrado situações sensíveis sobre a limitação de direitos de liberdades individuais

Crédito: Pixabay

O controle da saúde pública é uma obrigação dos governos e tem a finalidade de fortalecer os direitos fundamentais. Em épocas de epidemias, a vigilância sanitária é necessária e imperativa. No entanto, até que ponto um governo pode usar de suas prerrogativas e suprimir a privacidade e a liberdade das pessoas?

A pandemia do coronavírus tem mostrado situações sensíveis sobre a limitação de direitos de liberdades individuais. Agora, com as comodidades proporcionadas pelas novas tecnologias, muitas nações têm utilizado dispositivos digitais para buscar controlar o progresso do vírus.

A princípio, esses dispositivos são vistos como uma comodidade aos governos e à população. A Organização Mundial da Saúde recomenda a vigilância para rastreamento da doença, seja para detectar sua propagação, ou para fornecer informações epidemiológicas sobre os riscos e medidas de prevenção.[1]

No entanto, não são poucas as críticas acerca do uso dessas tecnologias. Em muitos países, para além do compartilhamento de dados, aplicativos de rastreamento dos cidadãos para fins de controle da propagação do vírus, estão sendo empregados ou estudados. Destinados a registrar as interações pessoais em uma população, por meio destes aplicativos é possível rastrear com quem uma pessoa esteve em contato durante o período de incubação e, assim, tentar isolar as pessoas potencialmente contaminadas para limitar a propagação do vírus.

Um mapeamento sobre as soluções adotadas em Estados para o exercício da vigilância mostra que elas são diversas e o grau de controle também é variado. O rastreio pode se dar por GPS, Bluetooth ou até reconhecimento facial. A localização geográfica – a mais frequente – recupera movimentos populacionais, identifica áreas de alta densidade e risco, ou ainda estabelece medidas de contenção global ou individuais.

A China, a primeira nação a sofrer com o coronavírus, já possui um aparato tecnológico desenvolvido pelo governo através de um sistema de pontuação para seus cidadãos chamado Sesame Crédit. Durante a pandemia, a Alipay, uma subsidiária da gigante digital Alibaba, desenvolveu em cooperação com várias províncias e a polícia um aplicativo próprio. Adicionado no sistema Sesame Crédit, o aplicativo exibe um código QR colorido que determina o nível de liberdade dos cidadãos chineses (do verde ao vermelho).

Em muitas cidades, apresentá-lo é uma obrigação. É com ele que se sai de casa, utiliza-se transporte público, viaja-se, ou ainda se ingressa em restaurantes ou mercados. Dependendo da região, o sistema de cores é mais ou menos restritivo.

Ainda, jornalistas do New York Times apontam que o sistema Alipay faz mais do que decidir se alguém corre o risco de contágio. Eles identificaram que os dados resgatados pelo aplicativo são compartilhados com a polícia.[2]

Já em Hong Kong, um sensor é colocado no pulso de pessoas em quarentena. “StayHomeSafe” é o aplicativo que monitora a localização da pessoa. Se alguém caminhar para além do permitido, um alerta será disparado.

Na Europa, a maioria dos países tem estudado e testado mecanismos de rastreio. Enquanto na Polônia o governo solicita o envio de selfies para monitoramento, na República Tcheca, o aplicativo de rastreamento de contatos “eRouska” acessa por Bluetooth, geolocalização, serviço de mapeamento local, além de registros bancários e telefônicos. Na Aústria, o Stopp Corona-App foi desenvolvido pela Cruz Vermelha local e possibilita o registro de contatos por Bluetooth e alerta usuários no caso de uma triagem positiva. Na Alemanha, o aplicativo “Corona-Datenspende” visa operar por meio de uma pulseira para registro de sinais vitais da pessoa (frequência cardíaca, comportamento do sono, atividade, temperatura corporal, etc.).[3]

Na América Latina, os aplicativos lançados, na sua grande maioria, não estão relacionados ao rastreamento. Apenas no México, anunciou-se a colaboração entre o governo e as empresas de telefonia para monitorar o movimento de pessoas na Cidade do México.

Recentemente, no Brasil, a Medida Provisória 954/2020 que dispunha sobre o compartilhamento de dados entre empresas de telecomunicações e a Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística teve sua eficácia suspensa pelo Supremo Tribunal Federal. Segundo a Relatora, na MP não foram delimitados o objeto da estatística e sua finalidade específica, amplitude, assim como a razão da disponibilização dos dados e a forma pela qual serão utilizados.

Trata-se, de fato, de critérios mínimos e essenciais a serem dispostos em qualquer norma que vise utilizar dados pessoais dos cidadãos. Em tempos de vigilância digital em que a fiscalização da sociedade por meio de aplicativos tem sido adotada por diversas nações, qualquer lacuna pode repercutir em um monitoramento para além dos limites, que acabe não apenas por violar a privacidade das pessoas, mas também suas liberdades.

A miríade de aplicativos de rastreamento de pessoas utilizados em diversos Estados mostra que o limite da atuação estatal sobre as liberdades das pessoas resta sensível. O exemplo mais draconiano é o chinês, onde já se condiciona o direito de ir e vir da população mediante a apresentação de QR codes. Além disso, o compartilhamento desses dados com a polícia revela que o controle pode persistir mesmo após a epidemia e ser usado para fins que não relacionados ao enfrentamento do vírus.

Os excessos de vigilância, contudo, não ocorrem apenas neste país. Imposições de selfies a serem enviadas às autoridades, pulseiras de monitoramento em outros, ou ainda cruzamento de dados, são alguns exemplos de vigilância exercida por nações democráticas. O monitoramento não é ingênuo e o conjunto de dados, ainda que anônimos, pode ser usado para políticas de controle não democráticas.

Na França, estudiosos chamam o aplicativo do governo francês de “StopCovid Analytica”, em analogia ao escândalo da Cambridge Analytica. Na ocasião, a empresa, por meio de um aplicativo apresentado como questionário psicológico, rastreou dados não autorizados para identificar comportamentos das pessoas e influenciar suas decisões políticas. Para Antonio Casilli, Paul-Oliver Dehaye e Jean-Baptiste Soufron, os mesmos ingredientes científicos da “boa vontade”, gigantes da “tecnologia” e interesses políticos são reunidos no aplicativo francês.[4]

Eles indicam se tratar de fórmula perigosa, uma vez que todos os dados que seriam usados apenas para controle de vírus de modo anônimo, podem ser cruzados para exercer controle sobre os comportamentos e gostos dos cidadãos. Esses aplicativos de rastreio ainda identificam e resgatam os dados das pessoas, cujos perfis são moldados de acordo com o comportamento registrado nos aparelhos celulares, o que evidentemente não equivale ao indivíduo de carne e osso.

Em uma tentativa de estabelecer bases ao uso dessas tecnologias, o diretor do Centro de Estudo de Vigilância no Canadá, David Lyon, destaca que as questões de liberdade civil levantadas exigem garantias claras e limites acordados.

Assim, é importante questionar como esses dados são analisados ​​e como eles são classificados. A maneira como os dados são usados ​​e as autoridades que poderão acessar devem estar precisamente delimitadas. As finalidades do uso com sua motivação e justificação também se apresentam fundamentais.[5] Logo, as normas que visarem estabelecer a regulamentação de tais aplicativos devem levar em conta todos esses critérios.

De qualquer modo, o uso banalizado de dados para fins de controle sanitário coloca em xeque as instituições democráticas e garantias individuais conquistadas com o Estado de Direito.

Primeiro, porque não existe nenhuma garantia que os dados hoje utilizados para segurança não sejam aproveitados posteriormente para outros fins, tal como já ocorre na China. Ou seja, o controle, em si, não se resume em priorizar a segurança. Trata-se de uma questão política.

Além disso, as experiências de rastreamento de contatos para fins de evitar a propagação da doença nos mostram que muitos já vivem em universos distópicos. Não se está unicamente diante de disciplina de corpos, típica de uma era panóptica foucaultiana.

Ao estabelecer formas de controle que incitam as pessoas a tomarem determinadas condutas, a vigilância passa a moldar os comportamentos das pessoas, o que leva a questionar a existência da própria autonomia e liberdade. A verdade é que o uso desses aplicativos de rastreio acelera e intensifica a transformação de um Estado de Direito para um Estado de vigilância.

Por isso, é bom recordar do que certa vez disse Benjamin Franklin, “Qualquer sociedade que renuncie um pouco da sua liberdade para ter um pouco mais de segurança, não merece nem uma, nem outra, e acabará por perder ambas.”


[1] David Lyon, Cellphone tracking might help stamp out COVID-19. But at what cost? Ottawa Citzen, 6 de abril de 2020. Disponível em: <https://ottawacitizen.com/opinion/lyon-cellphone-tracking-might-help-stamp-out-covid-19-but-at-what-cost/wcm/a58e9d06-1709-4152-8ec3-ea57cc9d5d0d/>.

[2] Paul Mozur, Raymond Zhong, Aaron Krolik, “In Coronavirus Fight, China Gives Citizens a Color Code, With Red Flags”, The New York Times, 1 marzo, parr. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2020/03/01/business/china-coronavirus-surveillance.html>.

[3] Anaïs Cherif, Tracking du Covid-19 : comment font les autres pays ? La Tribune, parr. Disponível em: <https://www.latribune.fr/technos-medias/tracking-du-covid-19-comment-font-les-autres-pays-844772.html>.

[4] Antonio Casilli, Paul-Oliver Dehaye, Jean-Baptiste Soufron. “ StopCovid est un projet désastreux piloté par des apprentis sorciers” Le monde, 25 de abril de 2020. parr. Disponível em: <https://www.lemonde.fr/idees/article/2020/04/25/stopcovid-est-un-projet-desastreux-pilote-par-des-apprentis-sorciers_6037721_3232.html>.

[5] David Lyon, Cellphone tracking might help stamp out COVID-19. But at what cost? Ottawa Citzen, 6 de abril de 2020. parr. Disponível em: <https://ottawacitizen.com/opinion/lyon-cellphone-tracking-might-help-stamp-out-covid-19-but-at-what-cost/wcm/a58e9d06-1709-4152-8ec3-ea57cc9d5d0d/>.

Sair da versão mobile