Se em 2021 a data da Independência foi precedida pelo movimento das “lavadeiras” em Brasília, protagonizado por tanques e trouxas, deixando como rastro uma grave crise institucional, em 2022 o 7 de setembro foi mais uma marcha de insensatez. Marcado pelo radicalismo e pela linguagem vulgar, o tom e o teor das manifestações foram os mesmos do evento anterior, com repetição de ameaças, afrontas ao Poder Judiciário, narrativas mentirosas e desqualificação moral dos adversários do presidente da República na eleição de outubro.
Foi, assim, algo próximo do que o escritor italiano Antonio Scurati conta em seu livro sobre Mussolini[1], ao descrever uma marcha promovida por fascistas “broncos, medíocres, obtusos e muitas vezes ignorantes” em direção a Roma, para apoiar o Duce, o condottiere supremo do país, cujo lema – Deus, Pátria e família – inspira o presidente Jair Bolsonaro.
De efetivamente novo, com relação ao 7 de setembro do ano passado, quando Bolsonaro defendeu o uso da violência contra o Supremo Tribunal Federal, deu um ultimato a dois ministros da corte e anunciou que não cumpriria decisões por eles tomadas, o que se viu foi a fusão da celebração de uma data cívica com atos políticos, partidários e eleitorais. Ou seja, uma iniciativa que voltou a macular a imagem das Forças Armadas, desta vez por terem se deixado levar por um chefe da nação incapaz de discernir política de Estado e política de governo, interesse público e interesses pessoais.
Contudo, nem mesmo nessa nova iniciativa autoritária Bolsonaro conseguiu ser original. Em 1972, a ditadura militar também usou os festejos da Independência para tentar melhorar sua imagem. Nestes dois eventos, tanto o ditador da época – o general Garrastazu Médici – quanto sua atual versão trágico-caricata não hesitaram em converter restos mortais do imperador d. Pedro I em um trunfo necrófilo. Da primeira vez, a iniciativa não teve resultado, pois, nas eleições de 1974, os candidatos da oposição tiveram uma vitória consagradora, abrindo uma fenda no autoritarismo do regime militar. E, pelas pesquisas de intenção de voto, Bolsonaro poderá sofrer uma derrota desmoralizante em 2022.
O mais importante, porém, está nas falas do presidente nesta quarta-feira (7) – especialmente no que diz respeito ao modo como interpreta a ideia de responsabilidade, por um lado, e à maneira como vê seus adversários políticos, por outro. Ao defender mais uma vez a liberdade absoluta de expressão e de crítica, Bolsonaro afirmou que sua responsabilidade é protegê-la e evitar que o Palácio do Planalto volte a ser ocupado por “demônios”. Para ele, formado em ambiente de quartéis, em cujo âmbito receber ordem superior significa cumprir missão, ser responsável é só uma noção de dever e de compromisso íntimo com suas obrigações.
Em países mais desenvolvidos e com sólida tradição democrática, porém, uma pessoa é responsável quando responde por suas palavras, por suas iniciativas e por suas decisões a outros cidadãos. Responsabilidade também implica uma relação entre quem delega e quem recebe a delegação de poderes para fazer determinadas coisas. Neste sentido, por exemplo, o que se espera de um presidente da República é que cumpra a Constituição que jurou. E não que a despreze, como Bolsonaro fez nesta quarta, estimulando aventuras golpistas ao afirmar – perante manifestantes portando faixas e cartazes antidemocráticas pedindo golpes e uma “limpeza do Supremo pelas Forças Armadas” – que o Brasil já passou por “momentos de ruptura democrática”, como em 1964, e que “a história pode se repetir”.
Em artigo publicado quando a ditadura militar começava a se esboroar em decorrência do fracasso do II Plano Nacional de Desenvolvimento, o sociólogo Simon Schwartzman lembrou à época que palavras inglesas como accountability e responsiveness, que não têm uma tradução adequada para a língua portuguesa, contêm não apenas a ideia de respeito ao outro, mas, igualmente, um sentido ético[2]. O vínculo entre a noção de dever para com o outro e o dever para consigo mesmo é um componente normativo da própria ideia de cidadania democrática, diz ele.
Assim, um governante responsável é quem respeita o Poder Judiciário, em vez de afrontá-lo. É quem não mente, não distorce fatos e não cita números falsos. É quem tem autoridade moral e se prepara para se submeter às pressões sociais, respondendo com respeito e dignidade ao mandato que permitiu sua ascensão ao poder. É quem, sem abrir mão de suas convicções, sabe dialogar em termos civilizados e construtivos com opositores. É quem sabe avaliar tudo o que a sociedade demanda e os esforços que um poder público com escassez de recursos pode fazer para atendê-la ao menos parcialmente.
É por esse motivo que, todas as vezes em que Bolsonaro fala sobre a luta entre “o bem e o mal”, afirma que “com justiça, verdade e amor o inimigo não vai vencer” e acusa o STF de tolher a liberdade absoluta de expressão e de crítica, como ocorreu na manhã do feriado em Brasília, as instituições estão sempre em perigo. No Estado de Direito, a liberdade de expressão e crítica jamais é absoluta e exige ponderação com relação ao seu alcance. Quando essa ponderação é desprezada e o exercício da liberdade de expressão e crítica se dá sem quaisquer mecanismos de responsabilização, o resultado acaba sendo uma irresponsabilidade recíproca entre acusadores e acusados que se retroalimenta. Cada vez que “broncos, medíocres, obtusos e muitas vezes ignorantes” fazem uma crítica infundada, absurda, mentirosa e desqualificadora, nada impede que os criticados respondam da mesma maneira. Esse acirramento, por consequência, leva a uma perigosa escalada de intimidações, de iniquidades e de truculências típicas de extremistas.
Por isso, com relação ao modo como encara seus opositores, Bolsonaro é um irresponsável, no sentido anglo-saxão da palavra. O mesmo também pode ser dito sobre seu séquito de filhos, generais de pijama, de pastores soi disant evangélicos, de empresários de quinta linha e de quem o considera “mito”. Até hoje não compreenderam que a ditadura militar de 1964, por eles idolatrada, jamais forjou um caráter orgânico na sociedade brasileira. Pelo contrário, durou apenas enquanto seus mecanismos repressivos foram eficientes.
Ao afirmar em Copacabana que um candidato presidencial que chamou de “quadrilheiro” e a esquerda deveriam ser “extirpados da vida pública”, Bolsonaro mostrou mais uma vez que não vê seus opositores como adversários num espaço público democrático, mas, sim, como inimigos que se confrontam em uma guerra sem limites. Nessa ótica estreita e rasteira, quem não é amigo tem de ser simbolicamente eliminado, pois, em caso contrário, correrá o risco de ser vítima dele[3]. Decorre daí o sentido de superioridade moral, por um lado, e da intolerância e do discurso de ódio, por outro. Ou seja, a desqualificação e a desumanização de quem quer que cruze a sua frente, o que não só abre caminho para a violência política, como, também, para a violência física, por meio do aliciamento de militares de baixa ou média patente, estímulo de insurgência, insurgência das Forças Armadas e da formação de falanges políticas armadas.
Se o semialfabetizado presidente da República que fundiu uma celebração de uma data cívica com uma irresponsável aventura política conhecesse “Fausto”, romance do estadista e escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe, em que o personagem vende a própria alma a uma figura diabólica, Mefistófeles, em troca de ver seus desejos realizados, o bicentenário da Independência poderia ter sido comemorado de modo mais digno. E não animado por insídias mefistofélicas e pela irresponsabilidade de um tosco e vulgar aprendiz de ditador, tendo como plateia “broncos, medíocres obtusos, muitas vezes ignorantes” – a exemplo dos fascistas que marcharam até Roma para apoiar Mussolini.
[1] Ver Antonio Scurati, O Homem da Providência, Rio de Janeiro, Intrínseca, 2022, p. 13
[2] Cf. Simon Schwartzman, Da responsabilidade democrática, in O Estado de S. Paulo, edição de 8 de junho de 1979, p. 2
[3] O confronto amigo vs. inimigo está na concepção política do constitucionalista alemão Carl Schmitt, que marcou a ascensão do totalitarismo nazista na década de 1930 e ressurgiu no século 21 repaginado pela extrema-direita dos Estados Unidos e plagiado pelo bolsonarismo no Brasil. Ver O conceito do político, Lisboa, Edições 70, 2015.