Literatura

Um texto de Camus para os tempos da peste

Os remédios que a sua filosofia tem para legar ao nosso presente distópico

Albert Camus (7 de novembro de 1913 - 4 de janeiro de 1960) foi um autor, filósofo e jornalista franco-argelino que ganhou o prêmio Nobel em 1957. Foto: Flickr/DietrichLiao

A Peste” (1947), a obra consagrada de Albert Camus, tem sido lembrada como uma reflexão profunda sobre o comportamento humano em períodos de epidemias ou pandemias mortais. Agora, a editora Gallimard disponibilizou gratuitamente em seu site um pequeno texto pouco conhecido do mesmo autor, redigido em 1941, durante a ocupação nazista da França, chamado “Exhortation aux médecins de la peste”1.

Em suas seis páginas, “Exortação aos médicos da peste” não poderia ser mais atual. Concebida originalmente como alegoria da segunda grande guerra, a peste ganhou no presente a realidade de uma pandemia e é exatamente de uma enfermidade contagiosa e mortal de que o texto trata.

Como “exortação”, o texto contém conselhos extraídos dos “bons autores” sobre os cuidados que devem ser adotados durante a peste: proteger a face com um pedaço de pano embebido em vinagre, não posicionar-se na direção do vento perto de pacientes, não visitar doentes quando em jejum, não tocar em nada contaminado.

As precauções físicas, porém, não são suficientes pois a preservação dos corpos também exige um “cuidado de si” próximo do pensamento estoico: para que os corpos triunfem sobre a infecção, “é preciso que a alma seja vigorosa”, fortificada contra a ideia da morte e com ela reconciliada; “sóbria” em relação às coisas, mas também “alegre”, de modo que a tristeza não modifique ou decomponha o sangue. Um vinho para aliviar um pouco o ar de consternação diante da cidade empesteada é recomendável, diz Camus.

Todos estes cuidados envolvem a ideia de justa medida, em oposição ao desequilíbrio e ao excesso trazidos pela peste. Em nome do interesse da coletividade, devemos ser “senhores de nós mesmos” e seguir rigorosamente os rituais de limpeza e distanciamento social, mesmo que nosso coração diga o contrário. “Pedimos que vocês se esqueçam um pouco de quem vocês são, sem jamais esquecer porém aquilo que vocês devem fazer”.

Acima de tudo, porém, diz Camus, os médicos a quem a exortação se dirige não devem habituar-se a ver os homens morrerem como moscas, nem deixar de se revoltar contra uma realidade tirânica na qual os amantes estão proibidos de se reunir e os que se dedicam a cuidar dos demais morrem amontoados.

A ideia perturbadora lançada ao final do texto é a de que, em tempos de peste, a consciência do absurdo e a revolta existencial – temas centrais na obra de Camus – não suscitam no sujeito o sentimento de orgulho, mas sim o desejo da ignorância, “para assegurar-se da observância da medida, única amante dos flagelos”.

Que ignorância seria esta? Certamente não é a dos cuidados de prevenção arrolados, mas da realidade inelutável e aleatória da morte provocada pela pandemia. Apesar de nossas máscaras de tecido, de todo nosso esforço e da “placidez” de nossa coragem, apesar, enfim, da observância da justa medida, “um dia virá no qual não [poderemos] suportar esta cidade de pessoas moribundas, esta multidão que anda em círculos por ruas superaquecidas e cheias de poeira, estes gritos, este alarme sem futuro”.

Neste dia, diz Camus, “não haverá outro remédio que eu possa lhe dar que não seja a compaixão, que é a irmã da ignorância”.

Os discursos epidemiológicos sobre a observância do distanciamento social como forma de propiciar o “achatamento da curva” pandêmica e com isso evitar a sobrecarga do sistema de saúde, apesar de racionais do ponto de vista da coletividade, não oferecem respostas aos aspectos profundamente humanos suscitados por uma doença que atinge as pessoas de forma aleatória.

No presente, o herói absurdo de Camus é convocado a privar-se do contato interpessoal e a escolher os pacientes que receberão o tratamento; a observância da justa medida e dos cuidados de si, porém, não lhe garantem o sucesso da empreitada. Em outras palavras, a prática do isolamento social não assegura que, até a descoberta de uma vacina, pessoas (inclusive próximas) venham a se infectar e morrer. Por outro lado, a húbris, representada pelo comportamento individual perigoso do ponto de vista sanitário, tampouco se constitui como opção ética. Daí o desejo de ignorar a possibilidade randômica do contágio e da morte.

Em tempos de peste, diz Camus, nada mais resta ao sujeito senão sonhar com esta ignorância, seguir os cuidados de si prescritos pelos “bons autores” e praticar a compaixão por todas as demais pessoas. São estes os remédios que sua filosofia tem para legar ao nosso presente distópico.

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