Pandemia

Um salve ao nosso federalismo ‘capenga’ em tempos de crise

O presidente segue isolado em suas convicções e sem uma política coordenada junto aos estados e municípios

stj
Presidente Jair Bolsonaro. Crédito: Carolina Antunes/PR

Há tempos os estudiosos do federalismo vem apontando para o desequilíbrio no pacto federativo brasileiro, com destaque para a perda gradual de recursos financeiros dos cofres estaduais e, via de consequência, de poderes políticos dos governadores.

Mais recentemente, em meio a uma “queda de braço” entre Executivo e Legislativo, na aprovação da agenda de reformas proposta pelo governo atual para o Brasil, assistimos à escalada de uma série de proposições de alteração do modelo vigente de tributação, que incluíam como ponto-chave a unificação de tributos sobre o consumo, com a arrecadação concentrada nos cofres federais.

O interessante é que tais proposições convergiam em torno da supressão de competências tributárias dos estados, porém silenciavam quanto à supressão de responsabilidades estaduais e municipais no campo social, como ocorre com a saúde e a educação.

Passados alguns dias, o cenário atual é totalmente diverso do que se revelava como pano de fundo das propostas de reforma. Estamos enfrentando uma “guerra invisível” com potencial de desencadear uma grave crise de saúde pública, social e econômica, a nível mundial. Nesse sentido, diversas nações tem se mobilizado em prol de conter o avanço na proliferação do vírus e, com isso, ganhar tempo a fim de evitar o colapso do sistema de saúde.

Dentro desse contexto, no Brasil, desde a confirmação do primeiro caso de infecção pela Covid-19, vemos uma enxurrada de medidas contraditórias por parte do governo federal na tentativa de combater o avanço do vírus e, ao mesmo tempo, de poupar a economia nacional.

A par disso, os governadores de diversos estados tem adotado medidas duras de enfrentamento da situação, como a decretação de quarentena oficial e o impedimento da circulação de ônibus interestaduais com origem em estados onde há casos de infecção.

Na contramão das medidas adotadas pelos governadores e recomendadas pela Organização Mundial de Saúde, o Presidente da República fez um pronunciamento à imprensa, no dia 24 de março de 2020, criticando a posição dos governadores e as medidas adotadas, dentre as quais encontram-se o fechamento de escolas e do comércio.

No mesmo dia do pronunciamento do Chefe do Executivo, o Ministro Marco Aurélio concedeu em parte a medida cautelar requerida pelo Partido Democrático Trabalhista, na ADI nº 6341, em que se questiona a constitucionalidade da MP nº 926/20, apenas para tornar explícita, no campo pedagógico e na dicção do Supremo, a competência concorrente dos estados, Distrito Federal, municípios e União para cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência, na forma do art. 23, II, da Constituição Federal de 1988.

Na ocasião, o mesmo Ministro indeferiu a cautelar requerida pela Rede Sustentabilidade na ADI nº 6343, em que se questiona a constitucionalidade tanto da MP nº 926/20 quanto da MP nº 927/20, deixando consignado, contudo, que as referidas medidas “hão de ser examinadas a partir de cautela maior, abandonando-se o vezo da crítica pela crítica. União, estados, Distrito Federal e municípios, dirigentes em geral, devem implementar medidas que se façam necessárias à mitigação das consequências da pandemia verificada, de contornos severos e abrangentes.”

As duas decisões serão submetidas à análise pelo Plenário da Corte, na sessão de julgamentos do dia 15 de abril de 2020. Embora não seja possível afirmar se elas serão referendadas pelo colegiado, parece haver uma coalização inédita entre governadores e líderes do Congresso Nacional para enfrentar a crise que se avizinha, com o apoio – já não tão discreto como antes – do STF.

Cada vez mais, o Chefe do Executivo segue isolado em suas convicções e, sem o desempenho de uma política coordenada junto aos estados e municípios, vem perdendo espaço não só na execução, mas na própria elaboração das políticas públicas de saúde e enfrentamento da crise provocada pela Covid-19.

É curioso notar que a comoção gerada pela disseminação do vírus no país parece nos encaminhar para um quadro de reversão, ao menos em parte, da situação político-federativa dos estados. Nesse ponto, é preciso lembrar que a Constituição de 1988, apesar do intento descentralizador de seus elaboradores, não produziu instituições políticas que tornassem o governo central fraco em face dos governos subnacionais, mas justamente o contrário[1].

Com efeito, um amplo conjunto de reformas foi aprovado sob o regime democrático vigente pós-1988, que impuseram, de forma gradual, perdas de receitas e poderes políticos aos governos estaduais, concentrando-os nas mãos do governo federal.

Ainda que o Senado represente, no âmbito formal, uma arena de veto, tais reformas passaram por ele sem que os estados tenham conseguido exercer o seu poder de obstrução, demonstrando certa tendência centralizadora do federalismo brasileiro, que dita a agenda política mesmo diante de períodos democráticos.

Se comparado ao seu modelo inspirador, norte-americano, verifica-se que as características singulares históricas e de formação da Federação americana contribuíram para o desenvolvimento de um Senado que, a despeito de exercer adequadamente a representação dos estados-membros no Parlamento, desempenha uma função essencialmente moderadora que atende bem às suas necessidades, dada a forte autonomia das entidades descentralizadas que o compõem.

No Brasil, porém, a adoção desse modelo moderador não tem garantido a representação política adequada dos estados-membros no Congresso Nacional, ficando muito aquém da relevante função a ser desempenhada pela Câmara Alta dentro de um Estado Federal.

Se no contexto de recentralização anterior já havia acendido a luz vermelha da necessidade de reequilíbrio do pacto federativo, no cenário atual, em que adicionamos ao federalismo já “capenga” uma crise de saúde pública sem precedentes, torna-se imprescindível não só o contraponto à agenda nacional pelo Senado Federal, em respeito dos interesses estaduais, como o próprio fortalecimento do poder político dos governadores. Aliás, mais do que imprescindível, é uma questão de sobrevivência.

Não se pretende exaltar aqui o retorno da “política dos governadores” que marcou a República Velha, especialmente no governo de Campos Salles, mas apenas reforçar a necessidade de superação daquilo que, de forma muito perspicaz, aProfessora Misabel de Abreu Machado Derzi denominou de “a força dos três preconceitos” em matéria federativa.[2]]

Segundo ela, ao falarmos de federalismo, devemos eliminar três preconceitos: (i) o primeiro de que os municípios são corruptos, de modo a justificar ser sempre melhor deixar os recursos financeiros nas mãos da União Federal; (ii) o segundo, de que os estados são maus pagadores, porque a União também deve aos estados quantias significativas (v.g. compensação aos estados exportadores em função das desonerações advindas da Lei Kandir, objeto de apreciação pelo STF na ADO nº 25); e, por último (iii) o de que a Administração Federal contém o melhor aparato administrativo, sendo, portanto, mais preparada para o atendimento a determinadas demandas da população. [3]

Em um país com a dimensão territorial do Brasil e com as assimetrias regionais de ordem geográfica, climática, social e econômica que ele apresenta, quem mais poderia atender às necessidades locais em matéria de elaboração e execução de políticas públicas do que os estados e municípios?

Com otimismo, quero crer que estamos prestes a assistir à retomada gradual do poder de representação estadual do Senado Federal, com o apoio da Câmara dos Deputados e a chancela moderadora do Supremo Tribunal Federal, o que pode trazer a vontade política dos governadores de volta à agenda nacional. Aos que, a respeito do pacto federativo no Brasil, diziam: “ruim com ele”, agora podemos dizer com segurança: “pior sem ele”.]

 


[1] ARRETCHE, Marta. Quando instituições federativas fortalecem o governo central? Novos Estudos CEBRAP, n. 95, março/ 2013. p. 38-57.

[2] Palestra proferida pela Professora Misabel Derzi no XXI Congresso da ABRADT: “Federalismo e Moralidade”, em 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2S9kDiAY990

[3] Nesse sentido, vide estudo elaborado por José Roberto Afonso e Kleber Pacheco de Castro, que fundamentou a matéria da Folha de São Paulo de 13.03.2020, contrariando a “força dos três preconceitos”. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/03/estudo-aponta-que-carga-tributaria-bateu-recorde-em-2019.shtml

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