A União Europeia (UE), para lidar com a pandemia gerada pelo SARS-COv-2, vem adotando ações características da origem do modelo europeu de integração.
No grande guarda-chuva erigido para o combate à verdadeira tempestade pandêmica, o bloco implementa medidas referentes à mitigação dos efeitos em três frentes: a) crise sanitária; b) crise de mobilidade; c) crise socioeconômica.
Vale lembrar que o projeto europeu de integração surgiu sob a égide das consequências da 2ª Guerra Mundial. À época, os Estados Unidos da América exerceram um papel relevante na reconstrução dos países despedaçados após o término da Guerra. O Plano Marshall, advindo da Lei de Assistência Exterior, de 16 de abril de 1948, que estabeleceu a Organização Europeia de Cooperação Econômica (OECE), distribuiu recursos e consistiu em uma ajuda nada desinteressada, uma verdadeira estratégia de hegemonia.
A solidariedade fez igualmente parte da ideia originária.
Sob os recentes escombros da guerra ao novo coronavírus, trata-se de ferramentas de indispensável valor para o bloco se reerguer.
Medidas Econômicas
Hoje, após 70 (setenta) anos do início de sua construção, a UE se vale de uma espécie de Plano Marshall próprio, como ferramenta em busca da recuperação.
Em 17 de março de 2020, após videoconferência com os membros do Conselho Europeu, o seu presidente reafirmou a necessidade de ação conjunta para lidar com as consequências da crise e, estabelecendo a saúde dos cidadãos como prioridade, identificou quatro espectros de medidas prioritárias: limitar a propagação do vírus, prover equipamento médico, promover pesquisa e enfrentar as consequências socioeconômicas, inclusive com ajuda aos cidadãos retidos em países não membros da UE[1].
O Banco Central Europeu, por sua vez, anunciou, em 18 de março de 2020, o Programa de Compras Emergencial de Pandemia (PEPP[2]), com 750 bilhões de euros. As compras serão realizadas até o final do ano de 2020 e a duração do Programa é enquanto viger a crise da pandemia[3].
Em 23 de março de 2020, foi publicada uma Declaração dos ministros das Finanças da UE, sobre o Pacto de Estabilidade e Crescimento no contexto da crise da Covid-19[4].
Reconhecendo os impactos negativos da pandemia na União Europeia, com previsão de grave recessão econômica, foi destacada a imprescindibilidade de ação dirigida a conferir sustentabilidade às finanças públicas a médio prazo.
Sinalizou-se a importância de se recorrer à cláusula de derrogação geral do quadro orçamentário da UE para imprimir flexibilidade, discricionariedade e coordenação necessárias à tomada de medidas de apoio aos sistemas de saúde e à proteção civil, bem como à proteção das economias, dentro das políticas do Pacto de Estabilidade e Crescimento.
Um fundo de recuperação foi discutido pelos líderes europeus em 23 de abril de 2020. A proposta foi formulada pela Comissão em 27 de maio de 2020, com repercussão no orçamento previsto para 2021-2027. O procedimento está em curso sob análise do Conselho, com a previsão de consulta aos Estados-Membros no Conselho Europeu a ser realizado em 19 de junho de 2020.
Ademais, o orçamento elaborado para o ano de 2020 foi emendado, com o acréscimo de 3,1 bilhões de euros destinados ao combate à crise gerada pela disseminação da Covid-19. Em especial, há foco em: compra e distribuição de equipamentos médicos; produção de testes; construção de hospitais de campanha; transferência de pacientes; e repatriação de cidadãos da UE.
Fundos europeus também foram alvo de direcionamento ao enfrentamento da crise financeira, com novos bilhões de investimento, além da adoção de flexibilidade para o uso dos recursos e de auxílio a pescadores e produtores rurais.
O artigo 107 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) fundamentou políticas de auxílio econômico voltadas à garantia da liquidez ao Estados-Membros.
Já a Comissão Europeia conferiu flexibilidade para prover orçamento voltado ao atendimento de prioridades sanitárias. Hoje, vê-se um incentivo à flexibilidade por meio da própria União Europeia, embora seja possível antever a necessidade de recuperação posterior da prosperidade de cada país e da consequente submissão a regras rigorosas de orçamento no âmbito do mercado comum.
Solidariedade
Em discurso proferido em 09 de maio de 1950 pelo então Ministro francês das Relações Exteriores, Robert Schuman, foi evidenciado o desiderato de elaboração de um projeto de unidade econômica firmada sob o valor da solidariedade da produção.
O artigo 2º do Tratado da União Europeia (TUE) apresenta a solidariedade entre os valores fundamentais da União Europeia, ao lado da justiça e da igualdade entre homens e mulheres. Já o art. 3.5, TUE, foi inserido pelo Tratado de Lisboa (TL), fruto da estratégia normativa após o malogro da chamada Constituição Europeia.
Além de encontrável em diversos outros artigos do TUE e do TFUE, vale destacar a denominada cláusula de solidariedade (art. 222, TFUE): “A União e os seus Estados-Membros atuarão em conjunto, num espírito de solidariedade, se um Estado-Membro for alvo de um ataque terrorista ou vítima de uma catástrofe natural ou de origem humana (…)”.
O chamado espírito de solidariedade é, assim, a base jurídica para vastas medidas assistenciais a serem adotadas em caso de catástrofes de origens naturais ou humanas, bem como de ataques ou ameaças terroristas. O procedimento envolve proposta, da Comissão e do Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, de uma decisão a ser tomada pelo Conselho.
Para concretizar a cláusula de solidariedade, foi criado, em 2012, o Fundo de Solidariedade da União Europeia. Estabelecido com o fito de prover auxílio após grandes catástrofes, foi recentemente alterado pelo Regulamento (UE) nº 2020/461 do Parlamento Europeu e do Conselho, a fim de prestar assistência financeira aos Estados-Membros e aos países que estão a negociar a sua adesão à União gravemente afetados por uma emergência de saúde pública de grande dimensão[5].
A atuação da UE, além de norteada pela solidariedade, é também regida pelo princípio da subsidiariedade, uma vez que a utilização do fundo é complementar, restrita a emergências de saúde pública de grandes dimensões, como a pandemia de Covid-19, e mediante pedido específico do Estado afetado, com tratamento equitativo dos pleitos pela Comissão.
A nova velha União Europeia
Os atuais dramáticos problemas enfrentados pela União Europeia em razão da pandemia de Covid-19 proporcionaram o resgate de duas antigas bases da construção do projeto de integração: um plano de investimento, desta vez europeu, com fortes medidas econômicas; e a solidariedade, ora implementada por conteúdos concretos que foram dados ao seu espírito.
Mais uma vez, assiste-se à força europeia para se reerguer de escombros, com um relançamento do projeto econômico que cumpre um papel ambicioso à luz do espírito solidário.
Observar e analisar as nuances da integração europeia, sobretudo quanto ao desenvolvimento das ações implementadas durante a vigência da pandemia do SARS-COv-2, é de suma importância para a aferição de lições, acertos e desacertos a partir do laboratório-modelo europeu.
[1] Disponível em: <https://www.consilium.europa.eu/en/meetings/european-council/2020/03/17/>.
[2] Disponível em: <https://www.ecb.europa.eu/mopo/implement/pepp/html/index.en.html>.
[3] Vide: <https://www.ecb.europa.eu/press/pr/date/2020/html/ecb.pr200318_1~3949d6f266.en.html>.
[4] Disponível em: <https://www.consilium.europa.eu/pt/press/press-releases/2020/03/23/statement-of-eu-ministers-of-finance-on-the-stability-and-growth-pact-in-light-of-the-covid-19-crisis/>.
[5] Vide: <https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32020R0461&from=PT>.