Pandemia

Um direito administrativo da crise: limites e perigos de uma dogmática de exceção

Compreensão permitiria o afastamento de regras como a obrigatoriedade de licitação e a vinculação ao edital

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Crédito: Pexels

Que as crises demandam arranjos regulatórios apropriados para a emergência que lhes acompanha, parece ser ponto de consenso entre os estudiosos do direito administrativo. Não por outra razão, muito se tem falado na necessidade de se estruturar o que seria um direito administrativo da crise ou da emergência, para regular as relações entre Estado e particulares durante a pandemia do novo coronavírus.

O ponto de partida desse novo direito administrativo, segundo juristas relevantes, está na crítica ao sistema de regras atualmente vigente, visto como inadequado para enfrentar uma situação de pandemia. Ela exigiria um novo direito.

Seu ponto de chegada, por outro lado, deve estar, para uns, na consolidação da primazia de determinados princípios constitucionais em detrimento das regras jurídicas e, para outros, na afirmação definitiva de que o direito deve se pautar em juízos consequencialistas, de modo que nenhum princípio “abstrato” ou mesmo regra legal seja aplicável quando tal aplicação trouxer “consequências práticas” prejudiciais. “‘Diante da necessidade, deve cessar a letra fria da lei”, sentenciou o Min. Luiz Fux, repetindo jargão conhecido, para afirmar, dias atrás, essa perspectiva consequencialista.[1].

A inaplicabilidade de regras legais tem sido defendida com o argumento de que o assim chamado “princípio” da legalidade, por ostentar essa condição de princípio, fatalmente teria sua aplicação condicionada às circunstâncias fáticas então verificadas, podendo, portanto, ser balanceado com outros princípios, como o direito à saúde, à vida etc., no que ele poderia ser restringido ou mesmo afastado.

É esta a posição de Marçal Justen Filho, em artigo recente. Em suas palavras, “exigência de norma legal como fundamento para a restrição à liberdade privada ou para a atuação estatal se constitui em um princípio. A sua aplicação envolve o sopesamento das circunstâncias e pode ser modulado para se permitir a prestação adequada dos serviços públicos, assegurar a sua continuidade e regulamentar a sua regularidade.” Ele conclui que, no “contexto presente, o sopesamento dos diversos princípios aplicáveis impõe uma solução diversa daquela até então consagrada.”[2]

Em termos práticos, essa compreensão, da qual nasce o direito administrativo da crise, permitiria o afastamento de regras como a obrigatoriedade de licitação, a vinculação ao edital, bem como algumas regras mais rígidas de controle e de fiscalização dos atos administrativos.

Apontarei o que penso serem perigos e confusões dessa interpretação.

O primeiro perigo é procedimental: o direito administrativo da crise, como logo se percebe, seria rebento não do Poder Legislativo, mas dos tribunais. Trata-se, efetivamente, da criação de um regime de exceção por um poder que, constitucionalmente, não tem prerrogativa para tanto. E nem deve tê-la.

O direito administrativo da crise, portanto, embora nutra uma saudável preocupação com a substância dos arranjos regulatórios, ignora ou faz pouco caso de uma conquista civilizatória relevante, a saber, a natureza essencialmente procedimental do sistema jurídico e, naturalmente, da criação do direito. Sem, no entanto, um procedimento próprio para a criação de normas jurídicas, que em nosso sistema não pode prescindir do Poder Legislativo, inexiste direito.

É evidente que a jurisprudência exerce papel fundamental na definição do que deve ser o direito em cada caso, inclusive decidindo casos não integralmente regulados pelo sistema jurídico, como quando de colisões entre princípios. Mas essa circunstância epistemológica inevitável não pode ser confundida com a atribuição de alguma prerrogativa legislativa ao Judiciário, tanto menos na desconsideração de que as regras gerais fincam limites às decisões judiciais.

Embora naturalmente seja possível que regras legais sejam afastadas por eventual contradição com normas constitucionais, isso deve acontecer circunstancialmente, em cada caso e observadas as condições fáticas e jurídicas de cada um deles. Situação muito diversa é a criação, de modo ad hoc, de novo sistema de regras pela doutrina e simplesmente aplicado pelos tribunais. E, no entanto, parece ser essa a ambição de algumas das propostas de um direito administrativo da crise.

O segundo perigo é reflexo do que penso ser o grande problema da ciência do direito administrativo atual: a ausência, via de regra, da conformação autêntica de suas teses com alguma teoria dos direitos fundamentais, o que se traduz em uma pobreza analítica de casos jurídicos que envolvam  colisões entre direitos fundamentais, tão comuns nesse ramo do direito.

O caso do direito administrativo da crise é, nesse sentido, bastante sintomático: fala-se em um “princípio” da legalidade, para poder relativiza-lo com maior facilidade, quando, em verdade, o texto constitucional evidencia que esse direito fundamental foi positivado como regra: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, II, CF). Direitos fundamentais, ao contrário do que se tem difundido, nem sempre são previstos como princípios, e o caso da presunção de inocência está aí para prová-lo.

A distinção entre regra e princípio não é meramente cosmética, antes atendendo a uma finalidade prática relevante: a regra exerce a função de assegurar a estabilidade da ordem jurídica e, nesse sentido, a própria segurança jurídica. Quando um direito fundamental é, então, positivado como regra, isso significa que ele não pode ser “ponderado” com outros princípios e, nesse balanceamento, vir a deixar de ser aplicado num caso concreto.

Naturalmente, não estou a afirmar que nenhuma regra legal pode ser excepcionada, especialmente quando em colisão com algum direito fundamental constitucionalmente previsto. O ponto é que a argumentação a ser construída, aqui, não deve se basear em uma suposta colisão entre o “princípio” da legalidade e o princípio colidente. Não, é o caso de conflito entre uma regra e um princípio constitucional. Se este tiver de prevalecer, a colisão normativa deverá ser resolvida com o estabelecimento, pelo princípio eventualmente prevalente, de uma cláusula de exceção àquela regra infraconstitucional.

Essa cláusula de exceção, no entanto, deve ser semanticamente vinculada às circunstâncias do caso que a justificaram. Trata-se, como se vê, de situação excepcional, que exige cuidadoso ônus argumentativo de quem pretende afastar a regra, sobre a qual deve recair presunção de validade.

Essa presunção de validade não é gratuita. Sua razão está precisamente no fato de as regras já serem, por natureza, uma opção legislativa e democrática de restrição de direitos fundamentais – ou de regulamentação deles, como se preferir. Convém retirar pré-compreensões equivocadas, aqui: não é apenas o Judiciário que interpreta a Constituição, como ele não tem a prerrogativa exclusiva de realizar juízos de restrição de direitos fundamentais, este o dilema e o resultado de qualquer ponderação de princípios. Ao contrário, ele deve, sempre, alguma deferência a essa restrição prévia realizada pelo legislador. É por isso que aquele que argumenta pelo afastamento de uma regra tem sobre si um ônus argumentativo sobremodo mais forte.

Mais uma vez: a distinção entre regras e princípios não é insistência num purismo classificatório ou semântico. Admitir que a legalidade seja tratada como princípio significa repelir a função estabilizadora das regras, tornando-as praticamente inócuas, já que, no final das contas, sua aplicabilidade aos casos concretos estaria condicionada à sua vitória em uma ponderação com os princípios colidentes. Sua presunção de validade e, logo, de aplicabilidade é afastada, e os ônus argumentativos se equiparam, tanto para quem defende o “princípio” da legalidade, como para quem defende o princípio colidente. É difícil falar em segurança jurídica e em separação dos poderes num tal cenário.

Na prática, esse direito administrativo da crise, embora não confesse, parece ver na ponderação uma panaceia para a resolução de qualquer caso jurídico, muito embora ela seja método desenvolvido para casos excepcionais, para os quais o sistema jurídico não ofereça uma resposta. A não ser como autoengano teórico, ela não pode ser utilizada para simplesmente se afastar regras pelas quais o intérprete nutra eventual antipatia ou considere prejudiciais segundo uma retórica consequencialista.

Pode parecer intuitivo defender o afastamento generalizado de regras quando se trata de assegurar um regime mais flexível de contratações públicas ou mesmo da punição de agentes públicos, mas é importante ter em mente que, por coerência, essa mesma lógica argumentativa poderia ser utilizada, por exemplo, para flexibilizar os critérios legais para o uso do poder de polícia pelo Estado. O manual do líder autoritário é elaborado com princípios de textura aberta, não com regras que apresentam razões definitivas.

Naturalmente, não sou contrário à construção de um novo regramento de direito administrativo para um novo tempo, para um novo contexto civilizacional. Mas insistir que ele seja construído à revelia do procedimento legislativo e de uma autêntica teoria dos direitos fundamentais significa insistir em uma ciência do direito administrativo surda para tudo o que ela pode aprender com a ciência do direito constitucional. Significa, numa palavra, insistir no caminho sem método que as decisões judiciais em matéria de direito administrativo, consciente ou inconscientemente, têm trilhado.

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[1] Artigo disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/04/a-licao-de-santo-agostinho.shtml

[2] FILHO, Marçal. Direito Administrativo da Emergência: Um modelo jurídico. Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/325042/direito-administrativo-da-emergencia-um-modelo-juridico ; e a versão completa em http://jbox.justen.com.br/s/Ngmno9amBAAAwAB

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