No universo do chamado “direito tributário internacional”, certamente a tributação da chamada “economia digital” é o tema que ultimamente mais tem chamado a atenção de estudiosos, governos, organizações mundiais, empresas de tecnologia e outros tantos possíveis protagonistas deste roteiro, cada qual à luz de seu interesse.
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE – vem concentrando esforços há algum tempo rumo à obtenção de um acordo multilateral que permita a tributação das chamadas “gigantes tecnológicas” pelos países nos quais essas empresas auferem receitas sem presença física local.
Basicamente, tomando-se o Google como exemplo, ele faz a monetização dos dados obtidos com os usuários das plataformas e obtém receitas substanciais provenientes de países onde estão localizados os contratantes desses serviços, mas não há qualquer presença física do gigante tecnológico nesses países. Pelas regras tradicionais dos acordos internacionais tributários celebrados entre países desenvolvidos, somente há autorização para a tributação de uma empresa por parte de um país quando esta empresa possui presença física neste país.
Assim, vários países argumentam que suas economias estão sendo exploradas sem que haja a justa contrapartida tributária, visto que o lucro do Google, no nosso exemplo, será tributado em país ou países diversos de onde estão localizados os contratantes dos serviços.
Por outro lado, iniciativas unilaterais de tributação podem configurar o descumprimento de tratados internacionais tributários, daí o esforço da OCDE na tentativa de construção de um acordo multilateral.
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Mas dada a complexidade da matéria, não está sendo e não será uma tarefa fácil, sem contar com o agravamento do problema em razão da pandemia, impulsionando os países em busca de receitas para auxílios econômicos já comprometidos nas despesas dos respectivos tesouros.
Mas o que a Organização das Nações Unidas tem a ver com tudo isso?
Primeiramente, precisa-se entender qual é o papel da ONU no chamado “direito tributário internacional”. É sabido que os países celebram tratados internacionais tributários para evitar a chamada dupla tributação da renda e para combater evasões fiscais.
Quando negociam tratados, a maioria dos países desenvolvidos segue um modelo de tratado construído ao longo dos anos pela OCDE (primeira publicação em 1963). O modelo serve, portanto, como guia para a negociação. Mas esse modelo da OCDE não é bom para os países em desenvolvimento, por isso a ONU, desde 1980, editou um modelo de convenção para ser utilizado por eles como guia quando negociam tratados tributários com países desenvolvidos. Por quê? Porque o modelo da ONU protege os países em desenvolvimento. Lembrando que os tratados são celebrados pelos países no interesse de suas arrecadações tributárias.
Vejamos um exemplo. Suponhamos que um residente brasileiro está obrigado a pagar royalties a um residente no exterior. O Brasil, neste caso, é o chamado “país da fonte” (de onde “sai” o dinheiro) e o país estrangeiro é o chamado “país da residência” (onde “reside” o beneficiário dos royalties).
Pelo modelo da OCDE, esses royalties somente podem ser tributados no país estrangeiro. Pelo modelo da ONU, parte desses royalties podem ser tributados no Brasil. Se o Brasil, portanto, está assinando um tratado com um país desenvolvido, este país pressionará a negociação para aplicar o modelo da OCDE, ou para que a fatia atribuível ao Brasil seja a menor possível. De novo, cada país negocia o tratado no interesse de sua arrecadação tributária.
No caso da prestação de serviços pelo Google, acima retratada, se o acordo entre dois países seguir o modelo da OCDE, o país onde estão localizados os contratantes dos serviços está impedido de tributar os rendimentos auferidos em seu território (“país da fonte”) pelo artigo do tratado que trata da tributação dos lucros das empresas. Eis a razão de todo o debate em torno do tema, conforme já comentado acima.
No entanto, se o acordo segue o modelo da ONU, a análise poderá no futuro, em tese, resultar em conclusões distintas.
Recentemente a ONU, por meio de seu Comitê de Especialistas em Cooperação Internacional sobre Questões Tributárias, sugeriu duas propostas que ainda estão em discussão: i) a inclusão de softwares de computador no conceito de royalties expresso no artigo 12 do modelo; e ii) a inclusão de um artigo 12B no modelo para que sejam tributados no país da fonte os chamados “serviços digitais automatizados”.
Essa expansão de conceitos nos traz duas conclusões preliminares: a) os serviços prestados por meio da chamada “economia digital” estariam em tese abrangidos pela possibilidade de tributação no país da fonte; b) se a ONU recomenda a inclusão dos dispositivos em tratados internacionais, está sinalizando que a adoção de medidas unilaterais, como vem tentando o Brasil, não seria a melhor solução.
Aliás, é digno de registro que o Brasil, em 2014, incluiu no conceito de serviços técnicos os serviços “decorrentes da utilização de estruturas automatizadas.” Isso permite à Receita Federal tributar serviços automatizados prestados por empresas estrangeiras a residentes no país, mesmo que haja tratado internacional. A inclusão se deu por instrução normativa, logo por uma ferramenta distinta da lei. Ora, se já há questionamentos sobre a ampliação por meio de “lei” de determinados conceitos empregados pelos tratados internacionais tributários, pois somente eles, tratados, é que poderiam fazê-lo, maior é a dúvida quando se trata de alargamento infralegal.
O debate está longe de encerrar e tratados, ainda que multilaterais, levam tempo até que sejam ratificados e gerem efeitos, mas talvez o passo dado pela ONU possa simplificar a solução do problema. Ou não!
O episódio 45 do podcast Sem Precedentes trata de dois julgamentos que irão começar no Supremo Tribunal Federal (STF) e que interferem diretamente nas relações da Corte com o governo Bolsonaro e o Congresso Nacional. Ouça: