Classificada como uma das sociedades mais desiguais do mundo, a sociedade brasileira é um nítido exemplo de desigualdade social e econômica em termos de concentração de renda. Na obra “Desenvolvimento, desigualdade e reforma tributária no Brasil”, Fagnani e Rossi (2018) jogam luz sobre o tema, mencionando o estudo realizado por Marc Morgan em “World Wealth and Income Database”, no qual o autor cita, de modo alarmante, que “entre 2001 e 2015, a fatia da renda nacional dos 10% mais ricos da população brasileira passou de 54,3% para 55,3%, enquanto a participação da renda dos 50% mais pobres passou de 11,3% para 12,3%. A renda nacional total cresceu 18,3%, mas 60,7% desses ganhos foram apropriados pelos 10% mais ricos, contra 17,6% dos 50% mais pobres”.
De acordo com Orair e Gobetti (2017) apud Fagnani e Rossi (2018, p. 5), a elite social brasileira concentra a majoritária parte dos rendimentos, ainda que seja proporcionalmente inferior ao restante da população brasileira, de forma que: “[…] em 2013, no topo da pirâmide social estavam 71.440 pessoas com renda mensal superior a 160 salários mínimos, totalizando rendimentos de R$ 298 bilhões e patrimônio de R$ 1,2 trilhão. Essa elite (0,3% dos declarantes [do Imposto de Renda] ou 0,05% da população economicamente ativa) concentra 14% da renda total e 22,7% de toda a riqueza declarada em bens e ativos financeiros. Esses extremamente ricos apresentam elevadíssima proporção de rendimentos isentos de imposto de renda”.
Além dessa extrema discrepância em termos de concentração de renda, no Brasil a pobreza tem raça pré-definida e este fato está enraizado no comércio de escravizados de origem africana no país durante três séculos. Os impactos desse regime sofisticado de exploração são observados até os dias de hoje, uma vez que aquele submetido à escravidão, sob o foco do Direito que regulava as relações à época, sequer performava um papel social. De maneira mais aprofundada, Katia Mattoso (2016) explica em sua obra “Ser escravo no Brasil: séculos XVI-XIX” que “não se imagina que o cativo, transformado em escravo, pudesse adquirir uma personalidade, mesmo estando inserido na sociedade, aparentemente ocupando seu lugar no interior das relações de dominação senhor-escravo”.
Isso resulta em disparidades sociais orientadas pela raça, impondo a pretas e pretos a ocupação majoritária de classes sociais mais pobres. O exemplo mais pertinente são as mulheres negras, que, segundo dados do Ipea, representam 73,8% da fatia da população entre extremamente pobre (i.e., renda domiciliar inferior a R$ 67) e vulnerável (renda domiciliar superior a R$ 134 e inferior ao salário mínimo). Em contrapartida, as mulheres brancas, em mesma situação econômica, representam 47,5%.
Fagnani e Rossi (2018) trazem os dados expostos pelo estudo da Oxfam (2017), que distinguem os rendimentos médios percebidos por homens e mulheres, tanto negros quanto brancos, evidenciando que: “[…] em média, as mulheres ganhavam 62% do valor dos rendimentos dos homens; e os brancos, o dobro dos negros em 2015”. Vale ressaltar que a Oxfam estima que — se mantido o ritmo de inclusão de negros observado nos últimos 20 anos — a equiparação da renda média com a dos brancos ocorrerá somente em 2089.
Diante de todo esse contexto, veja-se que o racismo estrutural é pressuposto dos debates acerca dos aspectos socioeconômicos do Brasil. Em outras palavras, somente estaremos hábeis a discutir economia brasileira se debatermos o racismo, inclusive quando tratarmos do nosso cenário fiscal.
É sabido que a política fiscal pode servir de instrumento na busca da equidade tributária e da justiça fiscal, sobretudo por se tratar do meio de planejamento do Estado para estruturar a destinação da receita tributária obtida, seja por meio de políticas públicas ou de incentivos/desestímulos fiscais. Nesse tocante, Krieger (2019) define política fiscal como: “A forma que os Estados optam por estruturar seu sistema tributário a fim de viabilizar o desenvolvimento dos valores constitucionalmente assegurados e executar suas políticas públicas em consonância com os valores morais e de justiça que imperam em determinada sociedade”. Além disso, os Estados devem definir os gastos públicos e os impostos incidentes observando as ideias morais vigentes, de forma a se adequar ao momento histórico-social contemporâneo.
Por meio desse comportamento, Krieger aduz que a política fiscal pode assumir duas funções: fiscal e extrafiscal. De maneira objetiva, a política de função fiscal traduz-se como a responsável por implementação de políticas públicas; enquanto a sua função extrafiscal poderá ser, também, indutora de estímulos no padrão de comportamento dos cidadãos. A política fiscal não é neutra, visto que revela as opções tomadas pelo Estado, direcionando a economia e o desenvolvimento estatal, traduzindo o fomento de iniciativas de interesse público ou os aspectos que o Estado pretende desestimular. Afinal, é por meio do alinhamento de expectativas entre governo e cidadãos que se encontrará o estímulo do contribuinte para a realização do pagamento dos impostos, de forma que se sentirá mais impelido a arcar com a contraprestação que o incentive com os melhores resultados.
Ademais, o sistema tributário é desenhado com base em critérios estabelecidos pela política fiscal dos países. Desse modo, o sistema tributário brasileiro é desenvolvido dentro de uma lógica que visa, além do custeio do Estado, os pressupostos estabelecidos em um Estado democrático de Direito, como a igualdade entre cidadãos e a melhoria de sua qualidade de vida, além do desenvolvimento de políticas redistributivas (i.e., políticas que reconheçam a existência de desigualdades, desde que os menos favorecidos sejam socialmente beneficiados).
Desse modo, o desenho da política fiscal brasileira deve levar em consideração a raça como fator de discrepância econômica entre as classes mais baixas no País. Afinal, tal grupo de indivíduos possui pouca ou quase nenhuma capacidade contributiva, mas, ainda sim, paga os mesmos valores em tributos incidentes sobre o consumo, em condição de contribuinte de fato (consumidor final que paga o preço embutido com a carga tributária incidente na operação), como assertivamente apontado por Derzi (2014 apud Krieger, 2019) ao afirmar que “no Brasil, uma família que aufere de 1 a 2 salários mínimos paga em tributos aproximadamente 50% do que ganha”.
Portanto, depreende-se que a distribuição da carga tributária não é feita de forma adequada, tendo em vista ao princípio da capacidade contributiva e, consequentemente, aos princípios constitucionais tributários da equidade e, de certa forma, ao do não confisco.
Importante destacar, ainda, que por meio da alta carga tributária sobre o consumo, o Estado onera de forma expressamente superior os bens essenciais à subsistência da parcela menos abastada da população brasileira, incorrendo em ofensa à concepção da dignidade humana, considerando o acometimento ao mínimo existencial destas famílias de contribuintes (KRIEGER, 2019, p. 119). Tal fato se revela mais gravoso ao observarmos que a maior parte da população de baixa renda brasileira é negra em razão dos eventos históricos e sociais vivenciados por essa população no Brasil desde o período imperial.
Em conclusão, uma vez demonstrada a desigualdade vivenciada no país, a qual denota a ineficiência da estruturação de uma política fiscal que busque a justiça social e a redistribuição da renda, resta claro que o sistema acaba por tolerar a marginalização contínua de uma parcela da população historicamente afetada por sucessivos episódios de segregação e desigualdade social.
Não obstante, o debate tributário racializado deve explorar os impactos da arrecadação tributária sobre grupos de indivíduos historicamente impostos a diversas desvantagens sociais e as formas de desenvolver uma política fiscal redistributiva orientada pela raça, tornando-se necessária a produção de reformas tributárias antirracistas.