Coronavírus

Surpresa positiva do STF no julgamento da MP 966

O terraplanismo de alguns controladores públicos saiu vencido da sessão do STF

Toffoli e AGU no julgamento da constitucionalidade da MP 966
Dias Toffoli e José Levi Mello do Amaral Júnior

O julgamento do dia 21 de maio, em que o Supremo Tribunal Federal examinou a constitucionalidade da Medida Provisória 966, acabou significando a consolidação da reforma que a Lei 13.655, de 2018, havia feito na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). Foi um trabalho baseado em pesquisas acadêmicas de anos, amadurecida longamente pelo Congresso Nacional, que fez emendas importantes e gerou uma lei histórica. Seu objetivo foi ajudar a recuperar a segurança jurídica que o país havia perdido nas várias esferas, administrativa, controladora e judicial. Desde então, o direito público brasileiro mudou. Para muito melhor.

Logo após a aprovação do projeto dessa lei no Congresso, no duríssimo debate que se seguiu à sanção, recheado de fake news, um ex-ministro do STF – acionado por alguns controladores públicos que receavam a inviabilização de seu voluntarismo, por conta das novas normas – disse em rede nacional que o texto padecia de “inconstitucionalidade enlouquecida”. Agora, o plenário do STF afirmou com ênfase que essa opinião estava redondamente errada. A LINDB foi um grande avanço e o STF também o percebeu.

No julgamento de várias ADIs em face da MP 966 (algumas que, inclusive, pretendiam respingar na LINDB), o STF referendou a constitucionalidade do preceito mais polêmico da LINDB, o art. 28. Mais que isso: declarou que essa lei tem de balizar juridicamente a interpretação e a atuação dos órgãos de controle, que não podem ignorá-la ou distorcê-la.

Nesses dois anos desde a mudança da LINDB, a comunidade acadêmica procurou explicá-la (como nesta ampla publicação) e defendê-la, reconhecendo que seus múltiplos avanços foram fundamentais, inclusive em favor da segurança jurídica dos gestores públicos de boa fé, sem trazer qualquer prejuízo para o bom controle. Mas persistia um movimento contra a LINDB, tentando derrubá-la ou torná-la inócua. De tempos em tempos, retornava a defesa de um controle público personalista, que se arroga o direito de presumir a má fé de gestores.

Desde a edição da LINDB, houve algumas críticas e outros tropeços, mas o tempo comprovou que o bom gestor público merece ser respeitado. Pode fazer escolhas e bem gerir a coisa pública, sem medo de ser responsabilizado injustamente por isso. O controle externo é necessário, mas precisa ser orientado pelas consequências da decisão controladora, bem como pelas circunstâncias fáticas que levaram o gestor a adotar esta ou aquela decisão. Mais: não é qualquer erro que pode gerar a responsabilização dos gestores públicos. Assim como os juízes (que têm suas decisões reformadas todos os dias) e os membros do ministério público (que têm suas ações civis públicas julgadas improcedentes), também o administrador público erra e não pode ser responsabilizado pessoalmente por isso se o erro não for grosseiro, nem cometido com dolo.

Ou seja, as decisões administrativas podem ser tomadas e devem ser controladas, mas isso não implica a automática responsabilidade civil e administrativa da pessoa do gestor, caso o controlador dela discorde. Para que possa ser exercida com responsabilidade, a função criadora do gestor público deve ser prestigiada. Inclusive para, se erros ocorrerem, servirem de aprendizado.

A MP 966, que especificou a incidência da LINDB para casos de gestão vinculados à pandemia da COVID-19, além de repetir os arts. 22 e 28 da LINDB, recuperou uma regra que estava no parágrafo primeiro do art. 28 da LINDB e havia sido vetada à época da sanção da lei 13.655, isso por pressão enfática e pública de alguns controladores, com destaque para ministros do Tribunal de Contas da União, que alegavam inconstitucionalidade grosseira. A MP 966 excluiu expressamente, do conceito de erro grosseiro, que gerará responsabilização, os comportamentos legítimos de gestores que decidem de boa fé baseados em pareceres técnicos. Era o que dizia o texto vetado. Agora, o STF reconheceu que não havia razão nenhuma para o veto e que se tratava de norma bem relevante.

O importante é que o STF firmou, em julgamento de grande alcance, o entendimento de que se deve proteger o gestor de boa fé e de que também a atividade dos controladores deve observar limites jurídicos. O voto do min. Gilmar Mendes, que se alinhou ao relator min. Luis Roberto Barroso, foi significativo quanto a isso. Foi um duro golpe na visão favorável a um controle público curandeiro, inspirado em voluntarismo pessoal. O STF se pronunciou contra o controle que gera o apagão das canetas. Reconheceu ainda que a LINDB é uma lei geral de hermenêutica, com parâmetros para bem interpretar e aplicar outras leis de efeitos concretos, inclusive a MP 966. O STF foi enfático ao reconhecer que não se responsabiliza o gestor que age de boa fé, apoiado em parâmetros jurídicos e técnicos adequados. E mais: afirmou que impedir a submissão de gestores à responsabilização objetiva nada tem a ver com dar salvo conduto para o ilícito e a improbidade dolosa.

O STF aproveitou para, por meio de interpretação conforme, construída pelo relator Luis Roberto Barroso, com a colaboração dos outros ministros, incluir na MP 966 a proibição expressa de que, em temas ligados à gestão da pandemia, autoridades terraplanistas submetam a população a medidas sem qualquer base técnica. Considerando o contexto em que estamos, compreende-se a preocupação do tribunal.

Por fim, o STF reconheceu, citando-as nominalmente, que as pesquisas acadêmicas de várias instituições, além de fundamentais na construção da LINDB, também têm sido capazes de identificar e de propor correções contra desvios no controle público, que também ocorrem. O STF fez, assim, um chamado para que os controladores públicos também tenham humildade e levem a sério o que as pesquisas no campo jurídico têm a lhes dizer. O terraplanismo de alguns controladores públicos saiu vencido.

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