Lava Jato

Sergio Moro: decisões julgadas em turma não podem ser revistas por plenário do STF

No julgamento de suspeição ou incompetência, uma decisão de turma não é recorrível e não vale menos do que uma em plenário

Sergio Moro suspeição
O ex-juiz Sérgio Moro, que já teve 2 votos no STF favoráveis à declaração de sua suspeição ao julgar Lula. (Credito: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

A decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), que monocraticamente concedeu habeas corpus (HC) ao ex-presidente Lula, reconhecendo a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para julgar as denúncias ali oferecidas pelo Ministério Público Federal (MPF), em HC da competência, não possui recursos ao plenário do STF, tampouco a uma eventual futura decisão, da 2ª Turma do Supremo, sobre a suspeição do ex-juiz Sergio Moro (HC da suspeição).

A primeira coisa que precisa ficar clara é que os órgãos fracionários do Supremo Tribunal Federal, isto é, as turmas, são o próprio Supremo Tribunal Federal: uma decisão adotada em turma não vale menos do que uma em plenário. Por isso, a comunicação entre as turmas e o plenário através de recursos se dá em hipóteses muito restritas.

O Regimento Interno do STF (RISTF) prevê dois recursos que levam ao Pleno causas decididas colegiadamente por uma das Turmas: os embargos de divergência e os embargos infringentes, mas apenas para decisões das turmas em recursos extraordinários e agravos de instrumento onde são questionadas normas do direito federal.

Não são recursos admitidos para contestar decisões em habeas corpus e o Supremo já cansou de decidir assim: nem os embargos de divergência (cf. ARE 1067392 EDV-AgR, Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, p. 29.10.20200), tampouco os infringentes (cf. RHC 165476 EI-AgR, Pleno, Rel. Min. Alexandre de Moraes, p. 1.6.2020) podem ser usados como recursos em habeas corpus.

Pelas regras regimentais, o único recurso que poderia ser contra a decisão monocrática de  Fachin no HC da competência seria o agravo regimental (para forçar uma decisão colegiada da 2ª Turma) ou os embargos de declaração.

Ao final, como mencionado, ambos seriam julgados na turma, que é o órgão competente para julgar definitivamente os habeas corpus.

Um futuro julgamento do HC da suspeição, por já ser colegiado, só poderia ser atacado por embargos de declaração, dirigidos à própria 2ª Turma para sanar qualquer obscuridade na decisão.

Mas o caso concreto não é tão linear. Por qual razão, então, o HC da competência seria julgado originalmente pelo plenário?

O HC da competência foi distribuído, por prevenção, ao ministro Edson Fachin, enquanto integrante da 2ª Turma. Antes de iniciar o julgamento, todavia, Fachin “afetou” o HC da competência ao plenário, com claro amparo regimental.

Mas, diante dos embargos de declaração opostos pela defesa (embargos estes que seriam julgados pela 2ª Turma), em que se arguia, entre outras coisas, o indevido deslocamento da causa ao plenário, o ministro Fachin reconsiderou sua decisão e devolveu o processo à 2ª Turma. Em seguida, concedeu a ordem para, reconhecendo a incompetência, anular todos os atos decisórios tomados pelo juízo de Curitiba.

A decisão monocrática no HC da competência teria, então, dois elementos possíveis de serem questionados: o mérito da decisão, isto é, a declaração da incompetência, ou a “desafetação” do plenário.

O mérito, como já mencionado, poderia ser questionado através de embargos de declaração ou agravo regimental, ambos para a própria 2ª Turma. E a “desafetação”?

A decisão que afeta ou desafeta um processo ao plenário é irrecorrível, como decidiu o Pleno, ao julgar o HC 143.333 (cujo paciente era Palocci), em 2018. E isso não se discute. Mas não é irretratável –  tanto que o ministro Edson Fachin se retratou -, reconsiderando a decisão que originalmente havia enviado o HC da competência ao plenário.

Um pedido de reconsideração sobre a decisão da “desafetação” do plenário seria analisada apenas e tão somente pelo ministro Edson Fachin – daí sua baixíssima possibilidade de sucesso.

Diga-se com toda clareza: admitir que embargos de declaração em habeas corpus cujo mérito já foi decidido no âmbito da Turma possa ser levado ao Plenário é admitir, indiretamente, embargos infringentes, o que é expressamente vedado pelo Regimento Interno do STF e pelos próprios precedentes da Corte, acima elencados.

Tentando analisar todas as demais hipóteses possíveis: ao invés de recursos, haveria ações autônomas de impugnação da decisão do HC da competência?

Uma Reclamação que eventualmente atacasse a legalidade da decisão de “desafetação”, isto é, de usurpação da competência do Pleno, além de frágil tecnicamente (dada as previsões regimentais já indicadas), encontraria também a dificuldade de superação de decisão do plenário do STF, tomada na Reclamação 34.367 em 24.8.2020, na qual afirmaram que não é cabível reclamação contra ato de ministro do STF.

Caberia mandado de segurança, impetrado pelo PGR? Em tese, não. No MS 36.422, julgado em 22.6.2020, reiterou-se a tese de que não cabe mandado de segurança contra decisão de ministro do STF, salvo “teratologia, ilegalidade ou abuso flagrante”.

E uma suspensão de segurança ou de liminar dirigida diretamente ao Presidente do STF, ministro Luiz Fux? A decisão tomada no HC da competência não foi liminar, tampouco em mandado de segurança, e não poderia ser usada no caso. Ademais, mesmo uma interpretação muito criativa e ativista teria dificuldade em defender a suspensão da decisão do ministro Edson Fachin por “grave comprometimento à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”.

Não se ignora que o ministro Fachin, diante da postura do ministro Gilmar Mendes em trazer seu voto-vista, suscitou Questão de Ordem para o Presidente do STF. Sem decisão do Ministro Fux, suscitou de novo, na Turma, e perdeu por 4 a 1. O silêncio da Presidência talvez já revele que o papel do Presidente é dirimir dúvidas quanto à competência interna, mas parece não haver espaço para que ele reveja a decisão da Turma na Questão de Ordem. Esse ângulo parece realmente superado.

Restariam apenas manobras regimentais, movidas pelo dissabor de setores da sociedade ou mesmo da Corte quanto ao mérito das decisões, e, nesse diapasão, ilícitas. Há algo de freudiano na tentação da gambiarra regimental: torturar o instituto do juiz natural com vistas a proteger alguém que precisamente tem sua imparcialidade e competência questionadas e parcialmente reconhecidas pelo STF. E como se sabe, dois errados não fazem um certo.


O episódio 52 do podcast Sem Precedentes discute os bastidores e as desconfianças envolvendo o caso Lula no Supremo Tribunal Federal. Ouça: