HIV

Saúde pública: o que a África do Sul e o STF podem nos ensinar?

Quando se fala em direitos fundamentais, também se fala de deveres públicos

Crédito: Pixabay

A África do Sul é um país lindo, com maravilhosa história de superação que vem sendo construída há décadas. Dá importantes exemplos ao mundo, inclusive em sua Constituição e na experiência de sua Suprema Corte. Mas, existe também uma experiência que vem de lá quanto ao papel reservado aos governantes frente a questões de saúde pública.

Em 2006, ao depor em um processo em que era acusado de estupro, o futuro presidente da África do Sul, Jacob Zuma, afirmou que o sexo teria sido consensual. E foi além: disse que sabia que a mulher era HIV positiva, mas que depois havia tomado uma ducha para evitar o contágio. Para ele, guerreiro Zulu, bastaria uma ducha para reduzir o risco de infecção – por isso, não havia usado preservativo. Para além do estupro, isso foi estarrecedor.

À época, a África do Sul tinha o maior número de pessoas com HIV do globo – e a manifestação desse homem público de suma importância nacional foi repudiada mundialmente, por médicos e educadores de práticas preventivas contra a irresponsabilidade na contaminação. Posteriormente eleito presidente, Zuma voltou atrás e defendeu o uso de preservativos em campanhas públicas.

Seres humanos que são, Zulus podem contrair doenças sexualmente transmissíveis. O mesmo se diga de outras doenças virais, que também outros grupos étnicos de porte atlético, podem contrair. Os vírus não escolhem seus destinatários, mas são escolhidos por quem quer que faça determinado contato permitindo a sua entrada. Daí o movimento acertado do então presidente da África do Sul em reconhecer a necessidade do uso de preservativos para coibir a propagação de doenças sexualmente transmissíveis.

A falsificação da realidade coloca em risco a vida das pessoas. Nenhum guerreiro, Zulu ou não, é imune por natureza ao vírus do HIV. Nenhum banho remove o vírus do HIV. Assim como nenhum medicamento cuja toxidade é desconhecida e cujos testes não foram feitos em sua integralidade, pode significar a cura de doenças fatais – como a experiência brasileira nos faz saber.

Saltando da África do Sul para o Brasil, rememoremos o caso da “pílula do câncer”: a  fosfoetanolamina, substância que, desenvolvida em laboratório universitário da USP, foi objeto de milhares de ações judiciais que pretendiam obter o medicamento para a cura de pacientes terminais.

Todavia, a agência reguladora setorial – ANVISA – não reconheceu tal substância como medicamento, o que impedia sua produção e venda. O produto não havia passado pelos protocolos internacionais e não poderia ser reconhecido e comercializado.  Nesse turbilhão, o Congresso Nacional editou a Lei 4.639/2016, que autorizava a produção e comercialização da “pílula do câncer”.

A lei foi sancionada pela Presidente da República e, imediatamente em seguida, objeto de ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5.501). O voto do relator, Min. Marco Aurélio, consignou que a Lei 4.639/2016 violava o art. 196 da Constituição, que preceitua ser a saúde “direito de todos e dever do Estado”. A lei era inconstitucional.

Afinal, consigna o voto do Min. Marco Aurélio: “Ao dever de fornecer medicamentos à população contrapõe-se a responsabilidade constitucional de zelar pela qualidade e segurança dos produtos em circulação no território nacional, ou seja, a atuação proibitiva do Poder Público, no sentido de impedir o acesso a determinadas substâncias.”

E, mais adiante: “O direito à saúde não será plenamente concretizado sem que o Estado cumpra a obrigação de assegurar a qualidade das drogas distribuídas aos indivíduos mediante rigoroso crivo científico, apto a afastar desenganos, charlatanismos e efeitos prejudiciais ao ser humano. […] O fornecimento de medicamentos, embora essencial à concretização do Estado Social de Direito, não pode ser conduzido com o atropelo dos requisitos mínimos de segurança para o consumo da população, sob pena de esvaziar-se, por via transversa, o próprio conteúdo do direito fundamental à saúde.”

Vejam quão revelador é esse voto, sob dois aspectos. O primeiro, ao definir que direitos fundamentais – como o importantíssimo direito à saúde – não podem ser submetidos a desvarios insensatos, mas se submetem a requisitos mínimos de boas práticas e técnicas segundo protocolos internacionalmente aceitos. O segundo, ao revelar que o direito à saúde exige que o Estado proíba ações que potencialmente possam atentar contra o bem-estar das pessoas (individual ou coletivamente).

Tal voto foi acompanhado pela maioria do Pleno do STF, fazendo com que a ratio decidendi do acórdão proferido na AD 5.501 seja de obrigatório cumprimento pela Justiça brasileira. Isto é, as políticas se saúde pública devem respeito a um mínimo de requisitos técnicos, estampados em protocolos internacionais. Se houver dúvidas ou incertezas, se necessita precaver e proteger – jamais inovar e correr o risco de implementar tragédias.

Não nos esqueçamos de que os protocolos de saúde manejam vida e morte. O controle do Estado sobre aqueles é orientado pelo dever de proteção e cuidado. É isto que se reflete na decisão do STF acerca da inconstitucionalidade da lei da “pílula do câncer” e que precisa orientar as escolhas públicas.

Logo, o que a África do Sul e o STF têm em comum? A experiência daquele país, que brindou a humanidade com pessoas da envergadura de Nelson Mandela, Nadine Gordimer e J. M. Coetzee, revela que nossas crenças precisam ser deixadas de lado em momentos decisivos e que a responsabilidade só aumenta em razão do cargo ocupado. Já, o nosso STF, ensina que o Estado não deve deixar “em segundo plano o dever constitucional de implementar políticas públicas voltadas à garantia da saúde da população” (excerto do voto do Min. Marco Aurélio).

Todo processo de aprendizado é custoso; o que é  admissível – afinal, ninguém nasce sabendo, diz o senso comum. Demanda a realização de tarefas: diárias, difíceis e desafiadoras. Exige a superação. O ato do ex-presidente sul-africano Jacob Zuma e a decisão do STF servem a esse propósito pedagógico, com o qual sabemos que os protocolos de saúde devem ser obedecidos. Aprendamos com ambos.

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