Mercado

Rescisão e adaptação de contratos em razão de guerras e pandemias

Por três razões a arbitragem comercial parece o melhor mecanismo para resolver essas disputas

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Crédito: Pixabay

Bem no início do confinamento em decorrência da COVID-19, com a proibição do funcionamento do comércio em dezenas de países do mundo inteiro, a icônica Adidas anunciou que suspenderia o pagamento dos aluguéis das lojas que ocupa pelo mundo.

Depois de muita pressão por parte da mídia e da política, a empresa recuou parcialmente. De qualquer forma, o exemplo demonstra que estamos diante de uma onda de tentativas, por parte de agentes econômicos, para rescindir contratos ou exigir sua adaptação, especialmente no que se refere aos comerciais de longo prazos (e.g. leasing ou prestação de serviços) ou aos contratos de execução diferida (e.g. “signing” e “closing” de compra e venda de uma empresa).

Diante desta suposta “onda”, rapidamente surgiram novas leis ao redor do mundo, que podem trazer benefícios no âmbito da insolvência empresarial, as quais não se confundem com a solução dos problemas especificamente contratuais. À luz de tal ativismo sempre vale a pena reafirmar os princípios do direito contratual e lembrar os exemplos históricos, especialmente da jurisprudência dos anos 1920, e as decisões relativas às consequências da revolução Iraniana, em 1979.

Nestas ocasiões as jurisprudências alemã e internacional criaram exceções ao princípio “facto sunt servanda” (“o contrato vincula”) que não somente se encaixam perfeitamente no direito brasileiro, mas também na resolução dos desafios da pandemia. Por que podemos, frente a uma pandemia, aproveitar de uma jurisprudência que tem como ponto de partida uma guerra ou uma revolução? A primeira etapa da resposta é, porque guerra, revolução e pandemia são eventos os quais, por si só, soam irrelevantes relativamente à validade de contratos; a segunda etapa, porque os eventos têm efeitos colaterais parecidos.

Exemplo: o Superior Tribunal da Alemanha (o Reichsgericht) classificou a primeira guerra mundial como um fato que não justificava a interferência nos contratos comerciais. O tribunal apenas mudou sua abordagem, a partir dos anos 1920, à luz da hiperinflação e do colapso da economia – consequências da guerra. A causa da criação de exceção ao princípio “facto sunt servanda” foram as dramáticas distorções sofridas pela economia (e.g. desvalorização intensa da moeda).

A respeito destas os efeitos da atual pandemia são bastante parecidos com os citados exemplos históricos. A nossa moeda perdeu praticamente a metade do seu valor, o mercado de trabalho encolherá como nunca antes, alguns segmentos comerciais proibidos de funcionar (e.g. shopping centers) ou submetidos às condições que praticamente inviabilizam seu funcionamento (e.g. aviação e turismo).

Antes de abordarmos as exceções é relevante explicar a raiz do “sagrado” princípio do direito contratual. O ponto de partida do direito contratual, desde suas origens no direito romano até o nosso Código Civil, é o princípio “pacta sunt servanda”, que se fundamenta no consenso das partes, manifestação da autonomia e iniciativa privada. Do ponto de vista da economia, os contratos constituem-se em ferramenta para implementar a ideia de mercado na economia real. Portanto, qualquer correção de um contrato que não resulte do consenso das partes é, ao mesmo tempo, uma exceção ao princípio da “pacta sunt servanda” e à ideia de mercado.

Respeitar o princípio basilar do direito contratual traz segurança jurídica e estabilidade dos parâmetros para o planejamento dos agentes econômicos. Consequentemente, terceiros (o legislador e tribunais) não deveriam facilmente intervir nos contratos, até porque nada garante que um juiz consiga acertar o preço ou o equilíbrio “justo” melhor que as partes especialistas nos respectivos mercados. Evidentemente este entendimento vale, desta forma acentuada, para contratos comerciais ou empresarias. O direito do consumidor é e deve ser um mundo à parte.

Todavia, cada regra precisa de exceções que evitem, em circunstâncias excepcionais, resultados evidentemente injustos. O entendimento do balanço entre regra e exceção não é novo no direito contratual. Em 1920, o Reichsgericht ajustou o preço estabelecido em um contrato de fornecimento de vapor com base na cláusula tácita “rebus sic stantibus” (“está a base do negócio como está”), provavelmente não uma invenção dos romanos, mas dos canonistas da Idade Média.

Pouco tempo depois desta decisão emblemática o superior tribunal alemão tomou uma série de decisões parecidas, mas fundamentou a intervenção nos contratos no instituto “alteração ou falta de base macro do negócio jurídico” o qual, por sua vez, reside na cláusula da boa-fé (artigo 242 e 313 do Código Civil da Alemanha).

O grande doutrinador brasileiro Orlando Gomes acentuou no livro Contratos a similaridade entre o conceito da boa-fé do direito alemão e brasileiro (artigo 422 do Código Civil Brasileiro), citando explicitamente o dever das partes agirem com lealdade e confiança recíprocas, fundamento da obrigação de renegociar em caso de uma “alteração ou falta da base macro do negócio jurídico”. De todo modo, nem sempre tal tentativa, seja com ou sem mediador, chegará à uma solução amigável.

Portanto, vale relembrar os critérios desenvolvidos pelo Reichsgericht em 1920. Segundo o tribunal uma adaptação do preço de um contrato é apenas justificada à luz do imprevisível transcurso e resultado da primeira guerra mundial e da radical mudança de todas as circunstâncias econômicas.

Além disso, é necessário que ambas as partes demonstrem a vontade de continuar a relação contratual; uma continuação forçada foi explicitamente excluída. Sabendo da gravidade da intervenção, o tribunal acentuou que apenas a drástica mudança da realidade socioeconômica, causada pela guerra, justifica a adaptação, deixando claro que não é suficiente apenas a imprevisibilidade de mudanças em geral. De qualquer modo, a adaptação do contrato precisa ser elaborada de forma que respeite os interesses de ambas as partes, uma vez que a guerra (ou a pandemia) e suas consequências socioeconômicos não integram a esfera de riscos de apenas uma das partes.

Nesta mesma linha o Superior Tribunal de Justiça (pós-guerra chamado Bundesgerichtshof) decidiu, em 1984, sobre um caso surgido em razão da revolução no Iran, em 1979. Uma cervejeira da Alemanha e uma distribuidora no Iran celebraram um contrato de compra e venda de cerveja em lata. A mercadoria chegou parcialmente destruída ao seu destino.

Em razão do ocorrido as partes fecharam, em 1978, transação que incluiu o futuro fornecimento de cerveja a um preço reduzido além de perdas e danos relativos à revenda frustrada (latas quebradas). Logo no início da revolução islâmica a venda de bebida alcoólica no Iran foi proibida. As partes então iniciaram um processo no judiciário alemão sobre a validade da transação. O superior tribunal alemão entendeu que se tratava da alteração da base jurídica “macro” do negócio e não podia ser atribuída à esfera de risco de nenhuma das partes. Neste sentido, mudou o conteúdo da transação de forma a respeitar os interesses das partes.

A pandemia do Corona Vírus demonstra similaridades com ambos casos, o da primeira guerra mundial e o da revolução. Do ponto de vista das partes trata-se de um choque exógeno que não poderá ser atribuído à esfera de risco de apenas uma das partes. Há, portanto, grande diferença com a crise do sistema financeiro internacional, surgida em 2009, na esfera dos bancos e demais agentes financeiros.

O nosso direito contratual possui várias ferramentas (artigos 113, 393, 421, 421-A, 422, 478, 479 do Código Civil) para resolver as principais distorções nas relações contratuais causadas pela crise: drástica desvalorização do real, queda dramática da demanda em muitos setores e a, de fato, proibição do funcionamento de algumas atividades em razão do necessário confinamento sem prazo determinado.

Não precisamos novas leis contratuais adaptadas na correria. A qualidade do direito contratual depende em boa parte da sua estabilidade. Nos últimos 170 anos, o Brasil adotou apenas três ordens de regramento contratual: o Código Comercial de 1850, o Código Civil de 1916 e o Código Civil de 2002 (em boa parte idêntico ao anterior). Neste mesmo tempo foram adaptadas e revogadas quase dez constituições. Na Alemanha costuma-se ensinar que “o direito constitucional vem e vai, o direito civil fica”.

Por fim, cabe responder à questão de quem deveria ajustar contratos empresariais frente à uma distorção profunda causada por uma guerra ou uma pandemia. Juristas, especialmente juízes do primeiro e segundo graus, focam, em regra, na análise caso a caso (justiça concreta). Por outro lado, o economista pensa nas consequências, pela intervenção nos contratos, do mercado atingido. O legislador considerou, na elaboração das leis ambas as perspectivas, a justiça contratual e o impacto na economia e na sociedade.

Tal visão deve também prevalecer para os tribunais superiores os quais, detêm a tarefa de contribuir para o desenvolvimento do direito. O juízo arbitral, cada vez mais importante no Brasil, recebe sua competência de julgar das próprias partes do contrato em tela. Portanto, o árbitro precisa focar no seu mandato – decidir o caso concreto; a ele não cabe o papel de desenvolvedor do direito. Seria uma missão impossível eis que, na arbitragem comercial prevalece, em regra, o princípio da confidencialidade.

Por três razões a arbitragem comercial parece o melhor mecanismo para resolver as disputas sobre a adaptação ou resolução de contratos na pandemia:  a) especialmente numa séria crise econômica as partes dependem de decisões rápidas; b) os preços estabelecidos em contratos empresarias são muitas vezes a informação mais sensível do negócio, consequentemente a confidencialidade da arbitragem é uma vantagem competitiva, e c) finalmente o árbitro decide cada caso como se fosse um caso único, focado nas particularidades do negócio em tela; não precisa se preocupar com o desenvolvimento do direito ou a repercussão para outros ramos de direito como, por ex., direito do consumidor. Tal independência é exatamente o que partes do mundo de negócios desejam e necessitam.