
A Política Nacional dos Biocombustíveis (RenovaBio) surgiu da ratificação, pelo Brasil, em 2016, do Acordo de Paris, por meio do qual o país se comprometeu a reduzir em 37% suas emissões de carbono até 2025. O principal instrumento desse programa para mitigação das emissões dos gases causadores do efeito estufa no setor de combustíveis é o aumento da participação dos biocombustíveis na nossa matriz energética, via três pilares: 1) Metas de Descarbonização; 2) Certificação da Produção de Biocombustíveis; e 3) Crédito de Descarbonização (CBIO).
No primeiro pilar, o governo estipula anualmente metas nacionais de descarbonização. As metas são cumpridas pelas distribuidoras de combustíveis, parte obrigada da política nos moldes atuais, por meio da compra de CBIOs, de acordo com seu volume de vendas de combustíveis fósseis. No segundo, produtores de etanol, biodiesel, biometano e bioquerosene certificam sua produção, que recebe notas de acordo com sua eficiência energético-ambiental. No terceiro pilar, as notas atribuídas à produção (segundo eixo) são multiplicadas pelo volume de biocombustível comercializado, o que resulta na quantidade de CBIOs que os produtores poderão emitir e vender às distribuidoras.
A expectativa quando se propôs a política era que a melhoria das condições de competitividade dos combustíveis renováveis ampliasse sua produção e, consequentemente, aumentasse a geração de CBIOs, estabelecendo um círculo virtuoso. O programa, entretanto, parece não ter sido capaz de impulsionar o aumento da participação dos biocombustíveis na matriz energética nacional. Os números indicam que de 2019 a 2021 houve na verdade queda considerável na produção e na venda de etanol hidratado. Ou seja, o biocombustível não melhorou sua competitividade em relação a gasolina.
Uma avaliação atual da política indica que o RenovaBio nasceu com uma grave disfuncionalidade, que foi impor as obrigações ao elo da distribuição. Essa escolha gerou uma série de ineficiências, como a dificuldade de alocar nos combustíveis fósseis os custos com o programa. Como as distribuidoras comercializam todos os tipos de combustíveis – derivados de petróleo e biocombustíveis –, torna-se complexo inserir nos custos do diesel e da gasolina os dispêndios com a aquisição dos CBIOs.
Outra disfuncionalidade grave é a ausência de um mecanismo que assegure que os recursos proporcionados pelos CBIOs tenham como destino o investimento na cadeia de biocombustíveis, gerando aumento de produção ou redução dos preços através do incremento da competitividade dos combustíveis renováveis.
Adicionalmente, o fato de algumas companhias atuarem nos dois lados, ou seja, serem emissoras e ao mesmo tempo compradoras de CBIOs, pode distorcer o mercado tanto na oferta como na demanda, gerando especulação anormal, alheia às práticas usuais de mercado. Há evidências desse comportamento. Os preços dos certificados dispararam, com majorações da ordem de 1.000%, com forte impacto na formação dos preços dos derivados, o que acaba onerando o consumidor final na ponta.
Ao identificar essas falhas, o Ministério de Minas e Energia (MME) chegou a propor ajustes ao RenovaBio que aperfeiçoam a política. O deslocamento das metas de descarbonização para os agentes responsáveis pela origem dos combustíveis – as refinarias e os importadores de combustíveis fósseis –, por exemplo, foi uma das medidas apresentadas. Essa retificação colabora para a sustentabilidade do RenovaBio e o alinha a programas similares criados no mundo, incluindo o modelo da Califórnia (LCFS – Low Carbon Fuel Standard), que o inspirou. Todas as políticas de mitigação concentram as obrigações de cumprimento das metas de descarbonização no segmento responsável pela origem das emissões, ou seja, as refinarias.
Concentrar o recolhimento nas refinarias e nos importadores, em número bem menor que os distribuidores, reduz a possibilidade de fraudes, desestimula práticas especulativas e torna a fiscalização mais eficiente e menos dispendiosa ao Estado. Os distribuidores, desse modo, passarão a adquirir os combustíveis fósseis tendo os custos dos CBIOs já embutidos nos produtos. O exemplo exitoso é a tributação monofásica, em mecanismo semelhante à substituição tributária, que atribui aos produtores de combustíveis fósseis a responsabilidade pelos tributos devidos em toda cadeia.
Apesar dos méritos e acertos da proposta apresentada, o MME não deve levar adiante as medidas ainda este ano em decorrência da transição de governo. As tratativas entre o MME e o grupo de transição do presidente eleito Lula têm evidenciado a necessidade de medidas estruturantes capazes de aperfeiçoar o RenovaBio, sob pena do programa ser judicializado. Essas medidas são, portanto, urgentes e não podem ser esquecidas ou postergadas.
As propostas apresentadas, com destaque para a realocação das responsabilidades pelas compras dos CBIOs, melhoram esse importante mecanismo de mitigação de mudanças climáticas e podem tornar o Brasil um dos maiores mercados de comercialização de créditos de carbono do mundo. As alterações reforçam a credibilidade do RenovaBio que, aperfeiçoado, poderá avançar e cumprir de fato sua missão.