Coronavírus

Recuperação de empresas, pandemia e medidas emergenciais: paradoxo de Stockdale

Na essência, a superação de crise depende de um equilíbrio entre realismo e otimismo

Crédito: Pixabay

Uma das causas que mais desgasta a legislação de insolvência é o advento de grandes crises econômicas, motivo pelo qual os regramentos legislativos da matéria e, consequentemente, suas reformas, não são longevas (nem buscam a perenidade). O Brasil é exemplo desse prognóstico: a história do nosso Direito é marcada por uma fragmentação legislativa, cuja razão de ser decorre, direta ou indiretamente, da tentativa de o legislador resolver crises de natureza eminentemente econômica sem buscar soluções sistêmicas coerentes e adequadas à realidade do País.

De certa forma, essa sistemática foi interrompida com a edição da Lei 11.101/05 que, a sua maneira, inspirada em práticas e guidelines internacionais, modernizou o aparato legislativo pátrio. O aniversário de 10 anos da lei, em 2015, iniciou um debate acerca da necessidade de reforma do sistema vigente. Organizaram-se estudos, formaram-se comissões; entidades de classe se envolveram e projetos de lei foram rascunhados e encaminhados para análise legislativa.

Fato é que o processo legislativo brasileiro transformou o ímpeto modernizador dos especialistas – que, em linhas gerais, contribuía significativamente para a transformação do sistema vigente – na reforma dos consensos (que apesar de meritória, era insuficiente). As mudanças legislativas propostas enfrentariam apenas os gargalos unânimes, sobre os quais nada ou pouco se poderia questionar; não é exagero dizer que realizar-se-ia a mudança do possível até que se tivesse nova oportunidade para reformar o todo – que, pela experiência, acaba não ocorrendo.

Nesse cenário, fomos surpreendidos pela pandemia do coronavírus (COVID-19), trazendo, também, novo – e justificado – ímpeto dos reformadores. A situação sanitária instaurou uma crise de natureza sistêmica, cujos efeitos desembocam (ou desembocarão), de uma maneira geral, em todos os elos da cadeia econômica, independentemente da sua envergadura.

Primeiro, instala-se a crise financeira, essencialmente de liquidez, de capital de giro, de caixa, que interrompe as cadeias de suprimento e gera um efeito cascata de inadimplência (credores e devedores trocam de posição no tabuleiro na medida em que os ponteiros do relógio avançam); segue-se a isso uma severa crise econômica, de efeitos devastadores, na medida em que a incerteza quanto ao momento da plena retomada das atividades empresariais é a única certeza da vez.

O equilíbrio da ordem espontânea do mercado, como exposto por Friedrich Hayek, desaba diante dos efeitos indefinidos da incerteza. Não há cálculo realista entre investimento e retorno. Assim como o sistema de preços não admite a monopolização da produção e da informação pelo Estado (como ocorreu nos países da cortina de ferro), a combinação entre incerteza e imprevisão é fatal para o empresário, que tem apetite ao risco, mas é avesso à imprevisibilidade permanente.

Nesse contexto, a intervenção legislativa faz-se essencial, o que justifica retomar o processo de reforma da Lei 11.101/05. Não há dúvida que a alteração do contexto fático exige a mudança na tônica das soluções postas, especialmente diante da gravidade da crise financeira e econômica que se enfrenta. Cada país, diante da sua realidade, deve adotar as medidas mais adequadas para superar a crise (que, mesmo sendo global, tem suas particularidades locais).

A questão que se põe para reflexão é a seguinte: será que os efeitos deletérios da crise não expõem ainda mais as mazelas reais do sistema vigente, exigindo reformas definitivas ao invés tratamentos pontuais e provisórios? Com todo respeito às opiniões contrárias, que têm sido majoritárias, entendemos que o COVID-19 representa uma oportunidade única para a correção dos rumos da Lei 11.101/05, com endereçamento permanente dos problemas permanentes e não somente daqueles decorrentes dessa crise gravíssima.

Melhor dizendo, é o momento de criarmos incentivos duradouros e adequados para uma atuação convergente entre credor e devedor, de estabelecermos bases para um mercado sólido de concessão de crédito para empresas em crise (DIP financing), de evitarmos o isolamento do devedor na apresentação do plano de recuperação judicial, de acentuarmos os deveres da empresa em recuperação, e assim por diante.

Em nosso sentir, a crise atual dá outra roupagem a problemas pré-existentes, cujos contornos precisam ser imediatamente resolvidos, com base em novos enfoques. Mais do que a concessão da moratória – que, reconhece-se, pode ser um caminho para o atual estágio da crise –, a mudança de quóruns de votação em determinados regimes e a inclusão na recuperação judicial de todos os créditos constituídos após a instauração da pandemia, clama-se para que o Poder Legislativo exerça seu papel constitucional e ofereça uma solução legislativa à altura da gravidade do problema.

Feitas essas ponderações iniciais, tratemos das alterações propostas no PL 1397/20, que institui medidas de caráter emergencial no âmbito da Lei de Recuperação de Empresas e Falência, para enfrentamento da crise do COVID-19. Em suma, o Projeto de Lei estabelece um regime temporário para o enfrentamento da atual crise, tendo como base as seguintes medidas:

(a) permite que qualquer agente econômico, mesmo que não empresário, valha-se das medidas previstas, que possuem caráter transitório (ou seja, enquanto durar a pandemia), excetuada a figura do consumidor;

(b) suspende as cobranças e pedidos de falência, inclusive a execução de garantidores pessoais, bem como a resolução unilateral de contratos bilaterais e a cobrança de multas;

(c) suspende, pelo prazo de 60 dias, qualquer medida em caso de inadimplemento, prazo em que, teoricamente, devedor e credores devem renegociar o pactuado;

(d) caso não se chegue a um consenso no referido prazo, poderá o devedor que tiver redução de ao menos 30% do seu faturamento após a pandemia ajuizar uma ação com o objetivo de renegociar o passivo, por mais 60 dias, com possibilidade de nomeação de negociador judicial, a pedido do devedor – sendo que, em caso de ajuizamento de recuperação judicial, os prazos de suspensão já transcorridos serão, teoricamente, computados para o stay period;

(e) sujeita os créditos trabalhistas à recuperação extrajudicial e reduz o quórum de aprovação do plano de 60% para mais de 50% dos créditos de cada espécie, além de autorizar o ajuizamento da recuperação extrajudicial com a concordância de 1/3 dos créditos a fim de que se suspendam, desde logo, as medidas executivas, desde que o quórum de mais da metade dos créditos seja atingido no prazo de 90 dias;

(f) estabelece, para as recuperações judiciais ou extrajudiciais em curso, que as obrigações previstas nos planos já homologados não serão exigíveis pelo prazo de 120 dias;

(g) autoriza a apresentação de novo plano por aquele devedor que já estiver com plano de recuperação judicial ou extrajudicial homologado, podendo sujeitar créditos posteriores ao anterior pedido de recuperação já homologado, com direito a novo período de suspensão de execuções pelo prazo de 180 dias, sujeitando-se o plano aditado a nova aprovação pelos credores, nos termos do procedimento específico;

(h) prevê que o devedor pode requerer nova recuperação judicial menos de 5 anos após a concessão da última, bem como recuperação extrajudicial no prazo inferior a 2 anos a contar da última recuperação judicial ou extrajudicial;

(i) eleva para R$ 100.000,00 o limite mínimo para a decretação da falência por credor;

(j) sujeita aos procedimentos recuperatórios os credores proprietários (como os garantidos por alienação fiduciária);

(k) determina que o descumprimento do plano de recuperação judicial não acarreta a falência do devedor;

(l) prevê que serão liberados em favor do devedor o montante de 50% do valor ou do recebível anterior ou posterior ao pedido de recuperação, independentemente da natureza da garantia, sendo que tal garantia deverá ser recomposta de forma gradual a partir do 6º mês, contado da apresentação do novo pedido de recuperação, atingindo até o máximo de 36 meses; e

(m) para as ME e EPP, indica que todos os créditos existentes na data do pedido passam a estar sujeitos, podendo existir parcelamento em até 60 meses e com previsão de deságio, corrigido pela SELIC, com pagamento da 1ª parcela em 360 dias a contar da distribuição do pedido (ou do aditamento do plano), não sendo decretada a falência do devedor se existirem objeções de credores titulares de mais da metade de qualquer uma das classes de credores.

São inúmeras alterações, e diversas delas são, de fato, pertinentes, como é caso da concessão de stay period na recuperação extrajudicial, a redução do quórum para homologação do plano, antecedida do requisito de legitimidade para adentrar no sistema em si, a possibilidade de ajustes em planos de recuperação judicial já homologados, a limitação do exercício de certas posições contratuais durante a pandemia, e a elevação do valor mínimo para pedidos de falência por parte de credor.

A despeito desses possíveis acertos, o Projeto de Lei não endereça os reais gargalos no nosso sistema de insolvência e, quando o faz, ainda que forma lateral, traz consequências deletérias para o sistema das empresas em crise. Nesse particular, não se pode olvidar que a Lei 11.101/05, nos moldes atuais ou após a reforma, não é o instrumento correto para concessão de linhas de crédito ou oferta de liquidez ao mercado, devendo se ater à sua função de marco regulatório da insolvência, equilibrando interesses e fornecendo os incentivos corretos para os agentes econômicos envolvidos.

Em rápida análise, entendemos que há espaço para aperfeiçoamento dos seguintes pontos:

  • a Lei 11.101/05 apresenta soluções para a crise do empresário individual ou da sociedade empresária isolada, ajustada, pela construção jurisprudencial, para os grupos de sociedade por meio da consolidação processual e substancial. A vingar a solução do PL 1397/20, por mais bem intencionada que seja, a reforma estabelece um regime provisório abrangente, que terá externalidades imprevisíveis para além da vigência do projeto em si. Não se busca, assim, uma solução sistemática e definitiva para o problema, de modo que, solucionada a pandemia, o regime estendido comprime-se novamente aos empresários (voltando a incidir sobre os demais agentes econômicos os retrógrados dispositivos da insolvência civil ou da liquidação, no caso das cooperativas). Ao invés de ampliar definitivamente o regime jurídico para todos os agentes econômicos cobrando-se deles requisitos empresariais específicos, corretos e previamente determinados, estabelece-se um regime de transição, correndo-se o risco de, uma vez solucionada a pandemia, estabelecer-se um novo conjunto de regras legislativas de migração do regime provisório ou, mesmo, extensões pontuais do prazo de vigência da solução provisória, até que se torne definitiva por aplicação da teoria do fato consumado;
  • estabelece-se um procedimento de negociação coletiva, com negociador a ser facultativamente solicitado e arcado pelo devedor, cujas chances de prosperar entre nós são bastante rarefeitas;
  • não há filtro de legitimidade ou restrição inicial à utilização dos benefícios legais para somente os agentes econômicos que tenham sido impactados pela pandemia – como se a crise fosse universal e irrestrita (quando sabemos, inclusive, que há setores da economia cuja receita permanece estável ou até crescente). Se assim for, qualquer agente econômico, ainda que não impactado pela crise do COVID-19, e sem necessidade de realizar qualquer comprovação do impacto na sua atividade, poderá valer-se de tais benefícios, pelo menos da suspensão inicial de 60 dias;
  • não há solução para o principal problema dos processos de recuperação de empresas, que é o financiamento. Nesse ponto, em nosso sentir, há um retrocesso: de um lado, o PL 1397/20 não traz regras de proteção aos financiadores nem garante a inexistência de sucessão de passivos em alienação de ativos na recuperação extrajudicial; de outro, eleva a insegurança do financiador ao sujeitar qualquer credor pós-distribuição de uma recuperação judicial ao novo plano, inclusive os credores decorrentes de um dip financing (algo já tão escasso no País). Igualmente, ao prever a liberação de garantias como medida para reforçar o caixa dos devedores em dificuldade, não trata especificamente de como tais credores serão tratados em eventual convolação em falência (por exemplo, o credor proprietário tornar-se-á quirografário?)
  • ao expressamente derrubar garantias, como se faz com a alienação fiduciária, a cessão de recebíveis e a suspensão de execuções em face dos coobrigados, o PL altera o sistema de garantias vigente no país. Sob o argumento de dar liquidez aos devedores, instaura-se mais incerteza no setor creditício que, na teoria, deveria financiar os devedores, inclusive com estímulos governamentais. Lembre-se, nesse particular, que a suspensão da execução de garantias pessoais que está sendo proposta difere do que ocorre em outras jurisdições que a permitem: por exemplo, nos EUA, a liberação de garantias (third-party release) exige que assim conste do plano de recuperação e que seja essencial à sua formulação e implementação, que exista efetivo benefício do devedor principal, que a liberação seja justa, razoável e equitativa e que seja no melhor interesse do devedor principal;
  • ao contrário das soluções adotadas pelo direito inglês, alemão e norte-americano, por exemplo (que inclusive flexibilizaram esses deveres diante da pandemia), o PL não prevê a assunção por parte dos sócios e administradores, como condição para que o a devedora ingresse no regime de crise, de qualquer obrigação de diligência e lealdade e que representaria, uma contrapartida resultante da repartição dos danos causados (associazione pel riparto dei danni), da qual participam, em menor ou maior grau, toda a sociedade;
  • ainda que se possa discutir medidas mais adequadas, entendemos que as mudanças para as pequenas empresas são demasiadamente simples, resumindo-se na extensão da moratória já prevista na LREF – que até hoje não apresentou resultados satisfatórios;
  • não se protegem os eventuais acordos realizados no cenário da crise de questionamento futuro em processos falimentares (e. ação revocatória e declaratória de ineficácia), que são indesejáveis, mas certamente ocorrerão.

É inegável que há boas soluções no PL 1397/20, mas é difícil esperar resultados diferentes de mecanismos que já foram testados, inclusive entre nós, e que não deram certo. O Brasil precisa de reformas mais profundas em seu sistema de insolvência. Por dever de diligência legislativa, precisamos nos espelhar no que deu realmente certo à luz do direito comparado, como é o caso do fresh start, dos mecanismos de dip financing, da imposição de deveres a sócios e administradores antes e depois da crise, dos planos de recuperação judicial alternativos, da sujeição de todos os credores aos procedimentos de recuperação judicial, com o estabelecimento de camadas absolutas de prioridade no recebimento dos créditos, e assim por diante.

Em síntese, ao refletirmos sobre todas essas questões, parece-nos, cada vez mais, que o enfrentamento legislativo definitivo e adequado da crise do COVID-19 passa pelo Paradoxo de Stockdale, conceito criado e popularizado por Jim Collins, baseado na história do almirante americano James Stockdale. Na essência, a superação de crise depende de um equilíbrio entre realismo e otimismo; da necessidade de administrar a contradição entre acreditar em algo distante e enfrentar a dura realidade dos fatos com soluções ousadas e duradouras. Parece-nos que o PL 1397/20, nos termos atuais, não faz isso. Precisamos e podemos mais.

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