A discussão sobre a política salarial no serviço público é central por várias razões. Primeiro, porque sem remunerar adequadamente os servidores, não há política pública que pare de pé. Segundo, porque para profissionais com capacidades e atribuições distintas, é preciso garantir salários e bonificações proporcionais. A discussão sobre os reajustes generalizados, neste momento, mostra que pouco avançamos no tema. Corre-se o risco de consolidar distorções e contratar gastos ineficientes para o futuro.
O presidente da República queria garantir reajustes para os policiais federais, no ano passado, e trabalhou para que o Orçamento contemplasse espaço para isso. Ofício do Ministério da Economia, às vésperas da votação do projeto de lei orçamentária, solicitou ao relator-geral do projeto R$ 2,5 bilhões para reestruturação de carreiras do Executivo, sendo parcialmente atendido (R$ 1,7 bilhão).
Bastou para que se iniciasse uma espécie de caça ao tesouro. Muitas categorias de servidores passaram a pleitear reajustes, ameaçando paralisar serviços essenciais. Nos últimos dias, o presidente chegou a dizer que, para 2023, daria reajustes gerais aos servidores. No entanto, o Orçamento para 2023 dependerá das discussões políticas com os vencedores das eleições de outubro.
Além disso tanto a lei eleitoral quanto a Lei de Responsabilidade Fiscal possuem restrições à concessão de reajustes salariais no fim do mandato. A primeira veda reajustes salariais acima da inflação nos 180 dias anteriores ao pleito. A segunda, por sua vez, impede a contratação de qualquer despesa nova nos últimos 180 dias do mandato.
Cálculos preliminares da Instituição Fiscal Independente (IFI) mostram que cada ponto percentual de reajuste geral nos salários dos servidores públicos federais impacta em algo como R$ 3,5 bilhões as contas públicas em termos anualizados. Esse impacto inclui os efeitos sobre aposentadorias e pensões, vale dizer. Para ter claro, um reajuste geral de 5% custaria cerca de R$ 17,5 bilhões ao Erário, mais da metade do orçamento do extinto Bolsa Família.
O exercício é útil para mostrar que não se trata de oito ou oitenta. É preciso uma avaliação detalhada e abrangente do RH do Estado para que decisões de recomposição salarial sejam tomadas, caso a caso, sem perpetuar as distorções atuais. O diagnóstico é o primeiro passo para a formulação de uma nova política de pessoal. Que dizer da reforma do Estado, cujo destino é fracassar, obviamente, se não partir desse ponto.
Segundo estudo especial da IFI, escrito pelo economista Alessandro Casalecchi[1], mudanças na média dos salários iniciais e na forma pela qual os servidores progridem na carreira produziriam economia de até R$ 128 bilhões em dez anos. Mas da simulação não decorre nenhuma recomendação imediata de política para o RH do setor público. Para isso, é preciso avaliar os detalhes de cada carreira.
No Judiciário e no Ministério Público, são conhecidas as distorções vigentes. A tese de que vantagens e indenizações autoconcedidas não devem ser computadas na remuneração básica leva, não raro, a contracheques mensais de centenas de milhares de reais. Mas a Constituição manda que se respeite um teto remuneratório, hoje em torno de R$ 39 mil. Eis o primeiro ponto a resolver. A legitimidade necessária para mudar aspectos gerais da política de pessoal depende do respeito definitivo a essa norma.
A partir disso, cabe uma avaliação qualitativa e quantitativa das carreiras, cargos, serviços e salários. Essa avaliação poderia ser realizada por uma agência independente, de caráter temporário, sob inspiração da experiência com o Ministério de Administração e Reforma do Estado (MARE), nos anos 1990. Mas com uma diferença. A nova agência teria a prerrogativa de produzir diagnósticos, de modo autônomo, a subsidiar o governo para a elaboração de uma nova política de pessoal, que então seria submetida ao Congresso Nacional. A agência seria composta de técnicos de dentro e de fora do setor público e representantes de todos os Poderes e órgãos autônomos.
É fundamental introduzir uma dimensão de análise pautada pela comparação de salários no setor privado e público. Servidores com atribuições e formação similares às observadas em seus pares, no setor privado, deveriam ter remuneração similar. Se houver estabilidade, caberia ainda uma análise de valor presente dos fluxos futuros de remuneração. Para ter claro, no setor privado, pode haver demissão sempre, o que reduz o valor presente médio dos fluxos remuneratórios para um mesmo grupo.
Ademais, há que se compreender: não existe país desenvolvido sem uma elite burocrática sólida, bem formada e bem paga. Desse modo, é preciso afastar posturas ideológicas que costumam pautar o debate nesta temática, do tipo que demoniza o servidor. Atrair boas cabeças e premiar a produtividade e o espírito público são vetores importantes para uma discussão a sério do assunto.
O que se vê, neste momento, no debate orçamentário de 2022, não tem nada a ver com isso. Estabeleceu-se uma disputa atropelada por fatias do orçamento, dada a abertura de espaço fiscal no teto de gastos a partir das Emendas Constitucionais nº 113 e nº 114. A saber, elas derivaram da chamada PEC dos Precatórios e abriram espaço de R$ 112,6 bilhões no Orçamento anual. A depender da evolução das despesas atreladas à inflação, a sobra para gastos ineficientes será grande. O fato é que, de saída, pelo menos R$ 1,7 bilhão está previsto para reajustes, ainda que sem especificação na Lei Orçamentária.
Ou bem recuperamos a capacidade de planejamento e de gestão, sob preceitos básicos de responsabilidade fiscal, ou a discussão fundamental da remuneração dos profissionais que trabalham na provisão, direta ou indiretamente, de bens e serviços públicos, seguirá sendo conduzida no improviso. Não é bom para ninguém, a não ser para os governos de plantão, que usam promessas de reajustes como moeda de troca nos períodos pré-eleitorais.
*As opiniões dos autores não vinculam a IFI
[1] Ver aqui: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/587142/EE15.pdf.