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acesso à Justiça

Quando o tema é modalidade de justiça, o jurisdicionado deve ser o rei

O que se defende é a virtualização responsável, e não a digitalização às pressas e à revelia do usuário

justiça digital
Crédito: Unsplash

A inovação pressupõe atrito. Quando ela se choca com uma profissão como a jurídica, que vive em um anacronismo artesanal, quase bíblico, a fricção é ainda maior.

Recentemente, a OAB-RJ apresentou um pedido de providências contra o Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (TRT1) perante o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Como fundamentos, a OAB-RJ alega que a maioria dos magistrados não retomou os atos presenciais, diferentemente dos outros tribunais regionais do trabalho; e que a ampla gama de jurisdicionados atendidos pela Justiça trabalhista não possui condições de praticar atos telepresenciais.

No mérito, a OAB-RJ pleiteia o retorno imediato das atividades presenciais, “admitindo-se o modelo híbrido exclusivamente a requerimento da parte, declarando-se indispensável a presença física do magistrado ou magistrada na sede do juízo, onde será realizado o ato processual da audiência ou sessão”, e, em caso de discordância entre as partes, seja determinado que prevaleça o modelo presencial. Diversas associações representativas da magistratura foram somadas ao procedimento e, em uníssono, defenderam o modelo virtual como regra e, principalmente, que a escolha sobre o formato do ato caberá ao julgador.

O pedido de providências foi procedente, e o ministro Luiz Fux apresentou um ofício questionando os efeitos da decisão, isto é, se ele se aplicará aos demais órgãos do Poder Judiciário, e alertando para o fato de que a “obrigatoriedade da presença na sede do juízo em atos processuais realizados de forma remota também implicará, por razões naturais, a obrigatória presença física das partes, dos advogados e membros do MP na sede do juízo, o que pode originar sérias inconveniências e dificuldades de acesso à justiça”. A deliberação do tema, pelo plenário do CNJ, está pautada para a próxima terça-feira (16).

A despeito de algumas filigranas que deverão ser decididas pelo CNJ, tais como a presença física dos magistrados nos fóruns e a sua residência dentro da geografia da comarca, verifica-se que o cerne da disputa paira sobre a alçada decisória a respeito do formato de realização dos atos processuais. Cabe ao magistrado ou à parte decidir se o ato será presencial ou virtual? As resoluções do CNJ, embora vanguardistas, ainda não deixam isso claro.

É curioso como as preocupações se alteram pelo curso do tempo e novos desejos surgem à medida que a sociedade é modelada pelos costumes e necessidades do momento, que tende a ser cada vez mais efêmero. Antes da pandemia, os atos telepresenciais eram uma raridade. Durante a pandemia, houve uma amplificação extrema de atos virtuais, mesmo nos casos em que o modelo online não é o mais recomendável, como nas audiências de custódia e atos das Varas de Infância e Juventude, como bem destacou, em inúmeras oportunidades, Rodrigo Pacheco, defensor público-geral do Rio de Janeiro. No pós-pandemia, se é que podemos usar esta expressão, nos deparamos com um embate não sobre o modelo, mas, sim, sobre a quem cabe a decisão sobre os atos.

Para responder à pergunta, recorre-se àqueles que não são de pouco crédito. Nas palavras do professor Kazuo Watanabe, o acesso à Justiça deve ser analisado sob o prisma de que o jurisdicionado, enquanto destinatário das normas jurídicas, é o seu consumidor final e, portanto, a administração da Justiça deve se dar em seu interesse. Advogados, juízes, membros das defensorias e ministérios públicos não são um fim em si mesmos. Todos eles estão ali para atender à sociedade e seus integrantes. Se eles — e seus respectivos entes e órgãos — deixam de fazê-lo, nos parece que falham na sua missão precípua.

Richard Susskind, o maior especialista no futuro da profissão jurídica, costuma apresentar a estatística que diz que, hoje, mais pessoas têm acesso à internet do que acesso à Justiça. É um dado global, mas que pode ser facilmente repisado para o Brasil, se pensarmos, por exemplo, na quantidade de smartphones. São 242 milhões de aparelhos em uso no país, que tem por volta de 214 milhões de habitantes, de acordo com o IBGE. Contudo, há uma cifra nebulosa em que há não só pessoas marginalizadas e que não possuem condições para o uso da internet, como apontou a OAB-RJ, mas há também um grau de analfabetismo digital, ampliado pelas dificuldades de usabilidade pelos usuários apresentadas pelas plataformas do Poder Judiciário, em especial o PJe.

Entenda-se bem que aqui não se defende um retorno ao Judiciário da Idade das Trevas, com resquícios presentes no Brasil até a inserção do processo eletrônico. O que se defende é a virtualização responsável, e não a digitalização às pressas e à revelia do usuário que, repita-se, é, e sempre será, o jurisdicionado.

Em nossa opinião, a melhor solução para o tema seria conferir o poder de escolha às partes, que, por meio de seus advogados, poderão avaliar no caso concreto como será o melhor formato para a realização de determinado ato presencial, uma vez que eles e somente eles conhecerão as peculiaridades da causa e, principalmente, o seu próprio contexto social e econômico. Pelas regras da experiência, é evidente que nenhuma parte pleiteará a realização de um ato presencial quando ele não for estritamente necessário, haja vista os custos de deslocamento que ele implica. Sobre o assunto das despesas, algo que passou ao largo da discussão, mas merece menção, é, inclusive, a possibilidade de cobrança de custas e taxa judiciária, conforme o caso, para a realização do ato em pessoa no órgão jurisdicional.

Ainda, como solução matizada, sugere-se que a audiência virtual seja a regra e a opção pelo modelo presencial se dê em formato opt-out. Tal opção funcionaria como um verdadeiro nudge, a teoria do incentivo defendida por Cass Sunstein e Richard Thaler, para influenciar, de forma não invasiva, os jurisdicionados para que optem pelo modelo virtual. Quando houver necessidade de realização de atos presenciais, a parte, ativamente, exercerá, portanto, o direito de optar pelo referido formato.

É bom dizer, ainda, que a solução sugerida nada tem de mirabolante, pois se trata de decorrência direta dos negócios jurídicos processuais introduzidos pelo Código de Processo Civil em 2015 que, no seu art. 190, confere às partes o poder de decisão final sobre o formato dos atos e do procedimento.

Como bem lembrou Umberto Eco, nem sempre o progresso significa caminhar, incansavelmente, para frente. Como exemplo, hoje, tentamos, a todo custo, desinventar o plástico. Aqui, não se defende a “desinvenção” dos atos virtuais. A melhor analogia é tratar a Justiça 4.0 como a fissão nuclear. Vamos “desarmar as bombas”, e, ao mesmo tempo, aproveitar a energia nuclear limpa e barata dos superseguros reatores modernos. O Judiciário 4.0, definitivamente, não é Tchernóbil. Mas precisa de ajustes.logo-jota