Coronavírus

Possibilidade de um ‘direito de retirada’ no atual contexto pandêmico?

O importante aos trabalhadores é que lhes sejam assegurados ambientes de trabalho seguros e saudáveis

Em Manaus, professora promove atividades adaptadas a alunos da educação especial. Foto: Alex Pazuello/Semcom

Disclaimer! Para leitura deste artigo, é necessário ter em consideração um único axioma: o mundo, pós-Covid-19, não será como antes, mormente quanto às relações de trabalho.

Dito isso; nota-se, em razão da pandemia, um pujante crescimento do trabalho fora das dependências do empregador, principalmente trabalho de casa (homeworking), com a utilização de tecnologia de informação e de comunicação.

Segundo pesquisa divulgada em maio/20 na França, o “desconfinamento” será intrincado, vez que a experiência do teletrabalho conquistou muitos trabalhadores; quase 60% dos nouveaux teletrabalhadores planejam solicitar, de forma regular, a prática do teletrabalho após o confinamento[1].

Embora os teletrabalhadores franceses confinados estejam preocupados com os rumos pós-pandemia (86% temem “pelo futuro econômico do país”, 49% “pelo próprio futuro” e 42% “pela empresa”), um terço deles acredita que esta crise da saúde “mudará a posição de sua empresa em relação ao teletrabalho”.

Claro que o homeworking não representa apenas harmonia ou tranquilidade. A própria pesquisa francesa alerta que 30% dos teletrabalhadores dizem que sua saúde mental se deteriorou durante o confinamento, 28% experimentam tensões com seu círculo familiar e 29% que o confinamento piorou sua qualidade de sono.

Independentemente do lado nefasto do teletrabalho, diante do novo mundo pós-Covid-19, ascenderá rapidamente. Ou seja, o modelo de teletrabalho “disrompeu” antigos modelos, substituindo-os de forma ainda mais rápida, em razão da necessidade de isolamento social como estratégia para evitar a propagação do coronavírus e o colapso do sistema de saúde.

Mas, em meio à pandemia, no tocante àqueles trabalhadores que não têm a opção do teletrabalho, existe alguma outra opção de saída? Pois bem. O ordenamento jurídico francês possui direito bastante particular desde a década de 1980: o droit de retrait (direito de retirada).

Criado pelo decreto francês nº 82‐453 de 1982, mas também previsto em diretiva europeia[2], consagra o direito do trabalhador de retirar-se de uma situação de trabalho que apresente um perigo grave e iminente para a sua vida ou sua saúde. O fundamento é a obrigação geral de proteção da saúde dos empregados, vide artigo L. 4121-1, do Código do Trabalho francês.

O artigo L. 4131-1 do Código do Trabalho francês estabelece que, após alertar o empregador, o trabalhador poderá se retirar de situação de perigo grave e iminente a sua vida ou saúde, de modo que, se tal perigo persistir, o empregador não poderá determinar a retomada da atividade.

De acordo com o professor Pierre-Yves Verkindt, da Universidade Panthéon-Sorbonne, a legítima utilização do direito de retirada não poderá implicar em redução no salário ou uma penalidade, de sorte que o controle desta legitimidade será realizado a posteriori pelo judiciário, mediante pedido de pagamento de remuneração, o qual o empregador teria ilicitamente reduzido, ou pedido de nulidade de sanção proposta[3].

Em todo caso, o exercício do direito de retirada cria uma obrigação de agir pelo empregador, e a retirada do cargo é legítima, desde que não seja discutida por meio de medida judicial.

O trabalhador, segundo Verkindt, permaneceria disponível para o empregador, o qual pode oferecer outra posição segura ou teletrabalho, vide artigo L. 1222-11 do Código de Trabalho Francês.

O empregado deverá ter motivos razoáveis (motif raisonnable) para acreditar que a situação apresenta perigo grave e iminente à sua saúde (danger grave et imminent pour sa santé), o que estará logicamente sujeito à apreciação do Poder Judiciário.

Aliás, os dados factuais, para a tomada de decisão, vinculam elementos psicológicos em relação à pessoa do funcionário (sua saúde, suas fraquezas, seu conhecimento) e elementos materiais (características do trabalho, medidas de proteção, etc.).

Especificamente no cenário atual, segundo H. Gosselin, antigo juiz da Cour de cassation francesa, o qual se mostra favorável à utilização do direito de retirada no contexto de ameaça pela Covid-19, os juízes deveriam passar a contar com 3 elementos: a natureza do perigo (p. ex., morar com pessoas idosas), o risco de exposição ao vírus e as medidas de proteção tomadas pelo empregador[4].

Verkindt adverte ainda que todos os funcionários são afetados, independentemente de sua situação jurídica e natureza contratual, inclusive trabalhadores temporários e estagiários.

Quanto à relação contratual, o contrato de trabalho subordinado deverá estar ativo, para autorizar a utilização do direito de retirada. Isso significa que tal direito não poderá ser invocado quando o contrato estiver suspenso ou interrompido seja qual for a causa.

Transpondo a discussão para o cenário brasileiro, vê-se legislações e atos do poder executivo impondo restrições cada vez mais severas à proporção que a pandemia cresce no país.

E essa justamente é a questão que envolve o instituto jurídico do direito de retirada: em que medida atos do poder executivo, cada vez mais claros no sentido de preservar a saúde do cidadão, podem impactar no Direito do Trabalho, permitindo o afastamento do trabalhador por perigo grave e iminente para a sua vida ou sua saúde.

Evidentemente, não existe previsão legal tal qual a do ordenamento jurídico francês. Contudo, o direito de retirada pode ser utilizado analogicamente, vide artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que permite ao juiz decidir o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito.

No mesmo sentido, o art. 8º da CLT registra esta possibilidade de utilização de analogia e de Direito Comparado, como fonte específica para o Direito do Trabalho em caso de lacunas.

De qualquer sorte, o operador jurídico não precisará “ir tão longe” para buscar a “opção de saída”. existem institutos do Direito do Trabalho que podem ser aplicados in casu, como a rescisão indireta, que é uma espécie de exceção de contrato não cumprido do Direito Laboral (art. 483, alínea “c”, CLT – correr perigo de mal considerável), ou a própria boa-fé objetiva (na sua função integrativa – art. 422, CC + art. 9º, CLT).

Importante aos trabalhadores é que lhes sejam assegurados ambientes de trabalho seguros e saudáveis, o que é direito fundamental na categoria dos direitos humanos, como consagra a Constituição Federal do Brasil nos artigos 7º, inciso XXII e artigo 225, direitos que não cedem diante do Estado de excepcionalidade que vivemos.

 


[1] Disponível em: <https://www.huffingtonpost.fr/entry/teletravail-deconfinement-sondage_fr_5eb25aa2c5b66d3bfcddaaa3?ncid=fcbklnkfrhpmg00000001>. Acesso em: 23 de maio de 2020.

[2] vide art. 8, § 4, da Diretiva 89/391/CEE do Conselho, de 12 de Junho de 1989, relativa à aplicação de medidas destinadas a promover a melhoria da segurança e da saúde dos trabalhadores no trabalho

[3] Disponível em: <https://www.actualitesdudroit.fr/browse/social/sante-securite-et-temps-de-travail/26653/du-bon-usage-du-droit-de-retrait-par-pierre-yves-verkindt>. Acesso em: 24 de maio de 2020.

[4] H. Gosselin, “Le droit de retrait, le juge et la protection de la santé des travailleurs dans le contexte de la pandémie de Covid-19”, SSL, 27 avril 2020, p. 19.

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