O título deste artigo pode soar inicialmente redundante, inadequado ou simplesmente óbvio ao reconhecer que a política tem um papel a desempenhar nas políticas públicas. É possível partir das expressões em inglês polity, politics e policies para identificar diferentes níveis e momentos da ação estatal: normas constitucionais que estabelecem as regras do jogo político (polity); relacionamento dinâmico entre os atores políticos (politics) e produtos resultados do jogo político (policies) [1]. As considerações deste artigo, já é possível perceber, se concentrarão no papel desempenhado pela atividade política (politics; não se resumindo à política partidária) nos diversos da momentos das políticas públicas de combate à pandemia (policy).
A pandemia tem exigido respostas de todos os governos do mundo. Algumas têm se mostrado efetivas, enquanto outras têm sido desastrosas. Ainda será preciso tempo para analisar com calma o que funcionou bem e mal em termos de políticas públicas, mas alguns estudos relevantes já começam a aparecer. As conclusões, mesmo parciais, nos provocam a olhar para o peso da política (politics) no sucesso ou fracasso da contenção da pandemia no que se refere aos reflexos principalmente na saúde – mais ou menos vidas salvas, em última instância – e na economia[2].
Na análise da experiência brasileira, a própria existência de uma política pública nacional de combate à pandemia é questionável a depender do conceito utilizado – a falta de diagnóstico preciso dos problemas e de suas causas, a ausência de objetivos claros e a falta de diálogo com outras políticas públicas exitosas em andamento (como as políticas de vacinação, programas sociais e atuação de agentes comunitários de saúde, dentre outros) parecem indicar a existência apenas de uma série de ações isoladas e desarticuladas, não de uma política pública efetivamente planejada, desenhada, implementada e monitorada.
Recentemente, pesquisadores de Harvard, Cornell e de outras dezenas de universidades estão conduzindo um estudo comparando as respostas à COVID-19 dadas por 16 países[3]. As conclusões parciais são relevantes na investigação das conexões entre atividade política e políticas públicas.
A partir da análise de indicadores em três principais setores – saúde pública, economia e política – o estudo refuta cinco falácias ou mitos comumente invocados na condução de políticas públicas na pandemia: a) uma cartilha pode conduzir o combate à pandemia; b) métricas de sucesso e fracasso são claras e objetivamente definidas; c) experts com conhecimento científico conduzem os responsáveis por políticas públicas a escolher as melhores opções; d) desconfiança nos conselhos das autoridades de saúde pública significa ignorância científica; e e) em emergências, políticas públicas assumem o volante e a política fica no assento do passageiro
Centremos atenção na última falácia, de acordo com a qual em momentos de grave emergência, a resposta técnica-científica residente nas políticas públicas assumiria maior importância por supostamente ser neutra, racional e baseada em conhecimentos e evidências, relegando a parcialidade da atividade política para segundo plano. O estudo conclui o oposto, apontando que a crise aumenta problemas pré-existentes na política e na economia. Três fraquezas estruturais, em especial, foram identificadas nos países que tiveram respostas políticas ineficazes: (i) infraestrutura fraca ou descentralizada do sistema público saúde, incluindo atividades de coleta de dados; (ii) desigualdade econômica; (iii) alienação política e falta de confiança no governo.
No que se refere à nossa estrutura jurídica-institucional, nosso federalismo cooperativo – embora ainda concentrando inúmeras competências na União – é marcado pela distribuição de competências administrativas comuns e legislativas concorrentes entre os diferentes entes federados (arts. 23 e 24), além da competência própria dos municípios (art. 30). Em matéria de saúde pública, o desenho de um federalismo de cooperação também fica evidente por força dos arts. 196 e seguintes da Constituição por meio da concepção de um modelo no qual os diferentes entes federados devem discutir e definir em conjunto, num espaço plural de diálogo e interlocução federativa, as atribuições que caberão a cada ente federado na execução das políticas públicas de saúde, como revela a estrutura descentralizada do Sistema Único de Saúde (SUS), regulamentado na Lei nº 8.080/1990.
A pandemia tem colocado à prova o sistema federativo brasileiro em razão da deficiente coordenação e da postura de confronto adotada pelo Executivo Federal em relação a governadores e prefeitos que aderem às recomendações científicas especializadas em saúde, em especial por meio de medidas de isolamento social, uso de máscaras de proteção e restrição ao funcionamento de atividades econômicas e sociais[4].
A postura política – relativa às atividades políticas do Executivo Federal – tem tido muitos efeitos sobre o combate à pandemia. Questionado em razão da postura do Executivo Federal, o tempo que o Supremo Tribunal Federal (STF) tem se pronunciado assegurando a competência concorrente de Estados e municípios para definirem medidas e políticas públicas de saúde, com base em dados científicos e de forma coordenada com os demais entes da federação[5].
A judicialização excessiva traz insegurança jurídica em um momento crucial, pois não são estabelecidos critérios claros para resolver os conflitos federativos e permitir planejamento e execução adequados das medidas por parte dos entes subnacionais.
No que se refere à atividade político-normativa, Estudo da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) que acompanha a atividade normativa dos entes federativos desde o início da pandemia sustenta que as normas produzidas no âmbito da União constituem um “acervo normativo que resulta do embate entre a estratégia de propagação do vírus conduzida de forma sistemática pelo governo federal, e as tentativas de resistência dos demais Poderes, dos entes federativos, de instituições independentes e da sociedade”[6]. Diante da atribuição de instrumento com força de lei – medida provisória –, ao Executivo Federal devem ser imputadas, em princípio, as consequências relativas à demora ou inadequação de normas voltadas a permitir atuação ágil e adequada à gravidade do momento.
A reflexão sobre a influência da atividade política nas decisões relativas às políticas públicas coloca novamente em realce a questão relacionada ao uso de evidências. Pesquisa realizada pelo IPEA – survey – avaliou a demanda e o uso de fontes de informação por servidores públicos federais e/ou ocupantes de cargos de Direção e Assessoramento da Administração Direta em 2019 e apontou, dentre outras conclusões, que 54% dos servidores afirmam que nunca ou raramente fazem uso de relatórios de pesquisas científicas e 72% informaram que não existe ou não sabem da existência de uma área especializada em seu ministério voltada para a utilização de evidências[7]. A questão retoma uma das falácias apontadas no estudo das universidades e referido no início deste artigo – métricas de sucesso e fracasso são claras e objetivamente definidas. Mesmo entre experts, nem sempre há consensos na escolha de indicadores – incidência, mortalidade, excesso de mortalidade, mortalidade de quem foi infectado e taxa de ocupação de UTIs são alguns exemplos. Por mais que as métricas sejam técnicas, a escolha de quais usar acaba tendo influência do componente político.
A atividade política, definitivamente, influencia a resposta estatal à pandemia. A despeito das dificuldades conceituais e do conhecimento de que as decisões em políticas públicas nem sempre devem ser baseadas somente em evidências científicas, é importante aumentar constantemente o grau de informação e diálogo com a academia e a sociedade para produzir decisões mais consistentes e legítimas. Em um sistema federativo que exige cooperação para as ações e serviços públicos de saúde, a política assume o volante e as políticas públicas sentam no banco do passageiro – resta torcer para que os mecanismos de governança jurídico-institucionais assegurem que os motoristas conheçam as regras de trânsito e saibam, verdadeiramente, dirigir.
[1] COUTO, Cláudio Gonçalves. Sistema de governo e políticas públicas. Brasília: Enap, 2019.
[2] Já no início da pandemia, a escola de governo da Universidade de Oxford elaborou um “rastreador” das respostas de governos em todo o mundo. A iniciativa coleta informações públicas sobre 20 indicadores de respostas do governo: oito indicadores de política registram informações sobre políticas de contenção e fechamento; quatro indicadores são focados em políticas econômicas, como apoio à renda para cidadãos em condições de vulnerabilidade, e outros oito indicadores registram políticas do sistema de saúde envolvendo testagem, volume de investimentos e, mais recentemente, políticas de vacinação, dentre outros itens. Covid-19 Government Response Tracker, acessar em https://www.bsg.ox.ac.uk/research/research-projects/covid-19-government-response-tracker
[3] Alemanha, Austrália, Áustria, Brasil, Coréia do Sul, China, Estados Unidos, França, Holanda, Índia, Inglaterra, Itália, Japão, Singapura, Suécia e Taiwan. Estudo disponível em: https://www.hks.harvard.edu/faculty-research/policy-topics/health/fallacies-hard-truths-and-lessons-learned-global-response?utm_medium=email&utm_source=hks-newsletter
[4] O presidente da República chegou a propor Ação Direta de Inconstitucionalidade, com pedido de medida liminar, para suspender decretos da Bahia, Distrito Federal e do Rio Grande do Sul que estabelecem medidas restritivas como o fechamento de atividades não-essenciais e o “toque de recolher” noturno (ADI 6764). A Ação foi subscrita pelo próprio Presidente – não pelo Advogado-Geral da União –, o que foi considerado erro grosseiro pelo Ministro Marco Aurélio que, ao indeferir a inicial, anotou: “[…] há um condomínio, integrado por União, Estados, Distrito Federal e Municípios, voltado a cuidar da saúde e assistência pública – artigo 23, inciso II. Ante os ares democráticos vivenciados, imprópria, a todos os títulos, é a visão totalitária. Ao Presidente da República cabe a liderança maior, a coordenação de esforços visando o bem-estar dos brasileiros”.
[5] Servem como exemplo decisões prolatada na ADI nº 6.341/DF, ADI nº 6.343/DF e na ADPF 672/DF
[6] https://www.conectas.org/wp-content/uploads/2021/03/Boletim_Direitos-na-Pandemia_ed_10.pdf
[7] Disponível em https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/201217_td_2619_web.pdf