contraterrorismo

PL Contraterrorista coloca chefe de Estado acima da lei

Projeto de Lei 1595/19 é tentativa flagrante de usar aparato estatal sem se submeter à fiscalização institucional

IRELGOV
Prédio do Congresso Nacional. Crédito: Pixabay

Legislar a respeito do terrorismo é algo notoriamente difícil, pois se trata de um fenômeno em metamorfose permanente. Mais que um conjunto de crimes, o terrorismo é uma linguagem, que acompanha os avanços tecnológicos, as mudanças culturais e os enredamentos cada vez mais complexos do contexto sociopolítico. Vinte anos após o 11 de Setembro — o mais emblemático dos atentados terroristas modernos —, não há um consenso claro sobre a definição de terrorismo, e dificilmente haverá algum dia.

Essa indefinição inerente ao conceito gera uma insegurança jurídica imensa, e a legislação está sempre atrasada em relação ao terrorismo na forma como ele se dá na vida real. As únicas referências com as quais ela conta, afinal, são o repertório de táticas terroristas que já foram empregadas previamente — táticas que são justamente as menos prováveis de serem repetidas no futuro, uma vez que o grau de sucesso desses crimes é proporcional à sua imprevisibilidade.

É com isso em mente que devemos analisar o Projeto de Lei 1595/19, conhecido como PL Contraterrorista, que atualmente tramita na Câmara dos Deputados. Apresentado pelo deputado Major Vitor Hugo (PSL-GO), ex-líder do governo, o texto aproveita um projeto defendido pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) em 2016, à época deputado federal pelo PSC.

Na teoria, o projeto visa a estabelecer um conjunto de ações integradas entre unidades policiais, militares e de inteligência para “prevenir e reprimir a execução” dos atos terroristas. Na prática, ele comete o mais básico dos erros: banalizar a palavra terrorismo, com a qual se deve ter enorme cuidado, na medida em que ela existe justamente para caracterizar algo como sendo de maior gravidade que um crime comum.

Da maneira como está redigido, o projeto confere amplos poderes à autoridade supostamente contraterrorista, que podem violar direitos e garantias fundamentais, e representa um retrocesso com consequências perigosas. O texto contradiz boa parte da legislação atual e da própria Constituição e se vale de termos propositalmente vagos e inconclusivos para destinar um volume desproporcional de poder ao ocupante do Executivo. Todos os itens propostos parecem ter o mesmo objetivo: colocar o chefe de Estado acima da lei. Cabe esmiuçá-los em detalhes.

O PL propõe a criação de uma “Autoridade Nacional Contraterrorista”, a ser chefiada por um militar e um policial, e subordinada ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência. A intenção de ampliar a presença de militares no Executivo não surpreende (trata-se de uma das principais características do governo Bolsonaro), mas aqui ela é especialmente sensível, na medida em que trata de um órgão com atuação investigativa e criminal — e os militares, como se sabe, têm um sistema de Justiça próprio, diferente do civil. É um conflito de interesses evidente.

A seguir, o texto sugere a criação de grupos infralegais de “operações especiais”, compostos por “militares e civis especialmente selecionados”, subordinados ao presidente, que seriam empregados “em caráter episódico para a solução de crise pontual e específica”. Na prática, funcionaria como uma espécie de polícia paralela, à margem da lei, com critérios e funções excessivamente vagos. Não há uma definição do propósito desses grupos além de servir às vontades imediatas do chefe de Estado — eles seriam uma forma de utilizar o aparato estatal sem se submeter à fiscalização institucional, bônus sem ônus.

A estrutura de contraterrorismo teria prerrogativa, inclusive, para investigar atos que o próprio texto admite não serem de natureza terrorista, mas que entende como “potencialmente destrutivos a alguma infraestrutura crítica, serviço público essencial ou recurso-chave”, ou que “aparentem” ter a intenção de “intimidar ou coagir a população civil ou de afetar a definição de políticas públicas”.

Há também um item no projeto que garante acesso ilimitado a informações de órgãos públicos de qualquer brasileiro que seja alvo de investigação, inclusive aquelas classificadas como sigilosas. É uma violação flagrante do direito à privacidade e das garantias estabelecidas pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

O projeto chega a ponto de pressupor “a participação efetiva de toda a população brasileira” na “colaboração com o Poder Público na obtenção de informações acerca de atitudes suspeitas”. Não há esclarecimento algum, evidentemente, a respeito do que consistiriam tais atitudes. Assim como na época do regime militar, o cidadão é suspeito permanente até que se prove o contrário. É a velha ideia, defendida por regimes autoritários no mundo todo, de que a vigilância não dá margem a injustiças, pois se você não fez “nada de errado”, não tem nada a temer.

Por fim, há uma tentativa de conceder excludentes de ilicitude aos agentes contraterroristas mediante critérios igualmente vagos, como “compor equipe tática na retomada de instalações e no resgate de reféns”. É o ponto mais grave do projeto, e o que mais causou preocupação à sociedade civil desde que o PL foi aprovado na comissão especial criada para analisá-lo, em setembro.

Não bastasse isso, a responsabilidade de controlar e fiscalizar todas as atividades previstas no texto não caberia ao Ministério Público, que normalmente supervisiona a atuação das forças policiais no país, mas ao Congresso Nacional, cuja competência é completamente diversa. Seria a mesma coisa que garantir a impunidade total para o agente que violar a lei sob o pretexto de combate ao terrorismo.

O sistema contraterrorista brasileiro seria beneficiado por aprimoramentos legítimos — como a regulamentação da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e uma fiscalização mais sofisticada dos órgãos de controle público — e iniciativas nesse sentido seriam muito bem-vindas. No entanto, o PL Contraterrorista não trata disso, mas de uma tentativa evidente de concentrar poderes descabidos no Executivo e escapar do controle público sobre as ações de repressão e vigilância.

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