Piso da enfermagem

Não há como discutir piso da enfermagem sem solução para subfinanciamento da saúde

Se PL 2564/20 não ampliar repasses interfederativos e atualizar tabela do SUS, hospitais e clínicas fecharão

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Crédito: Pixabay

A discussão sobre o subfinanciamento do sistema de saúde brasileiro, embora recorrente, trata-se de um tema antigo, cuja solução vem sendo protelada pela falta, sobretudo, de vontade política de quem está em condições de resolver. O fato é que esse baixo orçamento para saúde não afeta apenas os estabelecimentos geridos diretamente pela administração pública.

Hoje, quase metade dos serviços hospitalares ofertados no Brasil é realizada por prestadores de serviços, que são estabelecimentos da rede privada, a sua maioria composta por hospitais filantrópicos e Santas Casas, que atendem a população mediante remuneração pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Ora, se metade dos hospitais brasileiros da rede privada atende a população mediante os valores de procedimentos pagos pelo SUS, isso quer dizer que o subfinanciamento do sistema afeta esses estabelecimentos, principalmente, com o pagamento defasado por procedimentos que são necessários à integralidade e universalidade da assistência ao usuário.

Em resumo, trata-se de um problema que afeta os dois lados: o setor público, que há décadas agoniza com corredores lotados e filas de espera por procedimentos que duram meses para ser agendados; e o setor privado, que se vê incapacitado de ampliar investimentos em modernização e na própria valorização de seus colaboradores.

Este cenário de subfinanciamento tomou proporções ainda mais preocupantes na última década, quando o setor hospitalar brasileiro começou a demonstrar, em números, os reflexos de uma recessão econômica sem precedentes. Estamos falando do período iniciado em 2010, portanto muito antes da chegada da pandemia da Covid-19. De lá para cá, o Brasil acompanhou o fechamento de mais de 600 hospitais e cerca de 40 mil leitos da rede privada. Os dados estão apresentados na edição do Cenário dos Hospitais do Brasil 2021, estudo atualizado e publicado anualmente pela Federação Brasileira de Hospitais (FBH) desde 2019.

Feita esta contextualização, é importante ter em mente que o setor hospitalar brasileiro, hoje composto por 4.100 estabelecimentos da rede privada, vem passando por um período de forte recessão econômica que já dura pelo menos dez anos. A principal explicação está nos reflexos da alta carga tributária aplicada ao setor, considerada uma das maiores do mundo. Sem falar das dificuldades enfrentadas pelos estabelecimentos de pequeno e médio porte (hospitais com até 100 leitos), que representam cerca de 70% de toda a rede. Muitos desses hospitais vêm atuando no seu limite orçamentário e operacional há anos, sem condições mínimas de investir em tecnologia ou qualificação para os seus colaboradores.

Os impactos da pandemia, portanto, amplificaram os problemas que já eram efetivamente cotidianos. Os preços de insumos elementares como EPIs (principalmente máscaras e luvas) e medicamentos tiveram elevações sem precedentes. Faltaram equipamentos e até matéria-prima para produção industrial do setor. Os estabelecimentos foram forçados a abrirem novas frentes de atendimento para dar conta da demanda, ao passo que sofriam com taxas crescentes de absenteísmo, em decorrência do alto número de profissionais contaminados pela Covid-19. O cancelamento de cirurgias e atendimentos eletivos também levou os hospitais da rede privada a amargarem prejuízos que chegaram a 40% de toda receita líquida.

Como se não bastassem todos os desafios já impostos, os impactos dessa crise sanitária passaram a revelar a necessidade de investimentos vultosos na reabilitação do sistema. Uma das prioridades para os próximos meses, sem sombra de dúvidas, será ampliar a capacidade de atendimento para fazer frente às consequências de diversas doenças que precisaram ter seus diagnósticos e tratamentos adiados. Tal cenário ampliou a demanda por procedimentos eletivos, ao passo em que agudizou casos que já eram preocupantes e que demandavam acompanhamento médico.

Ou seja, o momento requer investimentos em diversas frentes para ampliar o acesso da população à assistência, e não para restringir. O país precisa, neste momento, de caminhos que apontem saídas para os gargalos econômicos do setor, e não de projetos que contribuam para onerar ainda mais a folha e colocar em xeque a própria sustentabilidade do sistema, sem ao menos apontar de onde sairão os recursos.

O Senado aprovou em novembro o PL 2564/2020, que institui o piso salarial para enfermeiros em R$ 4.750; para técnicos de enfermagem em R$ 3.325 e para auxiliares de enfermagem em R$ 2.375 mensais, para o setor público e privado, inclusive entidades filantrópicas e organizações sociais de saúde.

Se o projeto do piso da enfermagem for também aprovado na Câmara dos Deputados, poderá resultar em um efeito dominó drástico para todo o sistema de saúde brasileiro, incluindo as demais especialidades de relevante importância no atendimento hospitalar.

Isso porque estarão aprovando um projeto que trará impactos diretos no custeio de milhares de programas de saúde da família, mantidos pelas administrações municipais; de milhares de hospitais, clínicas e laboratórios, que atuam como prestadores de serviços; assim como para outros milhares de hospitais privados e seguradoras de planos de saúde, que consequentemente terão que aumentar seus preços e correm o risco de perder pacientes para a rede pública. E aí surge outro problema: a debandada de pacientes para uma área que há muito está sobrecarregada.

É importante deixar claro que não estamos discutindo se os profissionais de enfermagem merecem ou não o aumento salarial. Somos conscientes do papel imprescindível que a categoria desempenha no funcionamento de um hospital. Hoje, ela representa cerca de 50% de toda a mão de obra do setor.

O que precisa ficar claro é que a proposta, se não apresentar soluções para ampliar os repasses interfederativos e atualizar os preços de procedimentos pagos pelo SUS, certamente vai levar ao fechamento de inúmeros hospitais e clínicas, principalmente os de pequeno e médio porte, que estão localizados no interior. Esses estabelecimentos já vem enfrentando uma crise que perdura há mais de uma década, conforme destaquei há pouco.

O Brasil é um país de dimensões continentais, que apresenta ao longo de seu território consideráveis discrepâncias geográficas, econômicas e sociais. Portanto, qualquer proposta que tenha por objetivo instituir piso salarial para categorias deve levar em conta as diversidades econômicas regionais e locais do país, uma vez que o nosso Brasil é composto por 5.570 realidades diferentes. A capacidade econômico-financeira dos empregadores, sejam eles públicos ou privados, varia de forma ampla entre as regiões do país, e dentro da mesma região, e mesmo dentro de um mesmo estado.

Estudos econômicos realizados pelas entidades que representam o setor demonstram que o impacto do piso da enfermagem será devastador, chegando a mais de R$ 12 bilhões ao ano no total apenas para o setor privado – sendo R$ 6,2 bilhões para entidades sem fins lucrativos, como as Santas Casas, e R$ 5,8 bilhões para entidades com fins lucrativos.

É muito difícil para um setor que há dez anos enfrenta recessão econômica considerável, impactado por uma das maiores cargas tributárias do mundo, que tem vivenciado uma inflação absurda na oferta de insumos e equipamentos em decorrência da pandemia e que luta para se sustentar com valores defasados pagos pela tabela do SUS encarar a aprovação de um projeto que vai onerar ainda mais o seu funcionamento, sem com isso apresentar soluções para o seu devido custeio.

Somos entusiastas e militantes de uma saúde de qualidade e acessível a todos os brasileiros, e sabemos perfeitamente que este processo passa necessariamente pela valorização dos nossos profissionais que estão na linha de frente da assistência à população. Porém, existe uma condição sine qua non para que esta discussão possa avançar: precisamos de soluções para resolver o problema do subfinanciamento. Sem isso, não há como seguir no debate sobre pisos e jornadas de trabalho para quem quer que seja!