Lava Jato

Petrobras, incompetência e suspeição

Julgamento da suspeição de Sérgio Moro pode ser muito mais favorável à defesa do que incompetência

Sergio Moro suspeição
O ex-juiz Sérgio Moro, que já teve 2 votos no STF favoráveis à declaração de sua suspeição ao julgar Lula. (Credito: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Se o Brasil não é para principiantes, como lembrava o enorme Tom Jobim, o Direito deve ser para os cidadãos, amadores ou não. Deve ser para eles, a despeito das tecnicalidades inerentes à Ciência ou ao pensamento científico. Algumas questões, entretanto, são bem mais simples que outras. Em direito penal, por exemplo, ninguém tem dúvida sobre o significado do tipo penal matar alguém: abstraídos os defeitos do morto, sabe-se que se trata do ser humano.

A competência de jurisdição pode trazer certa complexidade, é bem verdade. Mas não em relação a temas mais cotidianos como a separação entre competência constitucional e a competência legal, tendo as primeiras a origem na Constituição e as últimas na legislação, o mesmo ocorrendo na definição da competência territorial, cujas regras, em regra, privilegiam o lugar do crime.

No âmbito constitucional, o art. 109, IV, não contemplou expressamente as lesões ou danos ao patrimônio, serviços e interesses das sociedades de economia mista, como matéria de competência criminal da Justiça Federal. Por essa singela – e equivocada razão, segundo sempre nos pareceu – os crimes praticados contra essas sociedades, mesmo tendo a União como acionista majoritária (caso da Petrobrás), eram julgados pela Justiça dos Estados. Alegava-se que a ausência de referência expressa de tais sociedades no citado art. 109, IV, significaria a ausência de interesse federal prioritário. Havia até Súmula no Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a questão (Súmula 42).

Era essa a jurisprudência até a Operação Lava Jato. Equivocada, mas pouco resistida (Registre-se decisão contrária do Supremo Tribunal Federal, STF, na AgR RE 614.115, em setembro de 2014, cuidando de sociedade de economia mista atuante na área portuária, de óbvio interesse federal).

Com os saques e esbulhos praticados contra o patrimônio da Petrobrás, o cenário começou a modificar-se, com ou sem justa motivação. A partir dali, então, a competência constitucional mudou de direção, não sabemos se pelo tamanho da corrupção, ou se por necessária reflexão. Mudou, enfim.

Resta ver a competência territorial.

A nosso juízo, há algo inescapável no direito processual penal de hoje: a 13ª. Vara de Curitiba arvorou-se em juízo nacional da Petrobrás, sociedade de economia mista, ignorando olimpicamente as regras do CPP, e, em especial, aquela atinente à competência pelo lugar do crime.

Não bastasse, ignorou completamente a existência de outros Tribunais Regionais Federais espalhados pelo Brasil, com outros juízes federais e eles vinculados, funcionalmente e por repartição de competência. E são cinco os TRFs Brasil afora. Todos abrigando competência de juízes federais a eles vinculados.

De modo que, bem vistas as coisas e bem lida a Constituição da República, os fatos lesivos a Petrobrás, quando praticados em São Paulo, lá deveriam ser apreciados; quando no Rio, ali, perto ao Corcovado, deveriam ser processados.

Há outra perspectiva acerca do lugar do crime. Se os atos delituosos forem ou tiverem sido praticados junto à direção da Petrobrás, por indevida intervenção nos cargos e com finalidade espúria, a competência seria e deveria ser do juiz federal de Brasília (ou do Rio, onde fica a sede da Petrobras). Mas, não. Sob injustificados aplausos e duplicadas mesuras, os sinos se dobraram por Curitiba. Mas não sob nossa doutrina, em livros, artigos e palestras, e desde sempre.

Por tudo isso está correta a decisão de Fachin, quanto ao conteúdo. Quanto ao tempo, as consequências poderão ser dramáticas, dado que muitas pessoas podem ter estado ou ainda estarem presas por decisão de autoridade judiciária incompetente.

Há outro ponto: segundo a jurisprudência do STF, em se tratando de incompetência relativa, isto é, legal, sem a violação ao juiz constitucional, portanto, a novo juiz poderia ratificar os atos de instrução, e até mesmo o recebimento da denúncia. O espaço é curto para examinar por inteiro a matéria.

Mas, no que mais importa, o fato é que, em se tratando de suspeição, a consequência deverá ser outra, pois o vício de imparcialidade pode e deve contaminar todos os atos, se atestado o comprometimento do magistrado desde o início do processo.

É precisamente por essa razão que se deve prosseguir no julgamento de suspeição de Moro no STF, dado que a decisão que julgou prejudicado aquele HC se fundou apenas na incompetência territorial. Se o vício fosse de incompetência constitucional, a anulação seria desde o início, e, mais que isso, atingiria a própria denúncia, que, nesse passo, teria sido oferecida por parte ilegítima (Ministério Público dos Estados atuam nos Juízes Estaduais; o Ministério Público Federal, perante os Federais).

Assim, se houvesse vício de incompetência absoluta, estaria mesmo prejudicado o julgamento da suspeição do juiz de Curitiba. No entanto, e tendo sido reconhecida – até agora – a incompetência apenas relativa, os atos instrutórios poderão mesmo ser ratificados (ou renovados, em determinadas circunstâncias), em tese (há muito mais a considerar sobre o tema).

Daí resultar pendente o interesse da defesa no julgamento da suspeição, cujo resultado poderá lhe ser muito mais favorável. O art. 96, CPP, não resolve a questão; a extensão do julgado, sim. No caso concreto, ademais, a decisão pode ser objeto de recurso ainda, com o que não faria sentido a paralisação do julgamento do incidente (suspeição).

Última observação: o caríssimo princípio do juiz natural não contempla somente a jurisdição do juiz constitucional. Compõe-se também, e, sobretudo, da garantia da proibição do juiz de exceção.


O episódio 51 do podcast Sem Precedentes faz uma análise do julgamento do Supremo Tribunal Federal que pode derrubar a decisão do governo Jair Bolsonaro de zerar alíquota de importação de armas de fogo. Ouça: