Administração Pública

Passando a boiada: experimentalismo em compras públicas e o futuro das licitações

As inovações na esfera das compras públicas no Brasil continuam se impondo por meio de normativos infralegais

desmatamento
Boiada / Crédito: Mayke Toscano/Secom-MT

A incidência dos efeitos da pandemia da Covid-19 no campo das compras públicas acabou por atualizar dois padrões históricos nas regras sobre licitações no Brasil: a emergência de novas leis como uma tentativa urgente de lidar com os problemas impostos pela nova realidade[1] e a consequente insuficiência legislativa relativa à solução dos entraves mais agudos das compras públicas. O resultado, longe de ser inédito, gerou novos episódios de corrupção e ineficiência.

Embora estes dois padrões sejam dominantes, a realidade atual das compras públicas não se limita a eles. A incapacidade da Lei nº 8666/93 em dar respostas eficazes na provisão de bens e serviços públicos foi, historicamente, em parte contornada pela emergência de regimes legais paralelos, como o pregão, o Regime Diferenciado de Contratações (RDC), e recentemente, pela criação de uma nova modalidade de dispensa de licitação no contexto da pandemia. Essa tendência de “fuga da 8.666” para sistemas legais excepcionais e menos abrangentes, no entanto, não conta toda a história.

A evolução das aquisições governamentais teve início muito antes da pandemia, há alguns anos, em decorrência das necessidades de mercado. Desde então, vem se dando, primordialmente, por meio de novidades infralegais com efeitos de alto impacto.

Experiência pioneira em relação à otimização do processo de compras públicas foi a criação, em 2014, via decreto, da Central de Compras, na estrutura do Ministério do Planejamento[2]. Por meio dela, o Governo Federal buscou aprimorar os procedimentos de compra de bens e serviços pela centralização da contratação desses insumos, diminuindo altos custos incorridos pela ausência de economias de escala e falhas de planejamento. Como exemplos de práticas inovadoras, temos a compra de passagens aéreas diretamente pelo Poder Público e a implementação do Taxigov.

A Central de Compras adotou uma nova estratégia no que diz respeito à forma de prestação do serviço de transporte dos servidores públicos, com base em um modelo de sistema de agenciamento de táxis por meio de plataforma digital.

Interessante notar o contraste das discussões sobre as transformações do marco legal das licitações, que ainda tenta assimilar as vantagens da substituição do critério de “menor preço” na aquisição para o critério de avaliação do ciclo de vida, ao passo que as mudanças infralegais parecem estar pelo menos um passo à frente, abandonando um paradigma focado em propriedade para um, mais moderno, com ênfase no uso da característica do compartilhamento. É dizer: a Administração Pública passa de dona a usuária de um serviço.

Em outro exemplo, verifica-se que a compreensão da necessidade de modificações nas rotinas de pagamento como forma de desenvolver o ambiente de compras públicas foi primordial para que houvesse uma revolução na aquisição de passagens aéreas.

A partir  (i) do emprego do Sistema de Concessão de Diárias e Passagens (SCDP), da (ii) adoção do credenciamento como forma de seleção dos fornecedores e, especialmente, do (iii) Cartão de Pagamento do Governo Federal (CPGF), corrigiu-se uma das principais falhas no modelo anterior: a necessidade de intermediação de agências de viagens, que acarretavam um inexorável aumento dos custos de transação.

Esses exemplos ilustram que mudanças tectônicas, isto é, subterrâneas e de alta magnitude, não precisam ser mediadas por mudanças legais. Elas podem ser viabilizadas a partir do aprimoramento do ambiente do sistema de compras pelo uso mais intensivo de tecnologia e foco no desenho de mercados, como também pela facilitação no recebimento de valores a serem pagos ao particular por parte do Estado nos contratos públicos.

Sobre o último ponto, destaca-se a publicação da Instrução Normativa nº 53, de 08 de julho de 2020, que dispõe sobre as regras e os procedimentos para operação de crédito garantida por cessão fiduciária dos direitos de créditos decorrentes de contratos administrativos, realizadas entre o fornecedor e instituição financeira, por meio do Portal de Crédito digital, no âmbito da Administração Pública federal.

Nas compras governamentais, o procedimento padrão para pagamento das faturas emitidas pelo contratado pode levar até 30 dias. A partir da IN 53/2020, fica viabilizada a solicitação de antecipação desse crédito devido pela Administração junto a instituições financeiras previamente credenciadas pela Central de Compras/SEGES, do Ministério da Economia[3].

Em outras palavras: a instituição financeira antecipará o valor à empresa contratada, aplicando uma taxa de desconto, e o pagamento será efetuado pela Administração Pública diretamente ao banco. Há aí, portanto, um forte incentivo à participação das empresas nos certames públicos com a consequente elevação de competitividade.

Quanto ao potencial disruptivo do emprego de novos métodos no desenho de mercados, inclusive para aquisições governamentais, merece destaque a figura do marketplace.

Trata-se de ferramenta que está intrinsicamente ligada ao aspecto tecnológico e que se desenvolve por meio de uma plataforma digital mantida por um operador responsável pela intermediação entre compradores e vendedores, contendo produtos credenciados e fornecedores pré-contratados com os preços máximos obtidos.

Nesse tipo de plataforma, ficam armazenadas informações cadastrais e histórico de pagamento dos compradores, bem como o rating dos fornecedores, o que oportuniza maior qualidade e concorrência nas transações, além da disponibilização de meios de pagamento eletrônicos, medida que confere celeridade, transparência e segurança aos participantes. No setor privado, o marketplace é uma realidade consolidada.

Na esfera pública, há muito o que se avançar.[4] Porém, o arranjo legal nos moldes em que se encontra não impede a implementação do marketplace, que já pode ser implementado, funcionando com algumas limitações.

Embora as transformações infralegais possam colaborar na melhoria do sistema, como os exemplos tratados no texto ilustram, há um limite, que somente poderá ser transposto com modificações legais.

Sem a adoção, no marco legal brasileiro, de soluções do tipo Acordo-Quadro, em uso na Europa e Estados Unidos, o marketplace não terá condições de materializar toda a sua potencialidade. Sem um esforço legislativo no sentido de disciplinar as relações contratuais futuras, as mudanças efetivadas por meio de mecanismos infralegais em algum momento poderão serão esvaziadas.

Esse fato, no entanto, não invalida a conclusão de que o sistema vem se transformando de baixo para cima. As inovações infralegais criam condições que impulsionam as necessárias mudanças no arcabouço legal das compras públicas.

Num plano intermediário, a recente edição de diversas medidas provisórias tratando do tema – MP 926, 951, 961, todas de 2020 – apontam para uma estratégia de introdução temporária no nível legal de arranjos inovadores, alguns deles antecipando aspectos daquele que deveria ser o novo Regime Geral de Licitações e Contratos (PL 1292/95).

Aqui e ali, é possível perceber até mesmo um certo oportunismo legislativo mais evidente, a exemplo do art. 2º da MP 961, que permite utilização do RDC durante a pandemia, mas não o limita ao enfrentamento da pandemia.

O cenário mostra, portanto, que as inovações na esfera das compras públicas no Brasil continuam se impondo por meio de normativos infralegais, os quais vêm consolidando um novo regramento que muito se aproxima do formato trazido pelo Acordo de Compras Governamentais (Agreement on Government Procurement – GPA), da Organização Mundial do Comércio (OMC), e cada vez mais se afasta do espaço de atuação do paradigma assentado pela Lei nº 8.666 – que vê a boiada passar, como o menino na porteira, talvez aguardando o mesmo destino.

 


[1] BORGES, Alice Gonzalez. “Aplicabilidade de normas gerais de lei federal aos estados”, em Revista de Direito Administrativo – RDA, Rio de Janeiro, n. 194, out./dez. 1993. A autora, em artigo escrito ainda nos primeiros momentos de aplicação da 8.666/93, assevera que: “esta [a Lei 8.666/93] é uma lei de circunstância (…) Esta é uma lei emocional, estruturada sob o impacto dos escândalos administrativos que explodiram em todo o País”

[2] Instituída inicialmente pelo Decreto nº 8.189/2014 como parte da Assessoria Especial do Gabinete do Ministro, a Central de Compras passa a inetegrar a SEGES/MP em 2015. Ela “busca concentrar as funções de apoio voltadas à contratação e aquisição de bens e serviços de necessidade comum entre os órgãos e entidades da APF, tais como serviços de telefonia, compra de passagens aéreas, equipamentos de videoconferência, computadores etc”. Disponível em: TÁXIGOV: Inovando no Serviço de Mobilidade de Servidores. Casoteca de Gestão Pública. ENAP.

[3] Observa-se que a aquisição de passagens aéreas diretamente das companhias aéreas pela Administração por meio do Cartão de Pagamento do Governo Federal (CPGF) – meio de pagamento utilizado pelo governo que funciona de forma similar ao cartão de crédito – já apontava como mecanismo de antecipação de crédito junto aos particulares antes mesmo da aprovação da IN nº 53/2020. O tema também foi endereçado com a recente edição da MP 961/2020, que disciplinou as possibilidades de pagamento antecipado.

[4] Para uma discussão dos cenários possíveis de implementação do marketplace na administração pública, cf. Fiuza et al, 2020, Revisão do Arranjo das Compras Públicas a Partir de um Contexto de Crise, Nota Técnica Ipea/Diset nº 68/2020.

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