Coronavírus

Panorama global da justiça criminal em tempos de pandemia

Estudo analisa efeitos na justiça criminal e identifica problemas e soluções adotadas em âmbito nacional e mundial

Foto: Christiano Antonucci/Fotos Públicas

Em uma crise sem precedentes na vida contemporânea, advinda da contaminação da Covid-19 em todas as partes do globo, o convívio social demandou uma série de adaptações, muitas delas com o apoio dos meios tecnológicos.

A vida em sociedade abriu espaço ao isolamento e os aplicativos de comunicação nunca foram tão utilizados nas relações pessoais e profissionais. A circulação de pessoas, bens e serviços também sofreu drásticas reduções, obrigando, mais uma vez, a tecnologia a fornecer meios capazes de compensar esse desequilíbrio.

No serviço público também não foi diferente e a necessidade de reorganização impulsionaram a administração pública, o Poder Judiciário, a Defensoria Pública e os demais atores do sistema de Justiça a acelerarem projetos de informatização tendentes a tornar o serviço público mais eficiente.

Aplicativos para acesso de serviços e informações pelo público se tornaram a porta de entrada para aqueles que necessitam de prestações estatais, assistência jurídica e resposta jurisdicional. Por outro lado, a gestão de processos em andamento, a reorganização administrativa e a preservação da integridade dos agentes públicos também exigiram medidas de aparelhamento.

Diante de todo esse panorama, o presente estudo tem o propósito de analisar os efeitos da pandemia na justiça criminal e identificar problemas e soluções adotadas em âmbito nacional e mundial. O trabalho se encontra metodologicamente amparado pela pesquisa empírica conduzida pelo Global Access to Justice Project, que analisou os impactos da Covid-19 nos sistemas de justiça de 51 países ao redor do mundo[1].

Para mapear o acesso à justiça a nível mundial e analisar como os países vêm lidando com aspectos jurídicos em tempos de pandemia, o projeto elaborou um questionário, composto por 19 perguntas, divididas em quatro grandes eixos temáticos: (i) visão geral sobre as medidas adotadas pelos diversos países; (ii) impactos em grupos vulneráveis; (iii) impactos nos sistemas judiciais; (iv) impacto nos sistemas de assistência jurídica.

Os questionários foram respondidos por professores e pesquisadores de cada um dos países indicados, sendo os dados consolidados de modo a se ter um panorama das principais restrições e dificuldades enfrentadas pelos países, bem como das medidas adotadas frente às limitações impostas pela pandemia.

Especificamente em relação ao sistema jurídico, com enfoque na Justiça Criminal, essa veloz pesquisa trouxe importantes dados para compreensão da resposta dos Estados frente a expansão da Covid-19.

Dos 51 países que participaram da pesquisa, 48 (94%) relataram que mesmo em meio a pandemia os tribunais continuaram a apreciar a legalidade das prisões, enquanto que em 3 países (6%) não foram obtidas informações claras nesse sentido, a exceção da França, onde foi relatado que medidas de prorrogação automática da prisão foram aplicadas com o aval da jurisdição administrativa.

Um segundo questionamento, referente à concessão antecipada de liberdade antes do término do prazo da prisão contou com um equilíbrio percentual. Em 24 países (47%) houve a adoção de medidas para a redução da população carcerária, a exemplo da liberação antecipada, colocação em prisão domiciliar, flexibilização do regime semiaberto e aberto com desnecessidade de retorno ao estabelecimento prisional.

Os critérios adotados para flexibilização do cárcere são muito variados, a exemplo do quantitativo da pena, enquadramento em grupo de risco, natureza do crime praticado. Em outros 25 países (49%) nenhuma medida foi adotada, não obstante haver em alguns deles a indicação de início de debates sobre a possibilidade de medidas de flexibilização do cárcere[2] e adiamento de início do cumprimento de condenações de baixa duração.

Outra medida analisada na pesquisa, relacionada ao sistema prisional diz respeito ao uso de celas individuais para evitar a contaminação dos presos. Em 7 países (14%) houve a confirmação de medidas dessa natureza. Na Espanha, em específico, adotou-se a política de isolamento em celas individuais nos casos em que os detentos apresentassem sintomas da Covid-19.

Por outro lado, em 37 países (72%) não foram registradas medidas tendentes a colocação de presos em celas individuais, por questões de superlotação carcerária. Destaque-se que alguns estabelecimentos procuraram adotar uma quarentena de 14 dias para os novos detentos, isolando-os da população carcerária até que se tivesse a certeza da não contaminação[3]. A Holanda traz um dado interessante, já que naquele sistema jurídico a utilização de celas individuais é um padrão comum no cumprimento da pena.

Medidas relacionadas à restrição do direito de visitas às pessoas privadas de liberdade foram adotadas em 47 países (92%), sendo certo que alguns países mantiveram o acesso apenas aos advogados (Bulgária e Etiópia), enquanto outros implantaram métodos tecnológicos para contato das famílias com os presos (Colômbia e França). Em 3 países (6%) não houve a proibição de visitas, tendo sido adotadas medidas como verificação de temperatura e uso de máscaras pelos visitantes (Taiwan)[4].

Um dado interessante diz respeito à capacidade do governo e do sistema de justiça em manter a estabilidade do Estado e evitar violações arbitrárias por indivíduos, organizações e até mesmo autoridades durante a pandemia. Em 49 países (96%) se verificou que o Estado foi capaz de manter a sua organização e, mesmo com as limitações advindas da pandemia, realizar as atividades de natureza essencial, mantendo-se um quadro similar ao da vida em sociedade antes da disseminação da Covid-19. Apenas 2 países (4%) relataram dificuldades na preservação da autoridade do Estado e da efetividade das normas.

Essa capacidade do Estado de se manter presente em tempos da pandemia gravita em torno de medidas adotadas pelos governantes e atores do sistema de justiça na direção de preservar a continuidade dos serviços, mesmo que à distância, como destacaram China e África do Sul.

A par da realidade mundial, faz-se necessária uma contextualização com o sistema jurídico brasileiro, com olhar na justiça criminal, de modo a se traçar uma visão comparada com os demais países.

Analisando nosso sistema jurídico é importante observar que o Judiciário foi capaz de continuar a análise da legalidade das prisões. Importante registrar que desde 2015 deu-se início a organização de audiências de custódia, de modo presencial, para apresentação dos presos perante a autoridade judicial, com vistas a aferição da legalidade da prisão, na forma da Resolução nº 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça[5] e o art. 7º da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Enquanto o Código de Processo Civil[6] permite a prática de atos processuais, tomada de depoimentos e participação em julgamentos por videoconferência sem qualquer condicionante (arts. 236, §3º; 385, §3º; 453, §1º; 461, §2º e 937, §2º) o Código de Processo Penal[7] assegura apenas a realização de videoconferência em audiências quando houver temor por parte da testemunha ou quando ela residir em outra localidade (arts. 217 e 222) ou o interrogatório do acusado quando houver risco à segurança pública, enfermidade ou questão grave de ordem pública (arts. 185, §2º).

Interessante notar que a recente Lei nº 13.964/2019[8] continha disposição vedando a realização de audiência de custódia por meio de videoconferência, sendo o dispositivo vetado[9] pelo presidente da República, por entender inexistir fundamento jurídico para a vedação, o que abriria margem para a realização do ato de apresentação do preso à autoridade judiciária por meio de recurso tecnológico.

A expansão da Covid-19 no território brasileiro durante os meses de março e abril trouxe a necessidade de suspensão dos atos de apresentação de presos para audiências de custódia, cabendo aos juízes a análise estritamente documental da situação do preso, sem o ato formal de audiência.

Houve tentativa de realização da audiência de custódia por meio de videoconferência, mas a Defensoria Pública ofereceu resistência a essa possibilidade, baseando-se no julgamento do Superior Tribunal de Justiça no CC 168.522-PR[10] e do CNJ no Procedimento nº 0008866-60.2019.2.0.0000[11] (ambos julgados antes da pandemia).

Entretanto, importante notar que os tribunais vêm envidando esforços em realizar audiências criminais e julgamentos por videoconferência em virtude do prolongamento do período de isolamento social e não se exclui a possibilidade de audiências nessa modalidade.

O Conselho Nacional de Justiça já desenha uma proposta nacional de regulamentação das audiências por videoconferência, estabelecendo parâmetros a serem observados pelos tribunais na realização de atos instrutórios.

É certo que a realização de audiências de instrução e julgamento reguladas fora dos critérios estatuídos pelo Código de Processo Penal, por meio de ato administrativo, esbarrará em uma série de parâmetros de constitucionalidade que serão levados ao Supremo Tribunal Federal. Entretanto, nossa Corte máxima já vem sinalizando autocontenção em razão dos reflexos da pandemia, não sendo possível prever o resultado desse debate constitucional.

Além disso, no que pertine à questão da gestão da situação prisional, o Conselho Nacional de Justiça também tem buscado um protagonismo na condução do ambiente de crise, através da Recomendação nº 62/2020[12], editada com o propósito de orientar a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção no âmbito dos estabelecimentos do sistema prisional e do sistema socioeducativo.

O ato do CNJ estabeleceu uma série de parâmetros para a revisão das prisões provisórias, definitivas e medidas de internação a adolescentes. Ao mesmo tempo, tratou da prisão civil por dívida de alimentos.

Houve recomendação para que os magistrados com competência para apreciação de atos infracionais praticados por adolescentes e crimes revisassem as medidas de privação de liberdade impostas em desfavor de gestantes, lactantes, mães ou responsáveis por criança de até doze anos de idade ou por pessoa com deficiência, assim como indígenas, adolescentes com deficiência e demais que se enquadrem em grupos de risco; que estivessem em estabelecimentos prisionais e unidades socioeducativas com ocupação superior à capacidade ou que não disponham de equipe de saúde lotada no estabelecimento.

Recomendou-se também a substituição de prisões preventivas que tenham excedido o prazo de 90 (noventa) dias ou que estejam relacionadas a crimes praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa por outras medidas cautelares.

Do ponto de vista da execução penal, o CNJ recomendou que se avaliasse a possibilidade de concessão de saída antecipada dos regimes fechado e semiaberto, nos termos das diretrizes fixadas pela Súmula Vinculante nº 56 do Supremo Tribunal Federal, a partir dos parâmetros mencionados no parágrafo antecedente.

Além disso, o CNJ orientou os magistrados no sentido de:

(a) conceder prisão domiciliar em relação a todas as pessoas presas em cumprimento de pena em regime aberto e semiaberto, mediante condições a serem definidas pelo Juiz da execução;

(b) colocar em prisão domiciliar pessoa presa com diagnóstico suspeito ou confirmado de Covid-19, mediante relatório da equipe de saúde, na ausência de espaço de isolamento adequado no estabelecimento penal;

(c) suspender temporariamente o dever de apresentação regular em juízo das pessoas em cumprimento de pena no regime aberto, prisão domiciliar, penas restritivas de direitos, suspensão da execução da pena (sursis) e livramento condicional, pelo prazo de noventa dias.

A Defensoria Pública contou com êxito no Superior Tribunal de Justiça por meio da impetração de Habeas Corpus de natureza coletiva. No HC nº 568.752 foi determinado ao Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro a revisão de todas as prisões dos idosos (maiores de 60 anos) no prazo de 10 dias, sob pena de soltura imediata[13]. No HC 568.021 o STJ proferiu decisão com extensão nacional, determinando que todas as prisões civis de devedores de alimentos fossem substituídas por prisões domiciliares[14], seguindo recomendação do próprio CNJ.

Não existem registros de medidas dedicadas ao uso de celas individuais nos estabelecimentos prisionais, devendo ser esclarecido que a população carcerária no Brasil é da ordem de 773.151 pessoas[15], o que revela superlotação das penitenciárias, tornando inviável o uso de celas individuais.

Houve a proibição total de visitação de familiares aos presos nos estabelecimentos prisionais e durante a segunda quinzena de abril vieram a público os primeiros registros de casos de infecção e óbito por Covid-19 nos presídios[16].

Por fim, apesar do período de isolamento social, pode se dizer que o sistema de justiça vem buscando preservar sua própria autoridade. Houve uma rápida reorganização da forma de atuação, assegurando o atendimento das causas urgentes por meio remoto, valendo o registro da criação de polos de atendimento remoto pelas Defensorias Públicas[17] e o aumento de produtividades pelos órgãos do Poder Judiciário[18].

A pandemia exigiu que os tribunais determinassem a suspensão dos prazos processuais dos processos físicos e eletrônicos, o fechamento das sedes dos fóruns para atendimento ao público e o adiamento das audiências.

Como alternativa foram abertos canais eletrônicos para contatos dos advogados com os magistrado e serventuários, a utilização de plataformas eletrônicas (Zoom, Microsoft Teams, Google Meet e Cisco Webex) para realizações de audiências, sessões e reuniões.

A importância de pesquisas dessa natureza é tamanha, permitindo que experiências do direito comparado possam sem partilhadas e reproduzidas, além de propor reflexões sobre adaptações ao sistema de justiça criminal.

 


[1] Austrália, Bélgica, Brasil, Bulgária, Camboja, Canadá, Chile, China, Colômbia, Cuba, Chipre, Republica Democrática do Congo, Dinamarca, Equador, Etiópia, Finlândia, França, Geórgia, Honduras, Hungria, Índia, Irlanda, Itália, Japão, Cazaquistão, Quênia, Kosovo, Lituânia, Malaui, Maldivas, Mongólia, Namíbia, Nepal, Holanda, Nova Zelândia, Macedônia, Paquistão, Polônia, Portugal, Seychelles, Serra Leão, Cingapura, África do Sul, Espanha, Taiwan, Tajiquistão, Tanzânia, Estados Unidos da América, Vanuatu, Zâmbia e Zimbábue.

[2] Importante destacar que 2 países não trouxeram registros em relação a esse aspecto.

[3] Importante destacar que 7 países não trouxeram registros em relação a esse aspecto.

[4] Importante destacar que 1 país não trouxe registros em relação a esse aspecto.

[5] Disponível em: <https://atos.cnj.jus.br/files/resolucao_comp_213_15122015_22032019144706.pdf>.

[6] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>.

[7] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm>.

[8] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm>.

[9] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Msg/VEP/VEP-726.htm>.

[10] Disponível em: <http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Audiencia-de-custodia-deve-ser-realizada-no-local-onde-ocorreu-a-prisao.aspx>.

[11] Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/toffoli-reafirma-impedimento-de-audiencia-de-custodia-por-videoconferencia/>.

[12] Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/03/62-Recomendação.pdf>.

[13] Disponível em: <http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/STJ-estende-liminar-e-concede-prisao-domiciliar-a-todos-os-presos-por-divida-alimenticia-no-pais.aspx>.

[14] Disponível em: <http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/STJ-estende-liminar-e-concede-prisao-domiciliar-a-todos-os-presos-por-divida-alimenticia-no-pais.aspx>.

[15] Disponível em: <https://www.gov.br/pt-br/noticias/justica-e-seguranca/2020/02/dados-sobre-populacao-carceraria-do-brasil-sao-atualizados>.

[16] Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2020/04/29/ceara-registra-primeira-morte-de-preso-infectado-com-o-novo-coronavirus>.

[17] Disponível em: <http://www.defensoria.rj.def.br/noticia/detalhes/10202-Em-um-mes-Defensoria-realiza-mais-de-26-atendimentos-remotos>.

[18] Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/em-tres-semanas-justica-destina-quase-r-200-milhoes-para-combater-coronavirus/>.