Equidade

Pandemia e pressão familiar: magnificando questão de gênero na carreira acadêmica

Pesquisa revela que desigualdade de gênero foi agravada pela experiência do home office generalizado pela pandemia

Crédito: Pexels

Historicamente, as mulheres sempre tiveram um papel secundário na academia, como de resto em outros ambientes profissionais. Ademais, o aumento da participação das mulheres na academia que temos observado nas últimas décadas não contribuiu para a extinção de preconceitos de gênero na academia. Assim, é preciso que essa expansão inclua a conscientização sobre questões de gênero para que ela implique, de fato, em avanços reais para as mulheres.

Dados de 2017[1] mostram que a proporção de mulheres na academia brasileira alcançou o  marco geral de 49%, ainda que haja divergência entre universidades e suas unidades (como na FDUSP, em que o número de discentes mulheres é de aproximadamente 17%, como indicam os dados do GPEIA[2]).

Em qualquer destes cenários, ainda é presente o chamado “Efeito tesoura” representado por uma relação inversamente proporcional entre o patamar de prestígio acadêmico e o número de mulheres. Em quase todos os ambientes acadêmicos, a proporção de mulheres diminui conforme o prestígio aumenta[3].

A baixa representatividade em cargos de liderança na  academia é ainda menor quando se considera a idade das mulheres. De fato, o número de mulheres em idade reprodutiva/fértil em posições de liderança é significativamente menor[4].

Portanto, as assimetrias entre os gêneros na academia se acirram especialmente nos momentos em que questões relacionadas à busca pelo equilíbrio entre vida pessoal e profissional afloram na vida pessoal. Para as mulheres, essa dimensão é crucial e a maternidade tem papel protagonista nesse cenário[5].  

As relações de gênero na academia são profundamente marcadas pelos impactos da maternidade sobre a produtividade acadêmica da mãe pesquisadora, em especial no tocante às dinâmicas relativas aos cuidados dos filhos: um estudo do movimento Parent in Science[6],  mostrou que entre as mães-pesquisadoras, 54% são cuidadoras solo de seus(uas) filhos(as) enquanto somente 34% compartilham de forma igualitária os cuidados dos(as) filhos(as) com o pai.

A pesquisa[7] realizada pelo movimento trouxe dados relativos aos efeitos de gênero, raça e parentalidade sobre a população da pós-graduação brasileira – separada entre os grupos docentes, discentes e pós-doutorandos(as) – sobre a produtividade acadêmica durante o período de isolamento social em decorrência da Covid-19.

Os achados do trabalho, sob o enfoque das circunstâncias atuais vivenciadas pela população acadêmica brasileira, lançou luz sobre problemas estruturais já conhecidos na luta por inclusão, diversidade e igualdade na academia. Buscou-se entender a influência dos fatores analisados sobre dois elementos da produtividade acadêmica: submissões de artigos científicos e habilidade em cumprir prazos de entregáveis.

Sob a perspectiva interseccional entre os fatores gênero e parentalidade, o grupo menos afetado pelo isolamento social foi o de homens sem filhos – 25,6% estão conseguindo trabalhar remotamente, enquanto o mais afetado foi o de mulheres com filhos – somente 4,1% o fazem[8].

Ainda nesta perspectiva, o fator raça não apresentou influência significativa entre a população acadêmica masculina, mas sim foi um forte fator de influência entre a população feminina: entre pós-doutorandos(as) somente 31% das mulheres negras submeteram artigos científicos como planejado, enquanto 61% dos homens negros o fizeram.

Entre as mulheres, brancas e sem filhos foram as menos afetadas pelo contexto atual: 58,9% delas submeteram seus artigos científicos como planejado, enquanto negras, independentemente de serem mães ou não, foram as mais afetadas (somente 47,3%, sendo 46,5% para mães e 48,7% para as sem filhos, o fizeram), juntamente  às demais mulheres com filhos no geral: somente 47,2% o fizeram.

Acrescenta-se ainda uma variável de peso nesta fórmula: a idade dos(as) filhos(as). O estudo mostrou que quanto menor a idade dos(as) filhos(as), maior o impacto sobre a produtividade acadêmica: somente 28,8% das mães de filhos com idades entre 1-6 anos submeteram artigos científicos como planejado enquanto 50,5% daquelas com filhos com idades entre 13-18 anos o fizeram.

Tais resultados revelam o impacto das desigualdades de gênero, que são agravadas pela experiência do home office generalizada pela pandemia[9]. As amarradas das mulheres à esfera doméstica, mesmo entre aquelas altamente qualificadas e inseridas em carreiras ambiciosas, se mostram ainda fortes e presentes na sociedade brasileira atual.

Esses dados permitem antever o forte impacto da experiência do isolamento social sobre a produção acadêmica de pais e mães, quando comparados àqueles sem filhos(as). Sobretudo, este estudo permite também antever consequências ainda mais críticas para o currículo das mães pesquisadoras[10], que, de forma mais acentuada do que aquela vivenciada por pais pesquisadores, enfrentam a realidade atual sobrecarregadas por uma divisão não igualitária das responsabilidades pelos filhos e filhas.

 


[1] Elsevier (Amsterdam). (2017). Gender in the Global Research Landscape: Analysis of Research Performance Through a Gender Lens Across 20 Years, 12 Geographies, and 27 Subject Ares. Elsevier.

[2] NEDER CEREZETTI et al, Interações de gênero nas salas de aula da Faculdade de Direito da USP: um currículo oculto?, São Paulo, Cátedra UNESCO de Direito à Educação/Universidade de São Paulo (USP), 2019. Disponível em: <https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000367420.locale=en>.

[3] Lattes. Disponível em: <http://lattes.cnpq.br/web/dgp/por-lideranca-sexo-e-idade. Online, publicado em Fevereiro 2019>.

[4] Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).Disponível em: <http://www.cnpq.br>. Online, publicado em fevereiro 2019.

[5]Machado et al (2019, May). Parent in science: The impact of parenthood on the scientific career in Brazil. In 2019 IEEE/ACM 2nd International Workshop on Gender Equality in Software Engineering (GE) (pp. 37-40). IEEE.

[6] L. Santos Machado et al., “Parent in Science: The Impact of Parenthood on the Scientific Career in Brazil,” 2019 IEEE/ACM 2nd International Workshop on Gender Equality in Software Engineering (GE), Montreal, QC, Canada, 2019, pp. 37-40, doi: 10.1109/GE.2019.00017.

[7] Disponível online. Disponível em: <https://327b604e-5cf4-492b-910b-e35e2bc67511.filesusr.com/ugd/0b341b_81cd8390d0f94bfd8fcd17ee6f29bc0e.pdf?index=true>.

[8] Dados relativos à população de docentes

[9] Sullivan, C., & Lewis, S. (2001). Home‐based telework, gender, and the synchronization of work and family: perspectives of teleworkers and their co‐residents. Gender, Work & Organization, 8(2), 123-145.

[10] Minello, April 17, 2020. “The pandemic and the female academic”, Nature. Disponível em: <https://www.nature.com/articles/d41586-020-01135-9>.

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