Pandemia

Pacto federativo nos tempos do coronavírus

O país não pode esperar que as soluções sempre cheguem de Brasília

máscaras
Crédito: Rovena Rosa/Agência Brasil

Em 22 de março, o Vice-Presidente do TRF da 5ª Região determinou que a União se abstenha de executar a requisição de 200 ventiladores pulmonares adquiridos por Recife, sob o fundamento de que a medida representaria “ameaça de grave lesão à saúde pública[1].

Dois dias depois, o Ministro Marco Aurélio concedeu cautelar na ADI nº 6.341, que tem por objeto dispositivos da MP nº 926/2020, para reforçar a competência concorrente da União, dos Estados e dos Municípios no enfrentamento da pandemia. Com isso, afastou qualquer interpretação que pudesse restringir ao governo federal “a tomada de providências normativas e administrativas pelos Estados, Distrito Federal e Municípios”, especialmente sobre circulação interestadual e intermunicipal de mercadorias e pessoas.

Esse tipo de batalha escancara a primeira vítima do conflito causado pelo Covid-19 no Brasil: o federalismo cooperativo.

O art. 23, II da Constituição estabelece que saúde é matéria de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Em seu parágrafo único, vê-se a necessidade de lei complementar para a cooperação entre os entes. O instrumento nunca foi utilizado.

É incauto imaginar que a competência comum para implementar políticas públicas de saúde conduza os entes federados a uma atuação em sinergia. O que se vê, em regra, é briga para se eximir de responsabilidades. A sobreposição de competências, cuja finalidade seria a criação de espaço de ação compartilhado, revelou-se pouco eficiente. Prevaleceu a lógica da omissão, segundo a qual, se todos os entes são responsáveis, então nenhum deles o é de fato.

A pandemia subverteu esse raciocínio: seja por motivação genuína, ou busca de protagonismo, as dissonâncias entre os gestores pela assunção de poderes vêm gerando enorme conflito federativo. O problema é que as circunstâncias exigem coordenação de esforços, sobretudo num país de proporções continentais e com grave distorções distributivas.

A crise expõe alguma miopia dogmática e transparece duas disfunções do federalismo brasileiro, já velhas conhecidas. Em termos metodológicos, a compreensão da dinâmica federativa não se limita a olhar os mecanismos formais de cooperação, à luz do referencial da centralização-descentralização, mas deve considerar, também, os desdobramentos da política. O federalismo é estrutura constitucional e processo político.

Em relação às disfunções, a primeira é histórica: o volume de recursos e o peso dos poderes da União. Nem o arranjo federativo pós-redemocratização equalizou as desigualdades inter-regionais ou promoveu verdadeira autonomia aos entes infranacionais.

O segundo problema decorre das incertezas que envolvem o exercício das competências comuns e concorrentes, gerando sobreposição de ações, e estímulo ao conflito, ou omissão repartida, com diluição de responsabilidades. Daí a premência de revisão da lógica que orienta a repartição dessas atribuições ou, no mínimo, o estabelecimento de parâmetros normativos de ação concertada.

O país não pode esperar que as soluções sempre cheguem de Brasília. A União precisa desempenhar a função a que se destina: coordenação, financiamento e definição da métrica das políticas nacionais. Aos entes infranacionais, cabe ir à luta para executá-las. Mas é preciso que tenham condições e espaço. Passada a pandemia, a reforma do pacto federativo não pode arrefecer.

[1] TRF-5, Processo nº 0802886-59.2020.4.05.0000, Rel. Des. Fed. Lázaro Guimarães, j. em 22.03.2020.

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