COVID-19

Observatório do TIT: Preclusão X direito de apresentar provas extemporâneas

TIT não suspende os prazos processuais apesar da covid-19, o que pode impedir o direito de defesa

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Daniel Linguite /fotos Publicas

Como é notório, grande parte do mundo está enfrentando, em maior ou menor grau, os efeitos do novo coronavírus (Covid-19), declarado em 11 de março de 2020 como pandemia pela Organização Mundial da Saúde.

Até por isso, (i) a União já reconheceu a gravidade da situação, tanto que decretou o estado de calamidade pública no Brasil até 31/12/2020 (Decreto Legislativo nº 6/2020), e, (ii) no âmbito do Estado de São Paulo, o Governo Paulista (ii.1) reconheceu, em 21/03/2020, o estado de calamidade pública em nível Estadual até o dia 30/04/2020 (Decreto Estadual nº 64.879/2020), e (ii.2) reconheceu, em 22/03/2020, o estado de quarentena até o dia 07/04/2020 (Decreto Estadual nº 64.881/2020), que foi prorrogado até o dia 22/04/2020 (Decreto Estadual nº 64.920/2020).

Inclusive, também devido à pandemia do novo coronavírus, o Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (“TIT”) editou o Ato TIT nº 2/2020 para suspender as suas sessões de julgamento a partir de 23 de março de 2020, o que obviamente impactará na análise de novos acórdãos por parte deste Observatório.

 

Ocorre que, apesar de as sessões de julgamento terem sido suspensas por meio do Ato TIT nº 2, de 20/03/2020, o referido ato expressamente consignou, em seu inciso III, que “os prazos em curso não serão suspensos”[1].

A não suspensão/interrupção dos prazos processuais (de processos eletrônicos) pelo TIT, diferentemente do que ocorreu em outras esferas, como, por exemplo, no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF e no Conselho Municipal de Tributos do Município de São Paulo – CMT/SP, gera diversas repercussões em momentos excepcionais como o atual.

Apesar das mais diversas repercussões ocasionadas, a presente análise limitar-se-á a um desses efeitos: a dificuldade, senão impossibilidade, de os contribuintes apresentarem documentos que embasem as suas defesas haja vista que muitas empresas estão fechadas, bem como seus respectivos contabilistas e depósitos de guarda de documentos.

O TIT historicamente acatava a apresentação extemporânea de documentos, resguardando-se, assim, a obediência ao princípio da verdade material. Note-se, para tanto, alguns dos precedentes que nortearam as antigas decisões do Tribunal:

“Remessa de mercadorias com destino a estabelecimentos localizados na Zona Franca de Manaus. Suposta ausência de comprovação de internamento pela falta de disponibilização no site da SUFRAMA. Juntada das declarações de ingresso apenas por ocasião da apresentação do Recurso Ordinário. Reconhecimento do internamento das mercadorias pela Representação Fiscal. Verdade material e valoração da prova de modo a prestigiar benefício fiscal expressamente recepcionado pela CF/88 (art. 40 do ADCT). Recurso ordinário conhecido e provido.”

(TIT/SP, 5ª Câmara Julgadora, AIIM nº 3.066.532-2, Relator: Juiz German Alejandro San Martín Fernández, julgado em 21.01.2009; e TIT/SP, 5ª Câmara Julgadora, AIIM nº 3.048.044-9, Relator: Juiz German Alejandro San Martín Fernández, julgado em 15.01.2009)

“ICMS. Falta de pagamento do imposto apurado em levantamento fiscal realizado com fundamento nos artigos 509 e 509-A do RICMS/OO. Julgamento convertido em diligência para manifestação do AFR sobre contraprovas acostadas em sede de Recurso Ordinário e, no retorno, apresentação de conclusões pela d. Representação Fiscal. Princípios da ampla defesa e do contraditório. Busca da verdade material.”

(TIT/SP, 6ª Câmara Julgadora, AIIM nº 3.151.532-0, Relatora: Juíza Rose Sobral, julgado em 26.01.2012)

Entretanto, nos últimos anos, a jurisprudência do TIT vem rechaçando a análise de provas apresentadas posteriormente à impugnação, exceto nos casos em que o Tribunal considere justificável a apresentação posterior à defesa. Confira-se a título de exemplo o seguinte julgado da Câmara Superior do Tribunal:

“ICMS. CRÉDITO INDEVIDO DECORRENTE DE ESCRITURAÇÃO DE NOTAS FISCAIS INIDÔNEAS DE REMETENTE COM INSCRIÇÃO ESTADUAL CASSADA (I.1). NULIDADE DA DECISÃO RECORRIDA. FALTA DE ANÁLISE DAS PROVAS. A busca da verdade material possibilita a flexibilização da regra processual no processo administrativo tributário, mas não significa a total liberalidade na atuação processual. Se o contribuinte tem o interesse na utilização da regra do art. 19, da Lei n.º 13.457/09, ele deve informar e justificar o motivo de forma antecipada para cientificar a Fazenda Estadual e o órgão julgador acerca da juntada extemporânea de provas. Isto evita a insegurança jurídica na apresentação tardia de documentos de forma desordenada e aleatória no decorrer do processo, evitando ainda tumulto processual. ATUALIZAÇÃO DO VALOR BÁSICO DA MULTA. JUROS TAXA SELIC. Entendimento pacificado na Câmara Superior pela legitimidade dos juros de mora aplicado ao montante do imposto e para atualização da multa previstos na Lei n.º 13.918/09, nos termos do art. 28, da Lei n.º 13.457/09 e da Súmula n.º 10, do TIT. RECAPITULAÇÃO DA MULTA. As hipóteses de infrações previstas no art. 85, I, da Lei n.º 6.374/89, relacionam aos atos vinculados ao pagamento do imposto. A infração apurada nos Autos trata de crédito indevido. Demais pedidos recursais não conhecidos pelo descumprimento da regra do art. 49, da Lei n.º 13.457/09.   Recurso Especial do contribuinte parcialmente conhecido e negado provimento.”

(TIT/SP, Câmara Superior, AIIM nº 4.018.190-0, Relator: Juiz Klayton Munehiro Furuguem, julgado em 18.09.2018)

Por outro lado, é cediço que a Lei Estadual nº 13.457/2009 prevê em seu artigo 19, caput, que “as provas deverão ser apresentadas juntamente com o auto de infração e com a defesa, salvo por motivo de força maior ou ocorrência de fato superveniente.”

Na base de jurisprudência fornecida pelo Tribunal é possível encontrar poucos acórdãos que tenham tratado de caso fortuito ou força maior.

Nesses poucos casos, foi decidido que, para que seja demonstrada a ocorrência de caso fortuito ou força maior, faz-se de rigor a comprovação de que o contribuinte efetivamente restou impedido de apresentar a documentação juntamente da defesa. Veja-se:

“ICMS. ACUSAÇÃO DE CRÉDITO INDEVIDO POR NÃO COMPROVAÇÃO DE ORIGEM – DOCUMENTAÇÃO DESTRUÍDA EM INCÊNDIO DENUNCIADO AO FISCO ANTES DA AÇÃO FISCAL. Ocorrência de caso fortuito e motivo de força maior impedientes da apresentação de toda a documentação. Inevitabilidade do evento – Contribuinte que até então nunca fora autuado pelo fisco. Prova produzida pelo contribuinte não contestada pelo fisco. Paradigmas aportados aos autos que demonstram divergência no critério de julgar e dentre eles um extraído de processo em que figura a própria recorrente como autuada. Recurso especial de que se conhece e no mérito se dá provimento para o fim de se decretar a insubsistência do AIIM. RECURSO CONHECIDO. PROVIDO. DECISÃO NÃO UNÂNIME Provido. Decisão não unânime.”

(TIT/SP, Câmara Superior, AIIM nº 2.107.666-3, Relator: Juiz Virgílio Cansino Gil, julgado em 10.02.2009)

“ICMS – DEIXAR DE EXIBIR À AUTORIDADE FISCALIZADORA NOTAS FISCAIS DE SAÍDA. AIIM PROCEDENTE. PEDIDO DE RELEVAÇÃO DA MULTA. NÃO COMPROVADO MOTIVO DE FORÇA MAIOR/CASO FORTUITO A JUSTIFICAR A NÃO EXIBIÇÃO DOS DOCUMENTOS. RECURSO AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO.”

(TIT/SP, 5ª Câmara Julgadora, AIIM nº 4.012.019-3, Relator Juiz Manoel Marcelo Camargo de Laet, julgado em 28.10.2014)

Pois bem. E no caso da pandemia da Covid-19? Está-se diante de caso fortuito ou força maior que autorize a apresentação extemporânea de documentos pelo contribuinte?

Para fins de “interpretação jurídica” da pandemia, os doutrinadores pátrios consideram que tal situação se enquadra no conceito de força maior, visto que, segundo Sílvio de Salvo Venosa[2], força maior é o evento (que pode ser previsível ou não) decorrente da natureza e que é inevitável.

Tanto é assim que o próprio Governo Federal (no que tange às relações de consumo), reconhece que a pandemia da Covid-19 é hipótese de “força maior”[3], o que evidencia que o coronavírus é uma causa externa que impede o regular exercício do direito de defesa do contribuinte.

No caso, considerando que o próprio Poder Público Estadual reconheceu normativamente estado de calamidade pública, determinou o fechamento da maioria dos estabelecimentos e determinou que a população permaneça em suas residências, é evidente que os contribuintes, de maneira majoritária, serão afetados, visto que não terão acesso fácil aos seus documentos (sejam os eletrônicos, constantes em sistemas internos, sejam os físicos, alocados em arquivos).

A própria Secretaria da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo (“SEFAZ/SP”) reconhece o estado de calamidade pública atual, visto que, como já mencionado, o Governo do Estado de São Paulo (i) reconheceu, em 21/03/2020, o estado de calamidade pública em nível Estadual até o dia 30/04/2020 (Decreto Estadual nº 64.879/2020), (ii) reconheceu, em 22/03/2020, o estado de quarentena até o dia 07/04/2020 (Decreto Estadual nº 64.881/2020), que foi prorrogado até o dia 22/04/2020 (Decreto Estadual nº 64.920/2020), e (iii) suspendeu os prazos nos procedimentos administrativos Estaduais (Decreto Estadual nº 64.917/2020), tratando-se, portanto, de fato notório.

E se diz que a SEFAZ/SP reconheceu o estado de calamidade pública, pois o Secretário de Fazenda e Planejamento, Sr. Henrique Meirelles, subscreveu todos os Decretos acima mencionados, de modo que a SEFAZ/SP também concorda que a atual pandemia da Covid-19 representa estado de calamidade pública que afeta a todos.

Por conta disso, tratando-se de estado de calamidade pública que é reconhecido pelo Governo do Estado de São Paulo em todos os âmbitos (inclusive pela própria SEFAZ/SP), está-se diante de efetiva força maior, tratando-se de fato notório reconhecido também pelo Fisco Estadual.

Além disso, a SEFAZ/SP (que é a Autoridade Administrativa acusadora nos casos de lavratura de auto de infração) está reconhecendo a ocorrência de força maior por meio dos Decretos acima mencionados, de modo que, além de se tratar de fato notório, está-se diante de fato confessado pela própria Autoridade Administrativa Fiscal.

Ocorre que, em se tratando de fato notório e de fato confessado, o contribuinte está desobrigado de comprovar a ocorrência da força maior, tal como disciplina o artigo 20 da Lei nº 13.457/09 e o artigo 374 do Código de Processo Civil. Transcreve-se:

“Artigo 20 – Não dependem de prova os fatos:

I – afirmados por uma parte e confessados pela parte contrária;

II – admitidos, no processo, como incontroversos.

III – notórios; e

IV – em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade.” (destacado)

“Art. 374. Não dependem de prova os fatos:

I – notórios;

II – afirmados por uma parte e confessados pela parte contrária;

III – admitidos no processo como incontroversos;

IV – em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade.” (destacado)

Portanto, por se tratar de fato notório (estado de calamidade pública decretado) e confessado pela SEFAZ/SP (subscrição dos decretos pelo Secretário de Fazenda e Planejamento), é esperado que o TIT aceite a apresentação de provas extemporâneas em relação às defesas protocoladas durante o período da pandemia do novo coronavírus.

 

Autores:

Bruno Romano

Rafael Pinheiro Lucas Ristow

Coordenação:

Dolina Sol Pedroso de Toledo

Eduardo Perez Salusse

Eurico Marcos Diniz de Santi

Lina Santin

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[1] Frise-se que, para os processos físicos, foi editado o Ato TIT nº 3/2020, que determinou a interrupção dos prazos, haja vista a interrupção também do expediente presencial das respectivas repartições.

[2] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil – Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 9ª Edição. Volume II. Editora Atlas, São Paulo: 2009.

[3] Frise-se que a MP nº 948/2020 contém um pequeno equívoco técnico, pois trata a pandemia como hipóteses de “caso fortuito ou força maior”, pois se trata apenas e tão somente de força maior, pois a força maior é relativa à força da natureza, enquanto que o caso fortuito é ocasionado pela força humana.