
Dando continuidade à análise dos julgados nesta segunda fase do Observatório do TIT em 2020, notadamente do período de 24.08.2020 até 05.09.2020, onde foram publicadas 30 (trinta) decisões proferidas pela Câmara Superior, analisaremos um tema bem recorrente e de grande interesse dos contribuintes na formação de jurisprudência consolidada sobre o assunto: responsabilidade tributária.
Com efeito, os holofotes sobre a matéria giram em torno da possibilidade de assegurar o pagamento de tributo por meio da responsabilização de pessoa que não o contribuinte original estabelecido pela lei. A relevância do assunto em se firmar uma jurisprudência consolidada é exatamente em função da atribuição de pagamento de tributos e penalidades a terceira pessoa, que não o contribuinte, elevando-se, assim, os riscos de afronta à segurança jurídica e à legalidade.
Dentre os julgados da semana sobre o tema, destaca-se, novamente, aquele analisado sob o foco da responsabilidade do adquirente em operações inidôneas (no caso empresa posteriormente declarada inapta), inclusive a responsabilidade atribuída de forma solidária, considerada válida a aplicação da presunção absoluta de “interesse comum”, de forma equiparada às operações desacompanhadas de documento fiscal, independentemente da individualização da conduta e do ônus probatório pelo fisco de dolo, fraude e conluio do contribuinte com a empresa fornecedora.
A decisão ora em pauta foi proferida no Auto de Infração nº 4049220-5, em 25 de agosto de 2020 e, por maioria de votos, foi dado provimento ao Recurso Especial Fazendário, restabelecendo a exigência fiscal por responsabilidade solidária do contribuinte que recebeu e estocou mercadorias desacompanhadas de documento fiscal hábil, uma vez que a empresa emitente de referidos documentos foi posteriormente considerada inapta.
Na ocasião, seguindo precedentes anteriores da própria Câmara Superior, definiu-se que a responsabilidade solidária por “interesse comum” é atribuída com fundamento no inciso XI, do artigo 9º, da Lei 6.374/1989 (art. 11, inciso XI, § 1º, do RICMS), bastando a inidoneidade do documento fiscal para gerar a responsabilidade por “interesse comum”; no caso, a responsabilidade do adquirente de mercadorias pelo ICMS que deixou de ser recolhido pelo fornecedor.
Com tal entendimento, o Agente Fiscal de Rendas não precisa comprovar a conduta dolosa do adquirente, pois o seu “interesse comum” decorre da situação infracional – inaptidão dos documentos.
Diante da importância do tema, da sequência de precedentes da Câmara Superior e do conflito com o atual entendimento majoritário da jurisprudência judicial, passaremos a fazer nossa análise do julgado sob três aspectos relevantes a serem considerados:
Responsabilidade solidária por “interesse comum” – Não se trata da necessária comprovação de boa-fé do contribuinte e aplicação da súmula 509/STJ – operação de fato ocorreu
No caso, como já adiantado linhas acima, se trata de julgamento de Recurso Especial da Fazenda, onde o contribuinte foi autuado, por solidariedade, pelo recebimento de mercadorias desacompanhadas de documento fiscal hábil, uma vez que a empresa emitente de referidos documentos foi posteriormente considerada inapta.
Não se trata, pois, da aplicação do enunciado da súmula nº 509/STJ[1].
Isso porque, na hipótese, não se trata de aproveitamento de créditos de ICMS proveniente de notas fiscais declaradas inidôneas; e não se tratando a questão aqui em discussão de creditamento de ICMS oriundo de notas fiscais posteriormente declaradas inidôneas, em que se assegura tal aproveitamento ao adquirente desde que provada sua boa-fé, deve-se admitir que tal demonstração não se mostra relevante para o deslinde da causa, tanto que não há essa abordagem na decisão em foco.
A autuação lançada baseia-se na efetiva ocorrência das operações mercantis noticiadas nas notas fiscais inidôneas, tanto que impinge ao contribuinte a cobrança do valor de ICMS incidente naquelas transações, por ter recebido e estocado mercadorias desacompanhadas de documentos fiscais hábeis.
Do contrário, caso o Fisco duvidasse da ocorrência da circulação das mercadorias ou, ainda, caso entendesse que efetivamente não ocorrera, de rigor seria a conclusão pela inexistência do fato jurídico tributário e, consequentemente, não teria motivos para lavratura da autuação para a cobrança do tributo.
Tanto é que a infração imputada se deu com supedâneo no artigo 203 do RICMS, que atribui ao destinatário da mercadoria obrigação de “exigir documento fiscal hábil, com todos os requisitos legais, de quem o deva emitir, sempre que obrigatória a emissão”, aplicando ao contribuinte penalidade por ter recebido e estocado mercadorias desacompanhadas de documentação fiscal.
Assim, se o próprio Fisco Paulista pressupõe realizadas as operações indicadas nas notas fiscais, lançando em desfavor do contribuinte adquirente a cobrança do ICMS, prescinde aqui perquirir a efetiva ocorrência quanto a estas mesmas operações.
Mas, não podemos nos olvidar, é claro, que essa razão de decidir, fazendo as adaptações necessárias e se acaso eventualmente estabelecidas as premissas de comprovação da boa-fé (o que não houve neste caso do AIIM nº 4049220-5), poderia ser aplicada ao julgado em análise, pois, se o adquirente de boa-fé tem o direito de creditar o imposto oriundo de nota fiscal posteriormente declarada inidônea, com maior razão não pode ser responsabilizado pelo tributo que deixou de ser oportunamente recolhido pelo vendedor (fornecedor) infrator.
A significação de “interesse comum” e a sua extensão para imputação de responsabilidade solidária por presunção decorrente de “disposição em Lei”
O Código Tributário Nacional – CTN dispõe no art. 124, I, que são solidariamente responsáveis, pelo cumprimento das obrigações tributárias, todos aqueles que têm interesse comum na situação que constitui o fato gerador da obrigação tributária. A Lei 6.374/89 – SP repete essa mesma disposição, ao dispor no artigo 9º que “São responsáveis pelo pagamento do imposto devido (…) XI – solidariamente, as pessoas que tenham interesse comum na situação que dê origem à obrigação principal”.
Vê-se, pois, que o CTN não definiu o significado de “interesse comum”. Eis o motivo pelo qual a doutrina e a jurisprudência vêm interpretando este dispositivo de maneira distinta. Aliás, no acórdão sob enfoque fica bem perceptível a divergência de significação de “interesse comum” dos dois votos colocados em votação.
O voto vencedor defende que basta haver interesse econômico em comum (adquirente e vendedor) para fins de responsabilidade, e, de outra banda, do voto de preferência vencido infere-se significado diverso: só haveria interesse comum, para fins de responsabilidade solidária, quando os dois sujeitos estiverem no mesmo polo da relação jurídica (vendedores, por exemplo).
No entanto, muito embora o voto vencedor siga precedentes anteriores sobre o assunto na esfera administrativa (fundamentação com citação expressa dos processos paradigmas: DRT-16-20480/2009; DRT-7-2882/2000; DRTC-I- 4.036.279/2014), tal entendimento tem esbarrado na mais recente e majoritária jurisprudência judicial.
O entendimento do Superior Tribunal de Justiça é que tem norteado os julgamentos dos tribunais estaduais sobre o tema em prol dos contribuintes; assim é que se verifica do último julgado da matéria pela Corte Superior:
“TRIBUTÁRIO. ICMS. EMPRESA VENDEDORA. NÃO RECOLHIMENTO. ADQUIRENTE DE
BOA-FÉ. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. INAPLICABILIDADE. (…) O “interesse comum” de que trata o preceito em destaque refere-se às pessoas que se encontram no mesmo polo do contribuinte em relação à situação jurídica ensejadora da exação, no caso, a venda da mercadoria, sendo certo que esse interesse não se confunde com a vontade oposta manifestada pelo adquirente, que não é a de vender, mas sim de comprar a coisa.”[2].
O Tribunal de Justiça paulista vem seguindo esse exato entendimento em reiterados julgados recentes do assunto:
“ Tributário – ICMS – Anulatória de débito fiscal Autuação de empresa por aquisição de mercadorias acompanhadas de notas fiscais consideradas inábeis, em razão de nulidade da inscrição da empresa fornecedora – Exigência do tributo em razão da solidariedade e multa Ausência de comum interesse a justificar a solidariedade Lineamento doutrinário Precedente. (…) Sentença de improcedência reformada – Recurso provido” (1000252-02.2015.8.26.0053 – 12ª Câmara de Direito Público – 07/08/2020 DJE: 10/08/2020).
São neste exato sentido os demais julgamentos sobre a matéria. Processos nº: 1007777-30.2018.8.26.0053; 1011456-86.2018.8.26.0037; e 1027049- 90.2018.8.26.0576.
A doutrina mais autorizada e utilizada em tais precedentes segue o raciocínio desta significação de “interesse comum”:“No caso do ICMS, cujo fato jurídico tributário surge de relação bilateral, haverá solidariedade entre os vendedores que praticam uma mesma operação de venda. Não haverá solidariedade entre vendedor e comprador, pois “vendedores e compradores têm interesse coincidente na realização do negócio (tarefa), mas interesses contrapostos na execução do contrato (necessidades opostas). … Mesmo que duas partes em um contrato fruam vantagens por conta do não recolhimento de um tributo, isso não será, por si, suficiente para que se aponte um ‘interesse comum’.” (LUÍS EDUARDO SCHOUERI “Direito Tributário”, 2ª ed. São Paulo: Saraiva, p. 503).
Assim, de acordo com a doutrina e a jurisprudência judicial, a configurar o interesse comum não está o fato de ter o contribuinte figurado como adquirente das mercadorias a responsabilizá-lo, solidariamente, pelo tributo.
Desta feita, de acordo com o entendimento majoritário sobre o assunto, não tendo a empresa adquirente participado do fato gerador do ICMS, já que em posições antagônicas nas transações efetuadas, não há como vislumbrar “interesse comum” entre ela e a empresa tida como inidônea a ensejar a solidariedade, sendo, portanto, inaplicáveis as disposições do artigo 124, inciso I, do CTN; artigo 11, inciso XI, do RICMS; e artigo 9º, inciso XI da Lei Paulista.
No julgamento ora em análise, a Câmara Superior acaba fatalmente colidindo com os precedentes judiciais mais recentes sobre o tema, mantendo seu entendimento de que o “interesse comum” decorre de previsão legal, estando na Lei Paulista (artigo 9º, inciso XI, parágrafo primeiro) o seu significado, não sendo necessária a produção de provas pelo Fisco para imputação de responsabilidade solidária.
Ainda que se admita tal significação de “interesse comum”, no caso em análise há um último aspecto a ser considerado e que não fora abordado na decisão analisada:
Inaplicabilidade da presunção do “interesse comum” ao adquirente da mercadoria em operação realizada sem documentação – notas fiscais emitidas anteriormente à decretação de inaptidão da empresa emitente
Isso porque, ainda que levado em consideração que o significado de “interesse comum” está estampado na disposição do parágrafo primeiro, do artigo 9º, inciso XI, onde se estabelece que se presume “ter interesse comum, para efeito do disposto no inciso XI, o adquirente da mercadoria ou o tomador do serviço, em operação ou prestação realizadas sem documentação fiscal”, há que se fazer uma aplicação conjunta de tal dispositivo com o caso, assim como tem feito também a justiça paulista e as Câmaras julgadoras do TIT.
Conforme se observa da decisão e da autuação fiscal que a embasa, as notas fiscais que foram objeto de fiscalização foram expedidas anteriormente à declaração de inaptidão da empresa emitente pelo Fisco Paulista, sendo sabido que o ato declaratório de inidoneidade somente produz efeitos a partir de sua publicação.
Portanto, aparentemente revestidas de regularidade as notas fiscais emitidas, constando, inclusive, quando de suas emissões, estar a empresa emitente em situação regular perante o SINTEGRA.
Nos julgamentos proferidos pelas Câmaras Julgadoras, percebe-se que há uma preocupação grande com a análise probatória para a verificação da responsabilidade comum, inclusive no voto recorrido do AIIM em pauta.
Aqui, abro aspas para destacar trecho do voto vencido da decisão ora analisada, que abordou de forma cirúrgica a questão da “documentação inábil”: “Portanto, se as operações se deram – repito – por documentos inábeis, inidôneos, inaptos, ou qualquer outro adjetivo, mas documentos fiscais existentes, não houve operação “sem documento fiscal”, que é o que diz o parágrafo único a justificar a sua aplicação. Logo a hipótese ali não se enquadra ao caso presente, para efeito de presumir o “interesse comum” e, portanto, a solidariedade.”
Em tal cenário, descabe não só exigir da empresa adquirente o ICMS cobrado pelo Fisco, como também a imposição da multa aplicada, por não restar evidenciado que as mercadorias tenham sido comercializadas desacompanhadas das competentes notas fiscais indicadas pela fiscalização, pois, quando das emissões, não pesava irregularidade sobre a empresa fornecedora.
Conclusão
Diante da análise aqui realizada, pudemos verificar que a Câmara Superior tem sido fiel e linear aos seus precedentes, entendendo que nos casos em que a empresa emitente é posteriormente declarada inapta, os contribuintes adquirentes devem responder solidariamente pelo tributo devido e não recolhido pela infratora à época dos fatos, por ter recebido e estocado mercadorias sem documentação hábil, presumindo-se o “interesse comum” na operação, nos termos do parágrafo primeiro, do artigo 9º, inciso XI da Lei nº 6.374/1989, independentemente de provas de instrução do AIIM pelo Fisco.
Tal entendimento, no entanto, vai de encontro à jurisprudência judicial majoritária e mais recente relativa ao tema, especialmente sob os 3 (três) aspectos aqui abordados, dando significado diverso ao “interesse comum” previsto em lei.
Como visto, a Câmara Superior seguirá seu entendimento de precedentes já antigos sobre o tema, sendo mais uma tese a ser resolvida pelos contribuintes na esfera judicial.
Autora: Sulamita Szpiczkowski Alayon
Coordenação: Eurico Marcos Diniz de Santi, Eduardo Perez Salusse, Lina Santin, Dolina Sol Pedroso de Toledo
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[1] “É lícito ao comerciante de boa-fé aproveitar os créditos de ICMS decorrentes de nota fiscal posteriormente declarada inidônea, quando demonstrada a veracidade da compra e venda”.
[2] AREsp 1198146/SP; PRIMEIRA TURMA Data do Julgamento 04/12/2018 DJe 18/12/2018