Bolsonaro

O vírus do ativismo judicial

Exigir que o presidente da República divulgue seu exame médico é negar-lhe por completo o direito à intimidade

Presidente Jair Bolsonaro. Foto: Isac Nóbrega/PR

O jornal Estado de S. Paulo pleiteou na justiça o direito de obter os testes de Covid-19 feitos pelo presidente Jair Bolsonaro. A juíza Ana Lúcia Petri Betto concedeu prazo de 48 horas para que a União fornecesse os exames feitos pelo presidente da República para identificar a infecção ou não pelo novo coronavírus.

A União chegou a apresentar relatórios médicos, mas não foi o bastante. A exigência quanto a apresentação dos exames conservou-se, inclusive em sede do TRF-3 – que, até o momento, limitou-se a dilatar o prazo para apresentação.

A decisão da juíza Ana Lúcia Petri Betto traz à tona importantes debates constitucionais, um dos mais importantes deles relaciona-se ao confronto entre o direito à liberdade de expressão e à informação contra o direito à privacidade e à intimidade.

É muito difícil definir os conceitos de “intimidade” e “privacidade” no Direito, mas alguns juristas tentaram. Apesar de muitas vezes serem tratados como sinônimos, não o são. A “privacidade” seria mais ampla e comportaria outra esfera – a da que constitui a “intimidade”; é como se o conceito de “intimidade” estivesse inserido no conceito de “privacidade” – este, mais vasto.

“Intimidade” seria aquilo que nós nunca, ou quase nunca, partilhamos com alguém. Abrange a sexualidade, a afetividade, a saúde e a nudez, por exemplo. É o extrato mais particular de um ser humano. Na esfera da “privacidade” – mais ampla – incluem-se os outros aspectos da nossa individualidade, aquilo que nos caracteriza e nos garante caráter único e exclusivo.

Não há dúvidas aqui quanto ao caráter íntimo e confidencial de um exame médico. Esse aspecto sigiloso é tão essencial que constitui pilar fundamental da ética no exercício de atividades relacionadas à saúde. O sigilo quanto ao estado médico é para a própria segurança do indivíduo, não é possível negar-lhe este direito.

A Constituição Federal protege a intimidade e a privacidade de todos. No entanto, o indivíduo que se sujeita a exercer cargo público não conta com o mesmo espaço de indevassabilidade que fixa os limites da privacidade de alguém comum. É fato.

Mas isso não pode ser usado como argumento para desconsiderar por completo o direito à privacidade de alguém, ainda que este alguém seja o presidente da República. Existem limites. E o limite, nesse caso envolvendo o exame para Covid-19 de Jair Bolsonaro, é a intimidade.

Vejam, não estou dizendo que, uma vez conhecida a informação, seria legítimo evitar sua divulgação. Isso nunca. A propagação da informação referente a um agente público – ainda mais do presidente – não pode ser coibida, sob pena de se comprometer o direito à liberdade de expressão e à informação.

Mas exigir que o presidente da República divulgue seu exame médico – um dos fragmentos mais pessoais de sua privacidade – é negar-lhe por completo o direito à intimidade.

A situação torna-se ainda mais absurda quando descobrimos que a decisão que ordenou a apresentação do exame para Covid-19 do presidente da República partiu de uma juíza de primeira instância.

Repito: uma juíza de primeira instância delimitou a intimidade do presidente da República. É sintomático. Destino previsível para um país que normalizou a prática do ativismo judicial.

Talvez, futuramente, seja importante pensarmos em rediscutir a abrangência do foro privilegiado, atualmente inaplicável em ações no âmbito cível. É preciso evitar abusos como esse e limitar o poder de controle de juízes e tribunais comuns às instituições, caso contrário, de abuso em abuso, o país se tornará ingovernável e as instituições restarão completamente à mercê da discricionariedade de juízes.

É evidente que há remédio constitucional mais adequado para solucionar o debate imposto pelo pedido do jornal Estado de S. Paulo. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) teria pleno cabimento no caso concreto. E seria bem mais coerente ver o Supremo Tribunal Federal – órgão responsável pelo julgamento de uma ADPF – analisando uma questão desse porte.

A decisão proferida, que atendeu pedido do jornal, ignorou os conceitos de privacidade e intimidade ao negar-lhes por completo ao presidente da República. Talvez a decisão fosse melhor analisada se tratada no órgão mais adequado para lidar com controvérsia desta magnitude; mas, ainda que não o fosse, não é aceitável que uma juíza de primeira instância tenha legitimidade para decidir sobre matéria envolvendo o presidente, sob pena de, no futuro, comprometer ainda mais a governabilidade do país e deixar a nação completamente à mercê do ativismo judicial.