Liberdade de expressão

O tsunami das fake news no TSE: diagnósticos e desafios à vista

Estragos são diversos quando ondas alcançam águas rasas. Será este o destino da Justiça Eleitoral diante da onda das fake news?

Crédito: Pixabay

O fenômeno das fake news pode ser compreendido como um tsunami que alcançou o processo eleitoral brasileiro. A campanha e a disputa eleitoral são marcadas hoje pela massiva utilização das redes sociais, de modo que notícias falsas passam a ser manejadas para a defesa e promoção de projetos políticos, inclusive para atacar as instituições democráticas. O reflexo é cultural: a vida político-social é em grande medida intermediada e produzida hoje nas redes, distinguindo a inclusão ou exclusão do sistema político pela via do acesso e participação nesses ambientes virtuais. No entanto, o fenômeno também alcança instituições que disciplinam e monitoram as eleições, como a Justiça Eleitoral.

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já em 2017 discutiu, fórum especialmente focado no tema, o impacto dessas notícias nas então vindouras eleições, criou um Conselho Consultivo sobre Internet e Eleições (Portaria TSE nº 949, de 7 de dezembro de 2017), bem como uniu-se à Polícia Federal e ao Ministério Público para criar um grupo de trabalho para estudar antecipadamente formas de combate às fake news. Mesmo no curso das eleições, o TSE convocou as campanhas dos dois candidatos à presidência concorrendo ao segundo turno para discutir o tema.

As instituições ligadas à Justiça Eleitoral, portanto, enfrentaram a onda de fake news que assolaram o pleito de 2018; porém, como efetivamente lidaram com ela? É notório que não podemos dizer que “surfamos” sobre o fenômeno, dado o contínuo debate sobre sua regulamentação, que conta com mais de 70 projetos em trâmite no Congresso Nacional neste ano de eleições municipais. Mas é correto dizer que afundamos completamente diante do fenômeno?

Para responder a essas e outras questões, o Projeto de pesquisa “Direito à privacidade e o processo eleitoral brasileiro: uma perspectiva sociológica sistêmica acerca da regulação jurídica da disseminação de notícias falsas a partir das eleições majoritárias em 2018”, desenvolvido na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, com apoio da FAPESP e em parceria com o Observatório Eleitoral das América (OEA/USP), está analisando uma série de decisões do TSE tratando do tema fake news, durante a corrida eleitoral de 2018, buscando mapear também o debate e o jogo regulatório subjacentes.

Alguns dados já colhidos com a pesquisa jurisprudencial permitem o estudo do comportamento dos atores eleitorais em relação ao tema. Primeiramente, salta aos olhos que a grande maioria dos julgados analisados consiste em decisões monocráticas cautelares, proferidas em ações que, em sua maioria, não chegaram a ser conhecidas pelo Pleno, seja por conta da rejeição de recursos, seja, no mais das vezes, pelo fato de que grande parte das ações em trâmite no TSE foram extintas sem julgamento de mérito, com base no entendimento de que não persistiria o interesse no julgamento uma vez ultimadas as eleições.

Durante as eleições de 2018 não ocorreu um posicionamento colegiado do tribunal acerca das questões afetas à verificação das fake news[1]. Isso se deve, como é sabido, à atribuição da função de julgadores da propaganda a certos Ministros, que ficam responsáveis por dar uma resposta ágil às demandas eleitorais, dada a celeridade em que caminham as campanhas eleitorais. O que é louvável por um lado, por outro acaba por contribuir tanto para uma falta de uniformidade e segurança jurídica nessas decisões, quanto para uma sensação de impunidade.

Não houve uma definição ou mesmo uma tentativa de padronização da resposta judicial ao fenômeno,[2] o que acaba retirando desses julgados a sua força dissuasória para a consolidação de precedentes, ainda mais quando se considera que as representações foram julgadas prejudicadas sem análise de mérito. Tal situação revela a complexidade e a dificuldade da decisão judicial sobre fake news e eleições. Dentre os motivos que justificam esses traços, é possível indicar:

  • Abrangência e dificuldade de definição do termo fake news, com extenso debate na teoria do conhecimento e com riscos de estipular um policiamento de conteúdo, em prejuízo das liberdades civis;
  • Aplicação jurídica nebulosa diante do jogo regulatório (legislação e autorregulação) e da ausência de uma posição jurisprudencial consolidada;
  • Déficit cognitivo para apuração judicial dos impactos alegados de supostas fake news transmitidas por contas pessoais e plataformas digitais privadas durante o pleito eleitoral.

Tais observações são fundamentais para que se possa pautar a atuação da Justiça Eleitoral com relação às eleições municipais que se aproximam, principalmente quando se considera que devido ao contexto por que passamos, as campanhas eleitorais se desenvolverão de maneira muito mais acentuada e concentrada no ambiente virtual. Todavia, o fato de as representações serem julgadas apenas cautelarmente não oferece parâmetro claro para os próximos pleitos, especialmente no que concerne à importante temática da proteção de dados pessoais.

Neste segundo aspecto, em muitas hipóteses verificou-se que o respectivo relator determinou a quebra de sigilo telemático de alguns cidadãos, para que se identificasse a pessoa responsável por certas páginas e postagens em redes sociais, sendo que, ao final, esses dados não foram utilizados para nenhum propósito eleitoral, dada a extinção dos feitos. Ainda quando identificados os responsáveis, muitos não chegaram a ser punidos pela propagação das alegadas fake news, porquanto entendeu-se, em geral, que a legislação eleitoral apenas coibiria a divulgação de opinião anônima na internet,[3] mas que eventual responsabilização por ofensa à honra dos candidatos deveria ocorrer na Justiça Comum – o que reforça a necessidade de um debate legal sobre o comportamento abusivo nas redes.

Por fim, vale acrescentar que as ações manejadas perante o TSE questionando as fake news em 2018 consistiram, em sua grande maioria, em representações por propaganda eleitoral irregular com ou sem direito de resposta, e, em alguns casos notórios, em ações de investigação judicial eleitoral (AIJE) ou mesmo notícias de crime. Nenhum desses instrumentos, contudo, é adequado a tratar das fake news.

Como visto, as representações têm o pormenor de não permitirem que a investigação e responsabilização se estenda após as eleições; por outro lado, a AIJE depende, para ser julgada, da comprovação do potencial lesivo da conduta e de sua potencialidade de influenciar o pleito – ou seja, apenas serve para questionar o envio massivo de notícias falsas, mas não condutas isoladas. Além disso, tal como as ações criminais, as AIJEs dependem de ampla instrução processual, o que impede que o Tribunal julgue essas ações de forma temporânea.

De difícil previsão e controle, tsunamis são deslocamentos de grande volume de água geralmente provocados por terremotos no relevo marinho. Os estragos são diversos quando essas ondas alcançam águas rasas. Será este o mesmo destino da Justiça Eleitoral diante da onda das fake news? Juízes eleitorais possuem dificuldade de lidar com as notícias falsas, sobretudo diante dos instrumentos disponíveis para operar. Vale lembrar que o tempo da justiça não se equivale ao tempo da operação da comunicação computacional; entretanto, quando se trata do processo eleitoral, essa defasagem passa a ser uma questão relevante de controle.

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[1] Não se esquece que a decisão monocrática do Min. Carlos Horbach na Rp. nº 0601727-09.2018.6.00.0000, em 17.10.2018, que propôs alguns parâmetros para justificar a intervenção da Justiça Eleitoral na remoção de conteúdos nas redes sociais, foi muito citada pelos seus pares, porém o que se argumenta é que não houve uma análise desses critérios pelo órgão colegiado a fim de demonstrar um claro posicionamento do Tribunal.

[2] Como exemplo, cita-se a falta de uniformidade nos fundamentos utilizados pelos julgadores para analisar a ocorrência das fake news, destacando-se: (i) a necessidade de a notícia ter caráter patentemente ou evidentemente inverídico ou mesmo de a falsidade ser verificável de plano; (ii) a necessidade de haver na própria rede social meio de contestação das ideias expostas, de modo a permitir ao próprio eleitor que julgue a veracidade daquilo que é divulgado; (iii) a consideração da capacidade do eleitor para avaliar os conteúdos que lhe são apresentados, sendo indevida a intervenção paternalista da Justiça Eleitoral; (iv) o potencial lesivo da divulgação, diferenciando-se posts realizados em páginas de pouco ou muito acesso; (v) postagens jocosas ou humorísticas (aqui incluídos os memes) têm como pressuposto a manipulação da realidade e até mesmo sua distorção, porém não podem ser consideradas irregulares; (vi) não é possível aferir se as notícias foram produzidas intencionalmente para desvirtuar ou falsear a realidade, ou se decorreram de equívocos ou de negligência dos veículos de mídias sociais; (vii) uma informação imprecisa mas não sabidamente inverídica não configura fake news e (viii) o controle sobre o conteúdo ou nível das informações veiculadas deve ser realizado pela própria sociedade civil, não devendo a Justiça Eleitoral atrair para si a função de fact-checking.

[3] Considerando as decisões analisadas que determinaram a quebra de sigilo de internautas ou mesmo a remoção cautelar de conteúdos reputados falsos, apenas uma – decisão da lavra do Min. Luiz Edson Fachin na Rp. 0600796-06.2018.6.00.0000 – fez referência ao Marco Civil da Internet. Nenhuma menciona a Lei Geral de Proteção de Dados.

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