"Time is a great teacher, but unfortunately it kills all its pupils"
- Hector Berlioz
“A verdade é filha do tempo, não da autoridade”, dizia Francis Bacon. A justiça, irmã da verdade, é, por conseguinte, também filha do tempo. Alguns eventos ocorrem em um momento específico da história, e, muitas vezes, levam décadas, ou mesmo séculos, para renderem os frutos de seu desenvolvimento completo. A tragédia da história é que o tempo dá à luz à verdade para em seguida devorá-la novamente no esquecimento. O tempo é inexorável.
Esse fenômeno foi bem representado pela mitologia grega. O titã Cronos, deus do tempo, devorava seus filhos aos nascerem, por medo de ser por eles destronado. Até que o último de seus filhos, Zeus - graças à astúcia de sua mãe, Reia, que fez Cronos engolir uma pedra envolta em um pano, pensando ser um bebê -, conseguiu evitar o destino fatal das garras do tempo. Métis, a deusa da prudência, deu, mais tarde, uma poção mágica a Zeus para que ele fizesse com que Cronos a tomasse e vomitasse os outros filhos que havia devorado anteriormente. Moral da história: é quase impossível fugir da corrosão do tempo.

O Tribunal Penal Internacional (TPI), filho da Justiça, não poderia ser exceção a essa regra. Sir Howard Morrison, ex-Presidente da Divisão de Apelação do TPI, afirma que o tribunal é um fruto extemporâneo dos Julgamentos de Nuremberg (1945-1946) e das falhas das Nações Unidas em impedir os genocídios de Ruanda e da Iugoslávia, no início dos anos 1990, que resultaram na constituição de tribunais internacionais ad hoc. O Estatuto de Roma, tratado que instituiu o TPI, foi assinado em 17 de julho de 1998, fruto, ele também, do seu tempo. Era, segundo Sir Morrison, o ápice, na história recente, do movimento internacionalista e da aceitação do conceito de responsabilidade internacional dos Estados. “É duvidoso se seria possível assinar um tal tratado no clima político atual”, lamenta o juiz britânico.
Em seus quase 20 anos de existência (o Estatuto de Roma entrou em vigor em 1º de julho de 2002), o TPI não teve uma vida fácil. Em primeiro lugar, como ressaltou William Clegg, o tribunal, que tem por objeto defender o direito internacional humanitário e julgar crimes de guerra, não tem a sua jurisdição aceita pelas principais potências militares do globo, notadamente, entre elas, os EUA, a China e a Rússia, o que reduz o seu escopo de atuação e levanta questionamentos quanto à sua legitimidade real. E este é precisamente um dos principais desafios atuais enfrentados pelo TPI, conforme apontado pelo Diretor-Geral interino do gabinete do Advogado-Geral do governo britânico, Shehzad Charania. Segundo ele, além do problema da legitimidade, o tribunal ainda enfrentaria problemas de credibilidade, devido a um baixo índice de condenações, altamente concentradas geograficamente e, mesmo, de desejabilidade, já que se trata de uma jurisdição complementar, apenas acionável quando os mecanismos internos dos Estados falham, quando o desejável seria que esses mecanismos não falhassem, o que tornaria o TPI desnecessário. Roupa suja se lava em casa, diz o ditado. O TPI está, segundo Charania, em um verdadeiro ponto de inflexão, “enfrentando tempos difíceis”. Cronos não perdoa.
E é nestes tempos de provação que o TPI vai substituir a chefia da sua promotoria. O barrister britânico, Karim Khan, foi eleito, no último dia 12 de fevereiro, para um mandato de nove anos à frente da promotoria do tribunal. Sua eleição foi vista como uma vitória da diplomacia britânica, em tempos de Brexit. Khan, que assumirá no próximo dia 16 de junho, não é novato no pedaço. Bacharelado em direito pelo King´s College, Karim Khan foi chamado ao Bar pelo prestigioso Lincoln´s Inn em 1992. A partir de então, seguiu carreira como promotor público e doutorou-se em direito pelo Wolfson College, em Oxford. A partir do final dos anos 1990, participou de vários casos internacionais de alto nível, como nos tribunais ad hoc de Ruanda, Iugoslávia, Serra Leoa e Líbano. “Pegou seda” – como se diz no jargão judiciário inglês quando um barrister é nomeado para compor o seleto grupo dos Queen´s Counsel, a nata da profissão – em 2011. Menino prodígio.
Dias antes da eleição de Khan, no dia 5 de fevereiro, o TPI havia decidido, por maioria, que sua jurisdição “se estende aos territórios ocupados por Israel desde 1967, notadamente a Faixa de Gaza e a Cisjordânia, incluindo Jerusalém oriental”. O Tribunal ressalvou, na sentença, que “não estava determinando se a Palestina cumpria os requisitos de constituição de um Estado sob o direito internacional público, ou julgando uma disputa de fronteira, ou prejulgando a questão de quaisquer fronteiras futuras”. A decisão, contudo, abriu caminho para abertura de um inquérito de investigação criminal sobre os conflitos na Palestina, o que foi oficializado no último dia 3 de março, pela ainda atual Promotora-Chefe, Fatou Bensouda. A recente escalada da violência entre Israel e o Hamas, a mais severa desde 2014, vem jogar barris de pólvora em um incêndio já fora de controle. Alguns analistas temem mesmo que esse último episódio do conflito, cuja eclosão aparentemente teve origem popular, não organizada, no Tik Tok, possa evoluir para uma guerra em grande escala. Seria um desafio vital para a sobrevivência do TPI.
Israel não é signatário do Estatuto de Roma e, portanto, não reconhece a jurisdição do TPI. O exercício da jurisdição do tribunal sobre Estados não-Parte do TPI já foi intentado no passado, com severas consequências. A administração Donald Trump chegou mesmo a impor sanções contra a Promotora-Chefe Bensouda, por investigações do tribunal acerca de possíveis crimes de guerra cometidos por tropas norte-americanas no Afeganistão. As sanções foram canceladas no início de abril deste ano, mas o Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, ressaltou que os EUA "discordam veementemente das ações do TPI em relação ao Afeganistão e às questões palestinas", e que o país se opõe aos "esforços do TPI para exercer jurisdição sobre cidadãos de Estados não-Parte, como os Estados Unidos e Israel”. Um verdadeiro nó górdio.
Lorde Shawcross, o Promotor-Chefe britânico nos Tribunais de Nuremberg, acreditava que os julgamentos marcavam um ponto nodal do desenvolvimento da civilização, a partir do qual os direitos individuais reconhecidamente transcendiam o poder dos Estados.
“Os Estados podem ser grandes e poderosos, mas, em última análise, os direitos dos homens, feitos como todos os homens são feitos, à imagem de Deus, são fundamentais”, dizia o jurista britânico. Trata-se, sem sombra de dúvida, do reconhecimento de um princípio nobre, cuja institucionalização em um tribunal internacional permanente é, no mínimo, um intento louvável. A verdade, novamente, é filha do tempo. E a tentativa de se extrair o máximo de frutos de uma instituição justa antes do seu real momento de maturação põe em risco a sobrevivência mesma dessa instituição que encarna os ideais que se quer ver frutificar.
A operacionalidade completa do TPI passa pela solução de questões intrincadas de direito internacional público, como a dos fundamentos da legitimidade, a jurisdição universal, o papel do indivíduo como sujeito, etc. Essas questões, ao menos em nosso tempo atual, ainda não encontraram solução pacífica. Quem sabe um dia. Esperemos por Godot.
A verdade e a justiça, enfim, são filhas do tempo, Cronos. E para que não sejam, por esse mesmo tempo devoradas, precisam da astúcia e da prudência de Zeus, para que, poupadas, possam render seus frutos máximos. “Não há paz sem justiça”, dizem uns. “Não há justiça sem paz”, dizem outros. O que vem antes, se o ovo ou a galinha, é uma questão que, também ela, é filha do seu tempo. E nos tempos atuais, a prudência é a virtude de ordem. Em rio que tem piranha, jacaré nada de costas.