Degradação democrática

O sentido do isolamento

Bolsonaro abusa da catimba constitucional ao minimizar pandemia e aparelhar PF, obrigando STF a traçar linha: daqui não passa

Foto: Isac Nóbrega/PR

“Non sento odori” (não sinto cheiro). A frase foi digitada em italiano com frequência incomum no Google dias antes da explosão de casos no país e da associação do coronavírus ao sintoma. “Tudo se sente com o nariz, o mundo está no nariz”, escreveu Italo Calvino em Sob o Sol-Jaguar. As autoridades italianas não captaram a extensão da pandemia, hesitaram na adoção de medidas de isolamento, e o resultado foi um recorde de mortes.

No Brasil, a pandemia nos pegou anosmáticos (sem olfato) para farejar com antecedência todos os efeitos colaterais da catimba constitucional do presidente Jair Bolsonaro.

Catimba, segundo o Dicionário Houaiss, é um comportamento que consiste em prejudicar o desempenho do adversário, especialmente no futebol, por meio de recursos astuciosos e antiesportivos. Tem a peculiaridade de só ser censurada quando executada pelo adversário – sempre agrada a uma das torcidas, que a vê como esperteza, uso das lacunas do regulamento em benefício do time. Por isso, a necessidade bons juízes para mostrar o cartão ao catimbeiro, às vezes o vermelho, se reiterado o comportamento.

O termo é uma tropicalização da expressão “constitutional hardball”, do professor de Direito Constitucional de Harvard Law School, Mark Tushnet. No original, o fenômeno ocorre quando determinado ator político, como um presidente, estica ou ultrapassa as regras não escritas de fair-play institucional, de boa convivência política.

Foi catimba quando Bolsonaro ignorou regra não escrita, que vigia há 18 anos, e indicou Augusto Aras para o cargo de Procurador-Geral da República. Desde 2003, o indicado (a) fazia parte de uma lista tríplice de nomes escolhidos em votação secreta por seus pares. Não havia nada, lei nenhuma, que o impedisse de fazer o que fez. Fernando Henrique Cardoso também ignorou a primeira lista de sugeridos pelos procuradores, em 2001. Seria então Bolsonaro o bêbado de Dylan Thomas? O poeta galês dizia que um alcoólatra é alguém que bebe tanto quanto você, mas de quem você não gosta. Bolsonaro estaria apenas fazendo mais do mesmo e recebendo críticas imerecidas?

O comportamento recente de Bolsonaro – isto é: o pouco caso com as instruções da Organização Mundial da Saúde (OMS) de enfrentamento à pandemia, desdém pelo placar mórbido de vítimas, comício em frente ao QG do Exército diante de um público aglomerado defensor da volta à ditadura e a intervenção na Polícia Federal (PF), que precipitou a saída do então ministro da Justiça Sergio Moro – é uma catimba constitucional de nova potência. Ações que mudam o desafio à Constituição de patamar.

O Supremo Tribunal Federal sentiu o cheiro de queimado e agiu. Ao insistir na demissão do delegado Maurício Valeixo da direção-geral da PF e na nomeação do Alexandre Ramagem (e aqui não se coloca sob suspeita o indicado), Bolsonaro mimetizou um comportamento de Trump, mais um, que é enquadrado pelo professor de Yale, Jack M. Balkin, como sintoma de “constitutional rot” (degradação constitucional).

No livro “Constitutional Democracy in Crises”, Balkin aponta a demissão de James Comey, então diretor do FBI, a PF americana, como caso exemplar de um ato de degradação constitucional. Comey investigava Trump, familiares e aliados com supostos esquemas russos. Valeixo, segundo Moro, foi pressionado porque a PF investigava amigos do presidente e conduzia inquéritos sensíveis de interesse do clã Bolsonaro.

Na quarta-feira, 29, o ministro Alexandre de Moraes reforçou o giz na linha que o STF vem traçando para conter a catimba de Bolsonaro. No Mandado de Segurança 37.097/DF, o ministro afirmou em sua decisão que o STF “tem o dever de analisar se determinada nomeação, no exercício do poder discricionário do Presidente da República, está vinculada ao império constitucional, pois a opção conveniente e oportuna para a edição do ato administrativo presidencial deve ser feita legal, moral e impessoalmente pelo Presidente da República, podendo sua constitucionalidade ser apreciada pelo Poder Judiciário”.

Para Alexandre, “apresenta-se viável a ocorrência de desvio de finalidade do ato presidencial de nomeação do Diretor da Polícia Federal, em inobservância aos princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e do interesse público”.

Foi uma invasão evidente na seara de atribuições presidenciais. Tribunais constitucionais em democracias maduras fazem esse tipo de controle. Se o Executivo opera dentro dos limites de sua autoridade, com razoabilidade, os juízes não devem intervir. “Mas o princípio da separação de Poderes atribui à corte, mais do que ao Executivo, a determinação dos limites e da zona de razoabilidade de atuação”, diz Aharon Barak, ministro do tribunal constitucional de Israel no livro “The Judge in a Democracy”. Os comportamentos recentes do presidente saíram daquele círculo do sumô, onde quem cruza a linha está fora do jogo.

A pandemia desencavou um léxico distinto, fraseologia de uma comunidade quase secreta — o papo dos epidemiologistas. Expressões como “achatamento da curva” e “isolamento social” tornaram-se a nova, sem trocadilhos demodês, “coqueluche”. Soubemos que ventiladores – e não as máquinas que fazem Bing!, como no humor de Monty Python no filme “O Sentido da Vida” — são aparelhos essenciais numa UTI.

A pandemia, no campo político, exacerbou também um comportamento de risco constitucional do presidente. É consenso científico que o distanciamento social é um meio eficaz, na inexistência de uma vacina, para atenuar a difusão de um vírus numa comunidade. No jargão agora pop, “achatamento da curva”.

Recorrendo a método similar ao adotado pela Universidade de Toronto, que detectou a busca de sintomas pelos italianos no Google Trends (ferramenta que mostra os mais populares termos buscados), conforme artigo no New York Times do economista Seth Stephens-Davidowitz, autor de “Todo Mundo Mente: O que a internet e os dados dizem sobre quem realmente somos”, pesquisei, embora de modo artesanal, o comportamento de duas informações-chave, duas variáveis, nesse processo de enfrentamento da pandemia no Brasil: os termos “gripezinha” e “isolamento social”.

Pode-se perceber pelo gráfico abaixo que houve uma corrida aos teclados quando o presidente Bolsonaro se referiu à Covid-19 como uma “gripezinha”, em meados de março, boicotando a adesão às medidas de restrição social. Diante da seriedade da doença, os internautas logo se deram conta que aquela afirmação não se sustentava e passaram a buscar informações sobre “isolamento social” (em azul no gráfico). Desde então, o público está muito mais interessado no tema do isolamento do que minimizar o impacto do coronavírus. A busca pelo termo “gripezinha” (em vermelho no gráfico) quase desapareceu.

Numa primeira linha de contenção à catimba, o ministro Luís Roberto Barroso já decidira: “A Constituição da República assegura a todos o direito à vida, à saúde, à segurança e à informação. A tais direitos corresponde o dever do Poder Público de prover os serviços necessários à sua garantia e, acima de tudo, a não colocar tais bens em risco”, decidiu na ADPF 669, onde impediu a veiculação de publicidade em defesa ao retorno prematuro à normalidade, de abandono irrefletido e sem base científica do isolamento social.

Os desafios às determinações ou diagnósticos da Organização Mundial de Saúde (OMS), a indiferença diante da pandemia, fazem parte do acervo de catimba constitucional de Bolsonaro. No clássico “Populism: Its Meanings and National Characteristcs”, de 1969, primeiro livro a sistematizar o fenômeno do populismo em nível global, Ionescu e Gellner identificam o comportamento anticiência e antitecnocracia como um traço do DNA populista.

Os especialistas, hoje no figurino de epidemiologistas e infectologistas, fazem parte dessa elite que está na mira dos líderes populistas, como todos aqueles – “integrantes de uma linhagem iniciada no século XVII” – cujo papel era recortar, modelar e apresentar ao público o mundo tal qual ele é, incluindo aí os cientistas, juristas, jornalistas, entre outros, diz William Davies em “Nervous States – Democracy and the Decline of Reason”. Democracia é a incerteza institucionalizada.

O líder populista promete certezas  – até na área científica. Não à toa, a adesão mais estridente de Bolsonaro aos esforços de combate à pandemia veio na figura de uma panaceia, a cloroquina. Na linha da cura com um tiro só. Mantendo como parâmetro de aferição de interesses públicos as pesquisas realizadas pelos internautas, observa-se no Google Trends que a busca pelo termo “cloroquina”, após um pico que coincidiu com a defesa do medicamento por Bolsonaro, desabou com a divulgação dos riscos do remédio.

Novos comportamentos políticos exigem novos instrumentos de detecção de alterações no organismo político de uma nação. Golpe, 31 de março, um cabo e um soldado no Supremo, eventos singulares são improváveis. Democracias constitucionais decaem aos poucos, inoculadas por governos eleitos catimbeiros.

Bolsonaro catimba. Liderança popular, opera às vezes no limite do texto constitucional, aproveitando-se daquela zona cinzenta de interpretação que confunde e faz hesitar as instituições, os árbitros.

Sem limites impostos à catimba, avançaríamos para uma democracia joão-bobo, que se deforma sob impacto e parece voltar intacto à posição original. Mas seria uma democracia de fachada, sustentada pelo vento e não por estruturas institucionais sólidas.

O STF tem estabelecido limites com as decisões dos ministros Barroso, Alexandre, Marco Aurélio (ADI 6341, competência concorrente de estados e municípios no combate ao coronavírus) e Celso de Mello (abertura do inquérito para apurar declarações de Moro envolvendo o presidente).

Ao dizer nesta quinta-feira que “não engoliu” a decisão do ministro Alexandre de Moraes, Bolsonaro indica que seus movimentos, atos, devem daqui para frente estar sob escrutínio permanente e minucioso do VAR – faz parte do jogo democrático, dos checks and balance. Instituições não devem se isolar uma das outras.

A Constituição esta aí para orientar a ação dos árbitros – e os versos de Dylan Thomas também: “Do not go gentle into that good night. Rage, rage against the dying of light.” (Não vás tão docilmente nessa noite linda. Clama, clama contra o apagar da luz que finda.)

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Referências bibliográficas

1] “Sob o Sol-Jaguar”, de Italo Calvino. Companhia das Letras, 1995.

[2]. Google Searches Can Help Us Find Emerging Covid-19 Outbreaks.  Seth Stephens-Davidowitzhttps://www.nytimes.com/2020/04/05/opinion/coronavirus-google-searches.html

[3] “Constitutional Hardball”. Mark V. Tushnet . The John Marshall Law Review. 37:523. 2004. No Brasil, o termo foi “nacionalizado” pela academia e é objeto de pesquisa do professor Rubens Glezer, da FGV Direito São Paulo. Em março, na edição 162 da revista Piauí, Glezer menciona a expressão “catimba” constitucional.  

[4]. “Constitutional crisis and constitutional rot”, de Jack Balkin, Maryland Law Review. VOL. 77:147.

[5] “Constitutional Democracy in Crisis?” Mark A. Graber (Editor), Sanford Levinson (Editor), Mark Tushnet (Editor) Editora: OUP USA (24 de outubro de 2018).

[6]. “The Judge in a Democracy”. Editora: Princeton University Press (1 de maio de 2008) por Aharon Barak .

[7]. “Nervous States – Democracy and the Decline of Reason”, William Davies. Editora: W. W. Norton & Company (26 de fevereiro de 2019).

[8] Dylan Thomas, em “Poesia da recusa”. Organização e tradução Augusto de Campos. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006.