Divida pública

O que importa é a natureza da dívida

Se mudarmos a compreensão que temos de dívida pública, sairemos mais fortes dessa experiência de crise

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Crédito Pixabay

O aprofundamento da desigualdade acentua uma polarização destrutiva: opulência e miséria. Nos últimos 40 anos, a ascensão do neoliberalismo coincidiu com o avanço da concentração de riqueza e o aumento da pobreza em várias partes do mundo. Níveis declinantes de investimento produtivo e a precarização das relações de trabalho são uma das marcas desse processo. Nessas quatro décadas, a excessiva financeirização da economia criou circuitos de valorização de ativos que pouco ou nada dependem da esfera real de produção. O universo do capital fictício passou a ditar a ordem mundana, concreta.

Dilemas morais também se avolumaram nesse período. Os privilégios exorbitantes do topo e a penúria imposta à base (em expansão) da pirâmide têm abalado noções de equidade e justiça. Quando os jardins suspensos do primeiro grupo encontram no horizonte as casas de papelão do segundo, temos prova inequívoca de que o capitalismo não entrega o que promete – se deixado à deriva. Liberdade e meritocracia não justificam condições tão díspares de existência.

E quanto maior o abismo, maior a instabilidade política, incerteza econômica e tensão social. Curiosamente, no entanto, a elite privilegiada, supostamente racional, não consegue se desvencilhar de seu instinto mais primitivo: ela assume o risco de perder tudo, mas não abre mão de nada. Em tamanho, é minúscula. Representa 0,1% da população. Mas é poderosíssima. Vai ao limite. Historicamente, só encontra resistência à altura no contexto de revoluções, guerras ou crises.

É o que enfrentamos hoje. Temos uma grave crise. Mas uma crise de caráter raro, talvez inédita em seu impacto e alcance. Uma pandemia que virtualmente desafia todos os países do mundo, ao mesmo tempo, cuja síntese pode ser oferecida pelos EUA. Nos últimos 10 anos, o país criou 20 milhões de empregos. No último mês, evaporaram 22 milhões de postos de trabalho. Para 2020, projeção do FMI prevê um aumento de mais de 22% da dívida, que deve alcançar 131% do PIB. Pela primeira vez na história, o barril de petróleo foi transacionado a preço negativo. O que a Grande Depressão produziu em anos, a pandemia precipitou em semanas.

O momento é muito crítico. E é justamente nessas horas que a dívida pública ganha centralidade. “A vida dos homens de negócios é uma aposta”, afirmava Keynes – para quem a ousadia dos apostadores variava de acordo com a atmosfera reinante. Assim, em situações dominadas pela incerteza, como a atual, os jogadores retirariam seus lances.

Mas todos sempre querem que o jogo continue. É quando se convoca o Estado. Por meio de seu endividamento, o maior de todos os agentes promove os investimentos necessários para resgatar o nível considerado adequado de atividade econômica, a fim de restituir a confiança e diminuir a incerteza. Em suma, a receita anticíclica do grande economista.

Mas as crises não são todas iguais. Cada uma se desenrola em contexto próprio. Suas raízes também podem ser diferentes. Daí porque o caráter da dívida pública não é sempre o mesmo. O que se verifica agora, por exemplo, é uma parada súbita da produção e do consumo em boa parte mundo. Além disso, existe um insólito bloqueio naval e aéreo em escala planetária. Um bloqueio autoimposto.

Pouca coisa entra ou sai dos países sem rígido controle. Foi esse quadro que favoreceu a construção de um rápido e amplo consenso pela intervenção do Estado. Imediatamente, gregos e troianos aceitaram recorrer a transferências de renda, ao socorro a empresas e à injeção de liquidez no mercado financeiro. Tornou-se imperativo aliviar os drásticos efeitos da quase completa interdição da atividade econômica.

Outro aspecto define esta pandemia: o vírus pode levar à morte rapidamente. Mas não ceifa vidas como a cólera, que está socialmente circunscrita aos pobres do mundo. O fenômeno também ameaça rainhas, presidentes, primeiros-ministros e CEOs. De repente, todos foram obrigados a dimensionar a própria capacidade de resposta à emergência sanitária. A principal tarefa de casa era verificar a situação da infraestrutura nacional de saúde. Em muitos casos, descobriram que a situação espelhava a desigualdade gestada ao longo das últimas décadas. O que era latente se tornou evidente. Mas as coisas nem sempre foram assim.

Em 1948, quando enfrentava as agruras da reconstrução do pós-guerra, a Inglaterra devia mais de 200% do PIB. A cifra, no entanto, não assombrava o governo. Nesse mesmo ano, o gabinete trabalhista criou o Sistema Nacional de Saúde, de alcance universal e gratuito – até hoje uma referência internacional. O importante era a natureza da dívida, não a dívida em si. Se usada para elevar o bem-estar da população, a produtividade da economia e a qualidade da distribuição de renda, era vista como promessa de dias melhores. Não deu outra: a prosperidade que se seguiu controlou a dívida do país. Mas a Inglaterra não estava sozinha. Até 1970, o mundo desenvolvido parecia estar sintonizado na mesma faixa de onda.

As calamidades provocadas por esta crise sanitária não se caracterizam pela destruição física, como ocorre em épocas de guerra. As semelhanças residem no fato de suas consequências serem prolongadas e de amplo espectro. Além disso, seus efeitos atingem de maneira desproporcional a população mais vulnerável.

E num recorte mais político, é certo que os países em desenvolvimento sofrerão as consequências mais negativas. Sob este aspecto, o estrangulamento de fluxos internacionais agudiza a tragédia. Em geral, esses países têm pouca capacidade de produzir autonomamente os insumos necessários ao combate à pandemia. A maioria deles depende da importação dos itens mais básicos.

O Brasil faz parte desse grupo. Compartilha muitas de suas preocupações e enfrenta problemas parecidos. Mas é membro peculiar. Somos um dos cinco países que integram, simultaneamente, a lista dos 10 maiores em território, população e PIB. Exibimos infraestrutura relativamente complexa e sabemos construí-la.

Ainda temos um parque industrial relevante, apesar da franca desindustrialização das décadas recentes. Também contamos com um circuito de inovação e pesquisa de qualificação técnica e profissional respeitável. No que concerne à saúde,  somos capazes de aliar capacidade produtiva e ciência para satisfazer parte de nossas necessidades.

Panorama alentador, à primeira vista. Indica que temos condições objetivas de reagir a essa crise. O problema é que regredimos bastante em todos esses aspectos nos últimos 30 anos. Na corrida pelo desenvolvimento, fomos um dos países que mais perderam posições nesse período.

Em vez de continuarmos no ritmo de quem pegava o bastão e avançava, decidimos entregá-lo ao corredor que se aproximava e recuamos. Ao forçar respostas, a crise pôs a nu nossas vulnerabilidades mais sensíveis. Como o resto do mundo, o Brasil está obrigado a fazer escolhas. Em todos os casos, a opção mais fácil passa por transferir soluções ao mercado, insistindo em relegar o Estado ao papel de mero coadjuvante na formulação e execução de saídas para a crise. Estratégia fadada ao fracasso. Outra alternativa é o Estado chamar para si a responsabilidade lhe cabe.

Precisaremos expandir nossas fronteiras de produção industrial, tecnológica, científica e de formação de recursos humanos. Se não elevarmos nossa autonomia nessas áreas, não seremos capazes de oferecer assistência à saúde à vasta maioria dos 210 milhões de brasileiros. O que está em jogo é a integridade do elemento humano de nossa soberania. Um dever inescapável. Não à toa, está inscrito em nossa Constituição.

Mas essa não é única deficiência crítica exposta pela pandemia. Relacionada aos dramas de saúde que enfrentamos agora, percebemos da maneira mais chocante o modo como a desigualdade se manifesta entre nós. Emprego, renda, gênero, cor de pele, entre outros fatores, exercem forte influência sobre as chances de uma pessoa ser contaminada e receber assistência médica. A crise sanitária reforça a noção de que os dois problemas não podem ser encarados isoladamente.

O desafio é complexo. Demanda enorme volume de recursos. A tarefa não será trivial. Mas a hora exige menos assombro e mais ousadia. O Brasil não pode mais transigir com isso. Criamos o SUS, sistema cujos pilares são muito parecidos com o inglês. Precisamos efetivá-lo. Para isso, devemos assumir nova postura em relação à dívida pública. Existe largo consenso em torno da necessidade de elevação de gastos para amenizar os efeitos imediatos da paralisia causada pela pandemia.

A discórdia diz respeito ao comportamento pós-crise. Vozes no governo e na comunidade financeira afirmam que não há alternativa à austeridade. Um disparate. Vai agravar a situação e arrastá-la ao longo do tempo, infligindo enorme sofrimento a milhões de brasileiros.

Num mundo de dívidas públicas estratosféricas, a nossa é de apenas 80% do PIB. Emitimos moeda própria. Possuímos um bom colchão de reservas em dólar. E não temos dívida externa. Se mudarmos a compreensão que temos de dívida pública, se associarmos ao endividamento um propósito justo, nobre, capaz de potencializar a geração de riquezas, sairemos mais fortes dessa experiência.

Dívida assim deve ser vista de outra maneira: investimento. É o elo que vai nos reconectar com a rota do desenvolvimento, e de tudo o que isto hoje implica. Se, por outro lado, pusermos o país em função da dívida, e não o contrário, se dermos mais importância à dívida em si, e não à sua natureza, se continuarmos a reverenciar os interesses de 0,1%, no lugar de enfrentarmos as urgências do povo brasileiro, encontraremos um destino sombrio e caótico.