Executivo

O preço do subfinanciamento do SUS na Pandemia

Combate à pandemia nos força a lembrar que a despesa com políticas públicas não é um mero gasto

Foto: Alejandra De Lucca V. / Minsal

Em um cenário de crise, velhos problemas tendem a se acentuar e chegar à tona ao público com suas consequências perversas. Nos últimos cinco anos têm-se observado o ataque ao financiamento do sistema público de saúde, prejudicando em muito a capacidade de resposta desse à pandemia, mas o que se assiste diariamente entre o Executivo Federal, estados e municípios ultrapassa os limites de discussões jurídicas e legislativas quanto ao orçamento para a politização de recursos e rivalidade federativa ao custo de milhares de vidas.

A saúde é um direito social consagrado pela Constituição, e dever do Estado por meio de políticas públicas, as quais demandam, para o seu funcionamento, dinheiro. Portanto, garantir recursos para o sistema de saúde é condição para concretização de direitos fundamentais, o que não passou ao largo do texto Constitucional, que previa, a partir da Emenda Constitucional n. 29/2000, pisos mínimos obrigatórios a serem aplicados no setor por cada ente federativo: para a União valor empenhado (comprometido em orçamento com projetos e programas) no ano anterior mais a variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB); para  Estados 12% de sua receita e Municípios, 15%.

Na prática, o SUS estruturou-se em torno de uma rede razoavelmente sólida de atendimento básico, de baixa complexidade, sob responsabilidade dos Municípios, enquanto serviços hospitalares, de média e alta complexidade e dispensação de medicamentos ficaram a cargo dos estados, sendo essa estrutura em grande parte ligada ao setor privado por meio de acordos e convênios. Consequentemente, os maiores investimentos em saúde ficam em âmbito municipal, cuja média é 21% do orçamento total enquanto os estados giram em torno de 14% (SIOPS[1]).

O discurso de austeridade e pressão por cortes de gastos cresceram em 2016, impulsionando medidas como a EC n. 86/2016, a qual reduziu a participação da União no financiamento do SUS, determinando o percentual fixo de 15% da Receita Corrente Líquida a ser aplicada no setor, a ser atingido de forma gradual, começando-se em 2016 com 13,2%.

Na prática, retira-se a progressividade dos recursos, que antes variavam conforme o crescimento do PIB, nunca podendo ser menor do que o gasto do ano anterior, o que constitui uma afronta direta ao princípio da vedação ao retrocesso na concretização de direitos sociais. Não por outro motivo a EC foi questionada na ADI n 5595, cujo julgamento por plenário no último dia 16/04 foi interrompido por pedido de vistas do Ministro Dias Toffoli[2].

Outro ponto até hoje em discussão é o famoso “teto de gastos”, introduzido pela EC 95/2016, uma medida radical de congelamento de gastos com a despesa primária por vinte anos. Esses valores ficam estagnados ao valor referencial de 2016 – historicamente baixo por conta da recessão financeira – e referem-se justamente ao financiamento de políticas públicas e serviços públicos, em especial o atendimento à saúde, deixando de fora pagamentos de juros e amortizações da dívida pública[3].

Logo, o desmantelamento financeiro do SUS é projeto de longa data, focado no estrangulamento dos recursos oriundos da União. Na crise atual foi aprovado o chamado “orçamento de guerra” (EC 106/2020), conjunto de medidas para dinamizar a atuação do Executivo a fim de disponibilizar recursos para o combate à Covid-19. Dentre essas destaca-se a contratação simplificada de obras, serviços e produtos de forma emergencial e temporária e a relativização da “regra de ouro” a fim de permitir maior endividamento da União.

Essa é uma ferramenta poderosa, que confere grande margem de manobra ao gestor público. Contudo, tendo em vista a edição da recente Medida Provisória 966/2020[4], que reduz drasticamente a responsabilidade de agentes públicos por seus atos em relação à pandemia, pode tornar-se um salvo-conduto para arbitrariedades e favorecimentos.

Infelizmente, é o que se extrai da atuação federal no último mês, que se exime do sistema de freios e contrapesos democráticos enquanto estados e – principalmente – municípios, entram em colapso na linha de frente da batalha. Em Nota Técnica[5], a Frente Nacional dos Municípios denuncia o atraso na disponibilização de recursos, insumos e na habilitação de leitos em pedidos negociados ainda em março.

Segundo dados oficiais do Fundo Nacional de Saúde, da dotação total de 18 bilhões de reais para o combate ao coronavirus, apenas 4 bilhões foram efetivamente pagos aos municípios, enquanto os estados e o distrito federal receberam cerca de 2,9 bilhões até a data de 19/05[6]. A FNM ressalta ainda que dos 7 bilhões previstos em favor dos municípios, estados e DF apenas 2,3 bilhões são recursos efetivamente novos ao SUS, sendo o restante apenas um remanejamento de outras áreas da saúde.

A politização da pandemia e a rivalização das esferas federativas se sobrepôs às medidas de segurança sanitárias e agravou um quadro crônico de subfinanciamento no sistema público de saúde. Não se trata de um jogo político ou uma disputa eleitoral, mas da garantia da saúde e da vida de milhares de brasileiros.

O combate à pandemia pede uma ação conjunta de União, estados e municípios, e nos força a lembrar que a despesa com políticas públicas não é um mero gasto, mas condição essencial para realização de direitos humanos. Que essa percepção possa se prolongar para além da crise e motivar uma nova estrutura de financiamento para o SUS.

 


[1] Disponível em: <https://www.saude.gov.br/repasses-financeiros/siops>.

[2] Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5056708>.

[3] Romão, A. L. (2019). O financiamento da saúde frente ao novo regime fiscal. Revista De Direito Sanitário, 20(1), 86-106. Disponível em: <https://doi.org/10.11606/issn.2316-9044.v20i1p86-106>.

[4] Disponível em: <http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-966-de-13-de-maio-de-2020-256734909>.

[5] Disponível em:<https://multimidia.fnp.org.br/biblioteca/documentos/item/805-nota-tecnica-falta-de-equipamentos-e-medicamentos-nas-cidades>.

[6] Disponível em: <https://painelms.saude.gov.br/extensions/TEMP_COVID19/TEMP_COVID19.html>.