Análise

O poço: a moralidade diante da distopia

Um paralelo entre o filme ‘O Poço’ e a quarentena do coronavírus. Contém spoilers

Crédito: Reprodução/ Youtube

Não é apenas o roteiro estarrecedor que causa espanto a quem assiste o filme “O Poço”[1], em cartaz na Netflix, mas também e principalmente a experiência de se ver transportado para aquela distopia grotesca e alucinante, como se ali estivéssemos com tudo o que somos, de melhor e de pior.

O filme se desenvolve basicamente dentro de uma espécie de Pan-óptico, onde os presos são constantemente vigiados, mas não podem ver quem os vigia. Embora não tenha a arquitetura tal qual proposta por Jeremy Bentham[2] em 1785, o “Poço” é uma construção vertical com algumas centenas de andares subterrâneos, e cada andar abriga duas pessoas.

No meio dos andares há uma abertura quadrada por onde desce, uma vez por dia, uma plataforma suspensa no ar (futurística) e que faz as vezes de uma enorme bandeja de comidas cuidadosamente preparadas por chefs profissionais.  E este é o problema: a mesma bandeja serve todos os andares. No nível “zero”, quando está intocada, ela representa não apenas a fartura de alimentos, mas principalmente a opulência daqueles que estão no topo pirâmide econômica. Quando a mesa chega aos últimos níveis ela está toda revirada, cheia de copos e pratos quebrados, objetos imprestáveis, como num lixão, mas sem nenhum alimento.

Quem está no nível superior não apenas é indiferente à fome das pessoas que estão abaixo, mas por elas tem repugnância. Isso faz com que quem esteja nos níveis inferiores, onde não chega comida, não tenha escolha se quiser viver senão assassinar seu companheiro para se alimentar de sua carne.

A nosso ver, quem interpretou o filme como uma crítica ao capitalismo passou de raspão, mas não encontrou a sua essência. O cerne de “O Poço” está em levar às últimas consequências uma das grandes questões morais colocadas pela filosofia, pela economia e pela política: o impulso do homem em agir somente pelo autointeresse.

É célebre a passagem de “A Riqueza das Nações”[3] em que Adam Smith refuta a benevolência do açougueiro, do cervejeiro e do padeiro como se tal virtude fosse a sua motivação. Na verdade, segundo o pai da economia clássica, nada além do que o próprio interesse os põe a trabalhar, de modo que não são as nossas necessidades que eles levam em conta, mas apenas as vantagens que advirão para eles. Não que Adam Smith propusesse ser correto o agir moral apenas pelo autointeresse. Basta ler a sua “Teoria dos sentimentos morais”[4] para saber disso.

De toda forma, historicamente a ciência da economia vem se valendo da figura hipotética do homem que racionaliza o mundo apenas segundo o próprio interesse, apartando-o das concepções éticas, morais, religiosas e até psicológicas. O que impulsiona o assim chamado homo economicus é o desejo de maximizar a sua riqueza com o menor esforço possível[5].  Alinhado à figura do homo economicus surge o homem utilitarista de Jeremy Bentham[6], sim, aquele mesmo que criou o Pan-óptico.

O Utilitarismo parte do pressuposto de que as pessoas tomam as suas escolhas sempre com vistas a maximizar o prazer ou evitar a dor, e por isso ele aceita como moralmente válido toda ação tendente à maximização da felicidade de seu autor[7].

Ainda assim, não se pode resumir a sociedade capitalista à figura do homo economicus ou do homem utilitarista, pois assim como uma pessoa pode guiar-se por outros valores que não apenas o autointeresse –  e na prática é bem isso que ocorre, como lembra Amartya Sen[8] –, nada impede que uma sociedade encampe ao sistema econômico capitalista outras concepções morais e políticas por meio da adoção de princípios como o da dignidade humana, da igualdade de oportunidades e da solidariedade, como, aliás, fez expressamente a nossa Constituição de 1988[9].

A conciliação entre a lógica do lucro ou do benefício próprio com outros valores morais vai depender, mais do que qualquer outra coisa, de uma escolha a ser feita pelo indivíduo ou pela própria sociedade.

Tal escolha nem sempre é fácil, sobretudo porque as situações reais são um tanto nebulosas e até paradoxais. Veja-se o caso do coronavírus: ele pode colapsar o sistema de saúde e até levar a óbito uma pequena parcela da população. Para que nem um, nem outro, ocorram, os governos adotaram medidas que restringiram severamente a circulação das pessoas, chamadas popularmente – ou impopularmente – de “quarentenas”.

Mas essas medidas, e não o vírus, causam um terceiro efeito social, que é a estagnação das trocas de mercado, com a consequente crise e recessão da economia. Essa situação de crise provoca o desemprego como quarto efeito, que por sua vez ocasiona, como quinto efeito, a fome, desnutrição, doenças e, de novo, a morte de pequena parte da população.

Em última análise, temos um dilema: escolher entre a morte de parte da população como o efeito mais nefasto, embora inevitável, do coronavírus ou a morte de uma parcela da população ainda mais empobrecida pela quarentena.

Será?

Vamos traçar agora um paralelo entre a situação imposta pelo coronavírus e a distopia apresentada no filme “O Poço”. No filme, as pessoas que estavam nos andares de cima serviam-se de uma bandeja com fartura de alimentos. Na vida real, dada a estrutura vertical da renda e da riqueza[10], a quarentena faz com que as famílias que estejam nos andares superiores também tenham um banquete farto, em algumas até opulento, mas as que estejam nos andares inferiores tenham escassez e até ausência de comida.

Para que essa escassez não ocorra, ouvimos alguns políticos e até economistas argumentarem que proteger as pessoas neste momento é acabar com a quarentena para que elas possam trabalhar. Também dizem que são as próprias pessoas que querem sair de casa para poder trabalhar, afinal não pretendem ficar sem comida. Contudo, se pensarmos bem, talvez eles “queiram” trabalhar tanto quanto os personagens do filme “queriam” praticar o canibalismo para não morrer de fome. Querer e precisar são coisas bem diferentes.

Não podemos incorrer, ainda que de boa-fé, na falta de responsabilidade que Ronald Dworkin atribui a um peculiar processo de racionalização[11]: quando a pessoa acredita sinceramente que seu raciocínio é conduzido por algum princípio moral, mas que, na prática, perde a força quando ela mesma é confrontada.

No exemplo do próprio autor, isso ocorre quando ela acredita que cada indivíduo é o único responsável pelo próprio destino e por isso vota em políticos que prometem extinguir os programas de previdência social, ao passo que pede aos mesmos políticos que, numa situação de crise, socorram sua empresa com dinheiro público.

De fato, não é incomum vermos pessoas que advogam o liberalismo econômico repudiarem o Estado social, ao passo que se valem das universidades públicas ao invés de custear o estudo de seus filhos. Devemos ter clareza moral para nos apercebermos de que aquilo que queremos para nós também é o que as outras pessoas provavelmente querem para elas.

Com isso em mente, o que cada um pode fazer para amenizar os efeitos da distópica quarentena vai depender da resposta a uma simples pergunta: em qual andar você está?

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[1] O POÇO. Filme original Netflix. 2019. Direção: Galder Gaztelu-Urrutia. Elenco: Ivan Massagué, Zorion Eguileor, Antonia San Juan. Nacionalidade: Espanha. Série exibida pela Netflix. Acesso em: 13.04.2020.

[2] BENTHAM, Jeremy. Teoria das penas legais e tratado dos sofismas políticos. São Paulo: EDIJUR, 2002.

[3] SMITH, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. Vol. I. Tradução de Luiz João Baraúna. São Paulo: Ed. Nova Cultural Ltda., 1996.

[4]. _____________. Teoria dos sentimentos morais. Tradução de Lya Luft. Revisão de Eunice Ostrenkdy. 2ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015. Edição do Kindle. Ebook.

[5] HUNT, Emery Kay; LAUTZENHEISER, Mark. História do pensamento econômico. Tradução de André Arruda Villela. 3. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013.

[6] BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. São Paulo: Abril S/A, 1974.

[7] SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloisa Matias; Maria Alice Máximo. 13. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

[8] SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução de Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

[9] BRASIL. Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 13/04/2020.

[10] PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Tradução de Monica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Ed. Itrínseca Ltda., 2014.

[11] DWORKIN, Ronald. A raposa e o porco-espinho: justiça e valor. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014.