Eleições 2022

O performativo do discurso de ódio na política

No mundo da vida e das instituições, a violência política começa na linguagem

discurso de ódio
Crédito: Unsplash

Na manhã do último 15 de setembro, Dia Internacional da Democracia, foram duas as notícias que chamaram a minha atenção: as agressões sofridas pelo pessoal do Datafolha (à qual se seguiu, no dia 17, uma matéria sobre violência e intimidação sofridos também pelas equipes do Ipec, da Quaest, do Monitor de Debate Político e do Censo do IBGE) e o receio da população em expressar suas opiniões políticas – identificado no levantamento “Violência e Democracia: panorama brasileiro pré-eleições de 2022”, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pela Rede de Ação Política. De acordo com a pesquisa, 67,5% dos entrevistados declararam sentir medo de serem agredidos e/ou ameaçados em razão de suas escolhas políticas ou partidárias.

As duas notícias não possuem somente institutos de sondagem de opinião pública em comum. Tampouco se tratam de meras coincidências. Ambas são sintomas do cenário sombrio em que o país mergulha (cada vez mais fundo) desde 2014, somando-se à pilha de manchetes sobre violência política no país.

Com a proximidade do pleito, a frequência em que assédio, ameaças, tentativas de assassinato, assassinatos e outros tipos de violência motivados por intolerância política figuram nos jornais e são denunciadas nas redes sociais parece aumentar de forma alarmante. Parece, porque esta afirmação não foi feita com base em uma análise que quantifique e qualifique estas menções (aliás, uma boa ideia). No entanto, a concretude do temor foi dimensionada e categorizada pela pesquisa “Violência e Democracia”. Além do medo relatado por quase 70% dos entrevistados, 3,2% disseram ter sido vítimas de ameaças, por motivos políticos, no último mês. Extrapolada a amostra da pesquisa, seriam cerca de 5,3 milhões de pessoas vítimas de ameaças por suas posições políticas nos 30 dias anteriores ao campo da pesquisa (que aconteceu dos dias 3 a 13 de agosto de 2022, a dois meses do primeiro turno). O relatório ainda destaca: “O discurso de estímulo à agressividade política e institucional tem sido comum, chegando à violência letal, por parte de civis, em episódios recentes”.

São inúmeros os casos, tanto de pessoas comuns como de personalidades públicas – muitas delas mulheres, na política institucional e no jornalismo. Não quero citá-los exaustivamente, pelo duplo receio de que algum deles acabe ficando de fora, ou pior, que outros aconteçam até a publicação deste texto. Mas é possível traçar uma linha nefasta que vai dos ataques à presidente Dilma Rousseff, passa pelo homicídio da vereadora carioca Marielle Franco e chega às reiteradas ameaças e insultos à jornalista Vera Magalhães. E tanto no mundo da vida quanto no das instituições, a violência começa na linguagem.

Em meados do século 20, os filósofos da linguagem John L. Austin e John Searle (a posteriori) elaboraram a Teoria dos Atos de Fala – que, em suma, explica como alguns enunciados constituem ações que se realizam no momento em que são pronunciados. Tais atos de fala são chamados performativos.

De forma mais geral, essa teoria parte do pressuposto de que a linguagem constrói a realidade, ao invés de somente nomeá-la ou representá-la. De maneira mais específica, ela categoriza os atos de fala que correspondem ao ato que o locutor realiza ao enunciá-los (como por exemplo, ordenar, ameaçar) e também aos efeitos que este ato produz no interlocutor. Embora não tenha sido desenvolvida para pensar exclusivamente as falas agressivas, a teoria é uma das que Judith Butler mobiliza para refletir acerca do que hoje chamamos discurso de ódio – que vivenciamos também como violência política.

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É por isso que as falas e discursos ameaçadores, virulentos, injuriosos, caluniosos e difamatórios não são apenas o prenúncio de uma violência a ser cometida – eles já constituem um ato violento. No senso comum, tem-se o hábito de pensar que a violência precisa ser física ou que uma ameaça é um “aviso”. A Lei Maria da Penha é um exemplo de que essa concepção (ao menos normativamente) começa a mudar, considerando crimes contra a mulher as violências psicológica e moral. Isso porque atos de fala violentos geram efeitos perversos nas pessoas às quais foram dirigidos. No tecido social, eles ainda fomentam um clima que encoraja uma escalada das agressões contra indivíduos e/ou grupos.

Como violência política, o discurso de ódio ganha um elemento legitimador – principalmente quando incitada pelo mandatário e por seus correligionários. E aqui, colocamos sob o guarda-chuva violência política uma sinistra variedade de agressões dirigidas em grande parte a minorias e/ou a seus representantes (conceito social), pois são identificados com (e como) o Outro a ser eliminado. E este Outro indesejável (ou seria Outra?), não ironicamente, representa a maioria do eleitorado, cujas intenções de voto dão larga preferência ao candidato Lula, do Partido dos Trabalhadores.

Não é de hoje que o trabalhismo é a Geni da política brasileira. O antipetismo é uma continuidade do udenismo, em que pese os atores políticos, momento histórico e tecnologias distintos. O discurso contra o trabalhismo foi capaz de resistir ao tempo e de se atualizar, mas não é novo. E nisso reside sua pregnância: é um discurso consolidado, que antecede os sujeitos que o proferem. É como se as pessoas fossem faladas, ao invés de falarem – mecanismo que Althusser chamou interpelação.

E essa é uma das razões pelas quais a violência política direcionada aos que se identificam (ou são identificados) com o PT e a esquerda é perpetuada. Vale ainda notar que essa demonização das esquerdas, de forma mais ampla, corresponde a um rechaço do processo democrático como um todo – reforçado em diversas falas do presidente e evidente desde os protestos de junho de 2013 como ojeriza aos partidos e, por conseguinte, à política. O discurso de rejeição à política pavimentou a vitória de Jair Bolsonaro em 2018, não sem antes defenestrar Dilma Rousseff antes da metade do seu segundo mandato e seguir seu rastro de destruição de reputações, agressões e mortes.

Enganou-se quem acreditou que o discurso de ódio do presidente poderia ser contido no convívio da política institucional – não à toa foi montado um gabinete com o fim de propagá-lo. Logo, todos identificados como desafetos ou inimigos se tornaram alvos potenciais, ou de fato, de violência política. E é esse o fenômeno que infelizmente vemos se amplificar com a proximidade das eleições. Quando se trata de discurso de ódio e da violência política, dizer é fazer.

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