Série voz

O lugar-problema da raça no Direito internacional

Os acontecimentos de 2020 colocam o direito internacional e a ONU em uma encruzilhada

Crédito: Artsy Solomon/ Nappy.com

O Direito Internacional – compreendido enquanto estrutura normativa, suas instituições, órgãos e agentes nas mais diversas esferas – possui um grave problema a ser resolvido em relação ao racismo e ao debate racial.

Tal problema não repousa somente na ausência da questão racial na agenda global de direitos humanos (ACHIUME, 2018), mas principalmente na lógica de subordinação e de hierarquização racial que constitui elemento estrutural do sistema-mundo moderno-colonial (WALLERSTEIN, 1992).

Com isso, afirmo que mesmo quando o direito internacional e seu aparato institucional abordam o racismo e a discriminação racial, não o fazem buscando combatê-los em sua dimensão estrutural e nem com o objetivo de por fim às desigualdades raciais que dão base às relações de exploração-desumanização dentro dos Estados e na esfera política global.

 

W. E. B. Du Bois já afirmava de maneira bastante categórica que “o problema do século vinte é o problema da linha da cor – a relação entre as raças de homens mais escuros e os mais claros na Ásia, África, América e nas ilhas dos mares” (DU BOIS, 1961, p.23). A partir dos debates que foram desenvolvidos nas últimas semanas nesta série Voz , é possível perceber que em 2020 o problema racial permanece sendo um dos principais problemas do mundo, mantendo a atualidade de Du Bois (1925, p.423) quando afirmou que o racismo é o “presente Problema dos Problemas”.

O racismo e a discriminação racial são, à primeira vista, antitéticos aos princípios e valores estruturantes do direito internacional dos direitos humanos. A proibição à discriminação racial é considerada como norma imperativa do direito internacional, presente na Carta da ONU, na Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial – aqui referida como ICERD –, e tida como costume internacional.

No entanto, uma investigação da narrativa/mito da Paz de Westfália, em 1648, como momento inicial do sistema internacional moderno, nos permite perceber que os juristas internacionais dos séculos XIX e XX realizam um posicionamento dos argumentos civilizatório e de nascimento da soberania diretamente implicados pela lógica colonial (KAYAOGLU, 2010; OSIANDER, 2001). Como afirma Antony Anghie (2005), o direito internacional tem sido, desde muito tempo, uma ferramenta para proteger as hierarquias raciais.

O pressuposto de existência do sistema internacional era a produção de uma cisão entre os Estados europeus, detentores de soberania e cujos nacionais gozavam do status de sujeito, e os territórios coloniais, compostos por bárbaros despidos de humanidade e de história (HEGEL, 2010).

Esta cisão que informa a criação do sistema moderno de Estados é geográfica e política, mas é, sobretudo racial. Lélia Gonzalez (1988) produz um reposicionamento da narrativa do surgimento do sistema-mundo moderno colonial apontando que este foi gestado em suas condições históricas de possibilidade durante o domínio mouro na Europa.

Devido aos séculos de controle negro de parte do território europeu, encerrado em 1492 com a queda de Granada, as sociedades europeias se desenvolveram tendo o ódio racial e a supremacia racial branca como base, influenciando de maneira determinante a conformação do Estado moderno e do sistema internacional de Estados.

As revoluções liberais do século XVIII são capazes de destacar as contradições presentes nos processos de ruptura política e nas declarações de direitos provenientes da revolução francesa e da independência dos EUA, que conciliavam a manutenção da escravidão e do comércio transatlântico de pessoas escravizadas com a proclamação das liberdades do homem.

As declarações provenientes dessas revoluções do final do século XVIII carregam em si valor fundamental para o direito internacional, inserindo o debate humanista de proteção de direitos básicos na agenda internacional e delimitando o conjunto da humanidade de modo a excluir os sujeitos colonizados.

Isso fica evidente com o apagamento da Revolução Haitiana (1791-1804) das discussões internacionais acerca dos direitos humanos. A única revolução política bem sucedida do século XVIII realizada por negras e negros e que enfrentou o racismo e a escravidão não é considerada como fundamental para os debates acerca das esferas fundamentais de proteção do ser humano.

Os séculos XIX e XX viram o fim da escravidão e sua proibição pelo direito internacional através da Convenção sobre a escravatura de 1926 e sua Convenção suplementar em 1956, no entanto os regimes coloniais se mantiveram incólumes em suas atrocidades contra corpos negros e indígenas. As ideologias de superioridade racial moldaram a ordem jurídica internacional e a Organização das Nações Unidas desde sua origem (BRADLEY, 2019). A ONU, mesmo provocada no momento da sua criação por intelectuais e movimentos sociais de vários países[1] decidiu não enfrentar o problema do racismo.

A Carta da ONU, apesar de afirmar sua atuação sem distinção de raça, sexo, língua ou religião (Arts. 1.3 e 13.1.b), não menciona o racismo e não discute escravidão, colonialismo ou apartheid. Tais discussões somente apareceram na década de 1960 diante do grande número de processos de independência de países na África.

Diante desse cenário político foram elaborados os dois primeiros instrumentos internacionais dedicados ao combate à discriminação racial: a Declaração para eliminação de todas as formas de discriminação racial, de 1963, e a ICERD – Convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de racismo, de 1965.

Apesar dos avanços normativos na esfera das Nações Unidas, nenhum dos documentos aborda a discriminação a partir da ótica do racismo em sua dimensão estrutural e constitutiva da lógica de desigualdade entre países do sul e do norte globais, principalmente em relação a pessoas racial e etnicamente subalternizadas.

Concordando com Anna Spain Bradley (2019), a ICERD falha ao não definir racismo e ao não avançar para outras formas de discriminação racial além do apartheid e da segregação racial, permitindo que os Estados se utilizem das suas disposições de maneira retórica para identificar a discriminação racial como um problema global sem agir para combater de forma efetiva a desigualdade racial e o racismo em seus territórios.

Somente em Durban, em 2001, que a gramática internacional incorporou o vocábulo racismo de maneira contundente[2], apesar da Declaração de Durban não possuir caráter vinculante e do grau de implementação das medidas do seu programa de ação e do programa de ação da Década Internacional para Pessoas Afrodescendentes (2015-2024) ser baixo.

Nesse contexto, os acontecimentos de 2020 colocam o direito internacional e a ONU em uma encruzilhada. Os protestos contra a violência policial e o extermínio da população negra que vêm acontecendo em todo o mundo trouxeram a discussão sobre o racismo para a agenda global de direitos humanos de maneira imprevista.

O debate travado no Conselho de Direitos Humanos em 17 de Junho sobre violações de direitos humanos inspiradas por raça mobilizou a comunidade internacional, provocando discursos duros e assertivos da Alta Comissária de Direitos Humanos da ONU, Michele Bachelet; da relatora especial das Nações Unidas sobre formas Contemporâneas de Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Relacionada, E. Tendayi Achiume; e até do Comitê para Eliminação da Discriminação Racial, que possui uma atuação bastante discreta e recuada em relação a tais debates.

A Resolução A/HRC/43/L.50 proposta por Burkina Faso em nome do grupo de Estados Africanos, com o apoio do Irã e da Palestina, trazia em si um potencial para redefinir o lugar da raça na agenda da ONU, condenando o racismo materializado pela violência policial nos Estados Unidos e em outros países e propondo a criação de uma Comissão Internacional Independente para investigar os fatos e circunstâncias relacionados com o racismo sistêmico, violações de direitos humanos contra africanos e pessoas afrodescendentes.

A Comissão teria como foco as recentes violações nos EUA e em outras partes do mundo contra africanos e afrodescendentes, especialmente aqueles incidentes que resultaram em morte, com o objetivo de levar os perpetradores à justiça. A sua criação poderia romper com o padrão internacional de estabelecimento de comissões de investigação/inquérito somente sobre violações cometidas em Estados do sul global[3].

Virar as lentes para o racismo praticado nos Estados Unidos e em outros Estados do norte global permitiria uma compreensão estrutural e sistêmica do racismo enquanto fundante da dinâmica da colonialidade, reproduzida até hoje nas relações internacionais.

Infelizmente a resolução foi desnaturada durante os debates no Conselho de Direitos Humanos e terminou com a proposta de elaboração de um relatório sobre racismo sistêmico pelo Alto Comissariado das Nações Unidas sobre Direitos Humanos com o auxílio de uma relatoria especial por ele escolhida, e sem qualquer menção aos Estados Unidos nas disposições operativas.

Apesar do fraco resultado, não é possível desconsiderar os avanços realizados, abrindo novamente a porta para a definição do racismo como violação de direitos humanos e para sua compreensão em sua dimensão estrutural.

Concordando com Agnes Callamard (2020), relatora especial da ONU sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias, já passou do tempo de promover uma refundação do sistema e do projeto dos direitos humanos, de modo a transformá-lo em uma ferramenta mais poderosa e eficaz na responsabilização de atores internacionalmente. E essa refundação necessariamente passa pelo reposicionamento do debate racial como central para a compreensão do direito internacional.

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Referências Bibliográficas

ACHIUME, E. Tendayi. Putting Racial Equality onto the Global Human Rights Agenda. SUR, Vol.15, n.28, p.141-150. 2018.

ANGHIE, Antony. Imperialism, Sovereignty and the Making of International Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.

BRADLEY, Anna Spain. Human Rights Racism. Harvard Human Rights Journal, Vol. 32. 2019.

CALLAMARD, Agnes. Learning from the US streets: a moment of reckoning. EJIL:Talk!, 19 jun. 2020. Disponível em: https://www.ejiltalk.org/learning-from-us-streets-a-moment-of-reckoning/. Acesso em 02 ago. 2020.

DU BOIS, W. E. B.. Worlds of color. Foreign Affairs, vol.3, n.3, p.423-444. 1925.

DU BOIS, W. E. B.. The Souls of Black Folk. Nova Iorque: Crest Books, 1961.

DU BOIS, W. E. B.; NAACP. Appeal to the World: A Statement on the Denial of Human Rights to Minorities in the Case of Citizens of Negro Descent in the United States of America and an Appeal to the United Nations for Redress. 1947. Disponível em: https://www.aclu.org/appeal-world. Acesso em: 12 ago. 2020.

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, N. 92/93. 1988a, p. 69-82.

HEGEL, G. W. F.. Lecciones sobre la Filosofía de la Historia Universal. Buenos Aires: Losada, 2010.

KAYAOGLU, Turan. Westphalian Eurocentrism in International Relations Theory. International Studies Review, Vol. 12, No. 2 (June 2010), pp. 193-217, 2010.

OSIANDER, A.. Sovereignty, International Relations and the Westphalian Myth. International Organization, v.55, n.2, p.251-287, 2001.

WALLERSTEIN, Immanuel. La creación del sistema mundial moderno. In: BERNARDO, L. Un mundo jamás imaginado. Bogotá: Editorial Santillana, 1992.

Notas

[1] Vide a carta enviada por W. E. B. Du Bois e pela NAACP à ONU em 1947 solicitando que a organização tratasse da negação de direitos humanos a negras e negros nos Estados Unidos e que abordasse o problema do racismo. Disponível em: <https://www.aclu.org/appeal-world>. Acesso em: 12 de agosto de 2020.

[2] A Declaração sobre Raça e Preconceito Racial, de 1978, adotada na 20ª Conferência Geral da UNESCO já havia utilizado o vocábulo racismo, mas não de maneira contundente e repetida como na Declaração de Durban.

[3] Com exceção do Estado de Israel.

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