Covid-19

O impacto do coronavírus em contratos paritários

Evento de força maior e a possibilidade de renegociação de dívidas com bancos

Crédito: Pixabay

Ainda não é possível saber exatamente qual será a extensão dos efeitos causados pela pandemia do coronavírus (COVID-19) na vida das pessoas, embora já se saiba da inafastável instauração, em nível não apenas nacional, de um cenário de crises: sanitária, econômica, e quiçá política.  Circunstâncias tão atípicas que, mesmo para fãs de séries televisivas distópicas, mais parecem um desagradável episódio de Black Mirror, têm potencial de causar enorme impacto também nos contratos e em seus efeitos.

A pandemia do coronavírus pode se caracterizar, em abstrato, como exemplo perfeito de evento de força maior, que, nas relações contratuais privadas e paritárias regidas pelo ordenamento do brasileiro[1], é causa legal de isenção de responsabilidade dos devedores por eventuais prejuízos havidos, salvo expressa responsabilização prevista pelas partes (art. 393 do CC – Código Civil). Em outras palavras, é possível e natural que quaisquer partes em um contrato privado em que a vulnerabilidade não é variável da relação decidam, no exercício de sua autonomia, quais riscos assumem ou distribuem entre si, inclusive quanto à possível ocorrência de fatos cujos efeitos não podem ser evitados ou impedidos. Sem prejuízo, no silêncio das partes sobre o tema, o direito brasileiro estabelece, para dar solução aos casos de dúvida, que o risco é em regra do credor[2].

Credor, entenda-se aqui, não importando o nome ou identificação que receber no instrumento contratual, como a pessoa que estiver em posição de receber alguma prestação.  As relações contratuais bilaterais (as mais frequentes no mercado) em sua dinâmica colocam a um só tempo as partes em posição de credora e devedora, com referência, respectivamente, ao que devem receber, ou entregar por força do ajustado.

Diante da pandemia COVID-19, as partes podem se encontrar em diferentes situações com relação às prestações pendentes. Em linhas gerais (sempre há exceções) são elas:

Em uma primeira hipótese, ainda que as partes se vejam diante de um evento totalmente imprevisto, seus efeitos podem não necessariamente afetar a relação contratual.  É o que ocorre na maior parte dos contratos com cumprimento imediato de obrigações.  Em igual situação estarão os contratos firmados após o surto de coronavírus e conhecimento de seus possíveis efeitos para o cumprimento de obrigações (como aumento dos prazos usualmente praticados), em que as partes não poderão se valer do argumento da força maior. Qualquer descumprimento nesta hipótese produzirá os efeitos legais (e eventualmente contratuais previstos) do inadimplemento.

A segunda situação possível é de haver a impossibilidade do cumprimento das obrigações assumidas em razão do evento de força maior. Por exemplo, porque em função do coronavírus, um fornecedor que esperava receber insumos da China para montagem dos produtos que comercializa, e que já se comprometeu em entregar em determinado prazo, se vê impedido de cumprir pontualmente a entrega. Esta hipótese se subdivide em duas: 1) apesar da impontualidade, ainda é possível o cumprimento, porém com atraso.  Trata-se de inadimplemento relativo, ou mora (art. 394 do CC); ou 2) há impontualidade e não mais possibilidade de entrega da prestação pelo devedor ou, se ainda houver, o cumprimento impontual não é mais útil para o credor.  Trata-se de inadimplemento absoluto.  A distinção é importante, pois só no segundo caso o credor pode contar com o remédio da resolução contratual, desvinculando-se do contrato que se tornou disfuncional (PÚ do art. 395 do CC).

Tanto na mora quanto no inadimplemento absoluto, via de regra, o devedor responde pelas perdas e danos que resultam do seu descumprimento.  Entretanto, se caracterizada a força maior, como com a COVID-19 pode ocorrer em alguns casos, a situação é dramaticamente distinta, pois terá o credor que arcar com os prejuízos resultantes do evento (o que não deve se confundir com desobrigação do devedor com relação ao que foi avençado[3]).

Quando isto não ocorre?  Em primeiro lugar, se o descumprimento já existia, indepedentemente do evento de força maior, isto é, se o devedor já estava em mora, ele responderá pelos prejuízos que causar.

É o que diz a primeira parte do artigo 399 do CC. Em segundo lugar, o argumento da força maior não poderá ser invocado pelo devedor para se eximir de sua responsabilidade contratual se as partes tiverem definido expressamente hipóteses de força maior em que o devedor responde.  Daí a importância de as partes estabelecerem adequadamente a alocação de riscos, que deverá ser respeitada por qualquer julgador, em sede judicial ou arbitral, em caso de litígio. Em terceiro lugar, se os prejuízos não decorrerem apenas do evento de força maior, a responsabilidade incidirá regularmente com relação à parcela de descumprimento não atribuível ao evento.

A terceira hipótese é a de ainda existir a possibilidade do cumprimento pelo devedor, mas com ônus muito aumentado para ele. Neste caso, o devedor pode ter assumido obrigação cujos custos de cumprimento conforme sua legítima expectativa eram previsíveis, todavia diante de fatos supervenientes se instaura situação nova, de desequilíbrio contratual.  Por exemplo, um fornecedor de máscaras hospitalares ou álcool gel, com contrato de longa duração para entrega sob demanda a uma clínica, no qual o preço foi fixado com base em custos praticados no mercado nos últimos anos, incluídos ajustes monetários, mas impactados pela escassez repentina de insumos para fabricação.  Nestes casos, sob certas circunstâncias, restritas, o devedor poderá invocar os remédios da resolução ou revisão por onerosidade excessiva, previstos nos arts. 478 e 479 do Código Civil.

Ressalve-se, em linha com a Lei 13.874/2019, que expressamente previu que a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada (art. 421-A, II, do CC), que se presume, em contratos paritários, que as partes assumiram os riscos que pretendiam conforme as informações de que dispunham ao tempo da contratação.  Princípios contratuais específicos podem ser invocados para, conforme o caso, autorizar o questionamento da validade ou dos efeitos da avença contratual, e suas consequências para as partes, como o da boa-fé (por exemplo, na hipótese do descumprimento, pelo credor, de algum dever de informar um aumento extraordinário na demanda de que já tinha conhecimento), ou da função social do contrato (por exemplo, na hipótese de o descumprimento ser justificado para priorização de atendimento a serviço de saúde que se encontre em situação de emergência).  Mas, em regra, vale o escrito.

Uma quarta hipótese é a do inadimplemento anterior ao termo, ou inadimplemento antecipado, na qual, embora a prestação ainda não seja exigível, o credor já preveja que o devedor não terá condições de cumprir perfeitamente o que assumiu. Inspirada no antecipated breach of contract da doutrina anglo-saxã, a teoria permite que o credor, diante de certas condições desconfiado do provável inadimplemento, tome medidas de segurança. A rigor, são duas as situações que se conectam com o inadimplemento antecipado: 1) se a prestação não está vencida, mas há grande probabilidade de descumprimento, o que há é um agravamento de risco, previsto no artigo 477 do CC, que exime o credor de cumprir a sua própria prestação, se não houver garantia de cumprimento pelo devedor.  Cabe, então, a exceção de inseguridade, um remédio menos drástico que o desfazimento do contrato, compatível com situação de incerteza; 2) se, apesar de a prestação não estar vencida, há certeza no inadimplemento, seja porque ele já foi declarado pelo devedor, ou porque o credor o infere pelas circunstâncias.  Se o descumprimento não provocar a perda do interesse útil, é caso de mora, e assim poderá ser tratado desde já. Se o descumprimento provoca a perda do interesse útil, é caso de inadimplemento absoluto, com a possibilidade, além dos efeitos da mora, da resolução, o efeito mais grave, que resulta na extinção do contrato.

Uma quinta hipótese, ainda, é a de a prestação ser possível, mas pela natureza das obrigações assumidas, ter havido perda de sua razão de existir, sua finalidade.  Por exemplo, um hospital particular que aluga determinado equipamento de terapia oncológica para período futuro próximo, em substituição ao seu próprio equipamento que ficará em manutenção.  Por conta do coronavírus, o serviço de saúde é destacado para atendimento de emergências respiratórias pelos próximos 90 dias, e antes mesmo de receber o equipamento alugado, o hospital deixa de ter a possibilidade de usá-lo. Esta hipótese não é expressamente prevista pela lei brasileira. Parte da doutrina a tem tratado com base na teoria da frustração do fim do contrato, que se toma emprestada do direito inglês. Sem adentrar em todos os requisitos (e críticas) possíveis, importa saber que para sua invocação a finalidade deve ser clara (porque expressamente consignada, ou facilmente depreendida dos termos do contrato).  Se a perda da finalidade se verificar, preenchidos certos requisitos, o contrato pode ser encerrado, desobrigando as partes.

Em todas as hipóteses, a disciplina jurídica efetivamente aplicável sempre se verificará caso a caso. Não apenas pela natureza do contrato e das obrigações assumidas, mas também pelo lugar e tempo de cumprimento da obrigação, pelo momento de sua assunção, a experiência das partes no segmento específico de mercado, e ainda, por eventuais outras relações contratuais que sejam preexistentes ou coexistentes e interfiram na execução.

É incontestável o entendimento de que a presente escalada de medidas restritivas ao trânsito de pessoas e de produtos decorrentes da pandemia COVID-19 impacta bastante a indústria e o comércio de produtos e serviços.  Mas não se pode invocar a pandemia, ou as medidas que se seguiram a ela, como razões de força maior para autorizar quaisquer descumprimentos.  Embora, sem dúvida, as circunstâncias da pandemia constituam fato necessário e com efeitos inevitáveis é preciso saber, em cada relação jurídica, se os eventos relacionados à COVID-19 efetivamente afetaram a capacidade de cumprimento das obrigações pelas partes. Saber se os fatos serão enquadráveis como evento de força maior, e quais os caminhos possíveis, depende da análise de cada caso em concreto.

Uma vez sendo de fato possível caracterizar a pandemia (ou fato dela decorrente) como evento que concretamente possa ser caracterizado como de força maior, é preciso saber se as partes dispuseram, e como, sobre este tipo de circunstância.  Não havendo qualquer previsão no contrato, a questão será regida pela norma legal, que protege o devedor da reclamação de danos, desde que a inadimplência não seja anterior ao surto, e também os danos se relacionem diretamente com o evento caracterizado como de força maior.

O ambiente atual é de bastante incerteza, com preocupação generalizada sobre as enormes repercussões nos fluxos de caixa e até mesmo solvabilidade dos agentes econômicos, tanto na indústria, quando no comércio, formal ou informal, não apenas mas especialmente para pessoas físicas e micro e pequenas empresas.

Neste sentido, os maiores bancos brasileiros, em linha com as orientações do Conselho Monetário Nacional que aprovou medidas para facilitar a renegociação de dívidas[4], já tomaram a iniciativa de possibilitar a prorrogação do recebimento de certos pagamentos, em responsável reação às últimas notícias, e também compatível com a legislação em vigor, que, de toda forma, já transfere o risco da força maior a eles, conforme acima explicado. Esta providência parece adequada do ponto de vista jurídico (justa), e também sensata do ponto de vista comercial (economicamente racional), na medida em que, embora para muitos devedores os valores devidos possam ser vultosos, para os credores as execuções forçadas poderão ser custosas em proporção às expectativas de recuperação dos créditos, (especialmente considerando o atual já bastante fragilizado momento econômico) e sem possibilidade de cobrança de perdas e danos.

Sem prejuízo de as medidas anunciadas se referirem especificamente a pessoas físicas e micro e pequenas empresas, quase sempre submetidas a regime jurídico próprio em relações com instituições financeiras, vale dizer, consumerista, cabe lembrar que também sociedades com estrutura mais robusta, ou partes em quaisquer relações paritárias, podem se valer das regras gerais previstas na legislação em vigor que prevêem a proteção do devedor quanto à responsabilidade por perdas e danos quando houver força maior, ou a distribuição dos riscos, e eventualmente a resolução ou a revisão de seus contratos, sob certas circunstâncias.

O que se sugere, por ora, é cautela, com o natural cumprimento de todas as obrigações possíveis, e a disponibilidade para a renegociação diante das impossibilidades (pelas próximas semanas, à distância, em atendimento a um dever de isolamento social que cabe a todos os cidadãos!)

 

————————–

[1] Contratos de consumo e de trabalho, em que presumida a vulnerabilidade de uma das partes na relação, se regem por normas específicas. Também contratos administrativos estão sujeitos a suas peculiaridades ante o interesse público subjacente.

[2] Diferentemente do previsto em outras jurisdições, como no Reino Unido, por exemplo, em que as partes têm que necessariamente prever em cláusula específica eventuais situações de exceção ao dever de cumprimento das obrigações, sob pena de o devedor continuar obrigado em sua integralidade, arcando com os prejuízos de qualquer descumprimento.

[3] As partes podem sempre, o que é fortemente recomendável, renegociar prazos, ou a redução (ou mesmo o cancelamento) de uma prestação pendente.  Ou o credor pode extingui-la por resolução, se configurado o inadimplemento absoluto, cabendo em consequência o abatimento no preço e a restituição dos valores já pagos que não tiverem contrapartida, sob pena de enriquecimento sem causa de quem receber vantagem sem justa razão (art. 884 do CC).  Lembre-se que a regra do art. 393 do CC afasta por força maior o efeito reparatório decorrente do descumprimento, mas não muda a disciplina dos efeitos liberatório e restitutório das obrigações.  Impõe-se cuidado para não confundir as categorias jurídicas e seus regimes próprios.

[4] https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-03/cmn-adota-medidas-para-apoiar-empresas-e-familias-contra-covid-19