Felipe Chiavone Bueno

Novamente, o canal de humor do YouTube Porta dos Fundos ocupa o epicentro das polêmicas de fim de ano. No ano passado, estreou o especial de natal “A Primeira Tentação de Cristo” na Netflix, que, valendo-se do humor, provocou reflexões a respeito do cristianismo.
À época, o filme foi pauta garantida nas confraternizações, ceias e jantares festivos. Esse ano não seria diferente. Ao lançar o novo filme “Teocracia em Vertigem”, que também usa o humor para abordar o tema, o grupo passou a receber duras críticas de grupos religiosos.
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Críticas fazem parte do dia-a-dia, mas há quem insinue que filmes como esses são atentatórios aos sentimentos religiosos e são potencialmente criminosos. Pessoalmente, entendo que não. O crime do artigo 208 do Código Penal<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> prevê a figura de “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa”.
Escarnecer de alguém é o mesmo que zombar, chacotear, debochar. O escárnio deve ser público. A conduta praticada no âmbito privado, sem chegar ao conhecimento de pessoas em geral, não configura o crime em questão. Exige-se a publicidade do ato. Além disso, é necessário que o deboche seja motivado por crença ou pelo exercício de função religiosa.
A leitura ansiosa desse tipo penal pode confundir o leitor e fazê-lo crer que, no caso do Porta dos Fundos, o crime estaria configurado, mas não é verdade. A conduta deve ser praticada contra pessoa determinada e não contra religiões ou grupos religiosos genericamente.
É fundamental, pois, que o deboche se dirija à pessoa específica que preencha o elemento descritivo “alguém”, não sendo possível tratar-se de um grupo de pessoas indeterminado. Daí que a chacota voltada aos cristãos em geral não configura o crime ou, por exemplo, se destinada a padres ou pastores indistintamente. A zombaria precisa ser formulada contra um crente ou um pastor específico. Não é o que acontece nos filmes, que se colocam diante de limites legalmente permitidos.
<blockquote class="jota-article__eye">Vale recordar que o Estado é laico e não laicista. Ele não tem sua própria ideologia religiosa e é sua função garantir que todos possam expressar seus valores e ideologias, individualmente, incluindo as opiniões contrárias às religiões dominantes.</blockquote>
Dito isso, o Estado não pode ser considerado laico se seus cidadãos não tiverem o direito de manifestar livremente suas opiniões sobre as religiões, valendo-se, por exemplo, do humor, da sátira ou da ironia.
Desde que não se atente contra a liberdade de crença alheia, não há por que restringir a crítica religiosa, pois, ao mesmo tempo em que protege a “liberdade de consciência e de crença”, a Constituição da República também protege a “livre manifestação do pensamento”.
Ao longo da história, o humor, a sátira e a ironia foram usadas como ferramentas para criticar alguns dogmas religiosos devido ao modo como estes impunham verdades universais. Era preciso criatividade.
Hoje, vemos que esses conteúdos continuam incomodando bases religiosas sólidas ao dedurar lacunas entre a racionalidade de uma sociedade laica e o potente discurso religioso que, vez ou outra, não se compatibiliza com os limites da razão e do respeito mútuo.
Assim, as críticas humorísticas dirigidas às religiões são compatíveis com as liberdades individuais. É um exagero reputá-las criminosas. Cabe a cada um decidir o que é melhor para si, especialmente em um mundo com vários deuses e que ninguém possui verdades absolutas.
Filmes dessa matiz são responsáveis por contrapor visões preestabelecidas, incluindo aquelas que professam que a sua verdade deve se impor a todos os homens e que a tradição religiosa necessita ser preservada em benefício de um amálgama moral e social.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo. Art. 208 - Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso: Pena - detenção, de um mês a um ano, ou multa. Parágrafo único - Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência.

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JOTA

Estado não pode ser considerado laico se seus cidadãos não tiverem o direito de manifestar livremente suas opiniões