Pandemia

O fenômeno da inconstitucionalidade circunstancial

É grande a probabilidade de inconstitucionalidade circunstancial de atos normativos existentes e a serem aprovados

Plenário do TSE. Foto: Carlos Moura/Ascom/TSE

Circunstâncias excepcionais que ameaçam populações inteiras reclamam medidas emergenciais que podem se mostrar incompatíveis com Constituições nacionais. Em cenários de normalidade, tais medidas provavelmente não seriam aceitáveis ou mesmo consideradas por autoridades e governos. Nos últimos meses, inúmeros países passaram a tomar medidas extraordinárias para retardar a pandemia provocada pela Covid-19. Muitas dessas medidas provavelmente violam direitos entrincheirados em constituições.[1]

O curioso é que a população de alguns países tem aceitado tais medidas. Evidências nesse sentido vêm de uma pesquisa recente e reveladora. Para descobrir como os americanos avaliam o dilema entre preservar as liberdades civis e impedir a propagação do coronavírus, alguns notáveis professores conduziram uma pesquisa exatamente quando os governos estaduais e federal estavam começando a implementar suas políticas mais restritivas de combate à Covid-19.

O resultado da pesquisa realizada com uma amostragem representativa foi surpreendente. Ele revelou uma notável disposição da população americana em tolerar violações aos direitos civis, a fim de enfrentar a pandemia que atinge o país.[2]

Portanto, situações excepcionais, como uma pandemia, também podem atingir governos e constituições, provocando ameaças à saúde de sistemas democráticos e constitucionais estáveis. Afinal, governos antes sob controle podem desencarrilhar para autocracias e novas normas constitucionais podem desconfigurar a ordem atual, enfraquecendo direitos fundamentais.

Mas normas infraconstitucionais pré-existentes também podem ser contaminadas, gerando um fenômeno pouco explorado em doutrina. É desse fenômeno que trataremos a seguir, não sem antes falarmos brevemente de questões associadas ao direito constitucional intertemporal, que servirão de contraste à ideia que pretendemos expor aqui.

Durante muito tempo, o fenômeno da inconstitucionalidade foi disciplinado por duas teorias distintas. Segundo a teoria da nulidade, o ato normativo inconstitucional tem sua validade comprometida ab initio, o que significa dizer que o ato já nasce viciado, sendo nulo.

Em contrapartida, para a teoria da anulabilidade, a norma em questão deve ser considerada constitucional até que um órgão competente decida pela sua inconstitucionalidade. Portanto, para essa segunda teoria, a norma inconstitucional é anulável, razão pela qual se admite a produção de efeitos durante a sua vigência. Essa última teoria, entretanto, não contou com a adesão de muitas ordens constitucionais.

Como se sabe, o direito brasileiro consagra, como regra, a teoria da nulidade do ato inconstitucional. Contudo, a doutrina constitucional majoritária, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e, tempos depois, a legislação[3] passaram a reconhecer a necessidade de se modular os efeitos temporais da decisão que declara a inconstitucionalidade de atos normativos, relativizando a teoria da nulidade em nome de outros valores constitucionais, como boa-fé, segurança jurídica e interesse social.

Ao lado dessas duas teorias, há outras ideias também associadas, como as de inconstitucionalidade e constitucionalidade supervenientes. No primeiro caso, o fenômeno se apresenta quando um ato normativo originariamente compatível com Constituição se torna com ela incompatível após a ordem constitucional sofrer alguma alteração, seja por emenda seja por mutação constitucional.

Entretanto, de longa data, o STF entende que essa situação não é de inconstitucionalidade, mas de revogação.[4] A segunda ideia reflete uma possibilidade oposta. Uma lei antes inconstitucional pode vir a se tornar compatível com a constituição após esta ser alterada. Trata-se da chamada constitucionalização superveniente, fenômeno que o STF não reconhece.[5]

O fenômeno que tratamos aqui não se confunde com nenhuma dessas ideias e teorias. A inconstitucionalidade para qualquer uma delas independe de circunstâncias momentâneas vividas pela sociedade. Seja na normalidade, seja na excepcionalidade, a inconstitucionalidade decorrerá da incompatibilidade com a Constituição, e apenas isso.

Em alguns casos, a inconstitucionalidade dependerá da intepretação emprestada à norma por órgão judiciais, autoridades políticas e pela administração pública. Mas essa hipótese também não está atrelada a uma circunstância excepcional por que passa a sociedade.

Como vimos acima, não há dúvidas de que situações excepcionais podem dar espaço a tomada de medidas inconstitucionais. As medidas tomadas podem ser incompatíveis com a constituição apenas em razão da circunstância. Isso significa que a mesma medida seria, ao menos em tese, constitucional em situação de normalidade pública.

Entretanto, a omissão na tomada de medidas também pode fazer com que legislações pré-existentes sofram uma inconstitucionalidade em tais situações. Em ambos os casos, estaremos diante de uma inconstitucionalidade circunstancial.

Esse fenômeno consiste no resultado provocado por uma situação excepcional sobre atos normativos novos que, em outras situações, poderiam ser constitucionais. Mas isso também pode ocorrer com atos normativos pré-existentes que antes se revestiam de presunção de constitucionalidade.

Ou seja, uma situação excepcional pode conduzir uma legislação a um estado de inconstitucionalidade provocado não apenas por seu conteúdo e significado, mas pelas circunstâncias e dramas momentâneos vividos pela sociedade.

Em algumas circunstâncias, decisões governamentais precisam ser não apenas rápidas e assertivas, mas também precisas e igualitárias. A depender da situação, erros e demoras podem ser catastróficos. Por essa razão, a inconstitucionalidade circunstancial dependerá também da velocidade do processo de decisão em situações de excepcionalidade.

Mas tanto a demora como a própria medida, que pode se revelar insuficiente e desproporcional, podem empurrar a lei ou o ato normativo na direção de um estado indesejável de inconstitucionalidade, ainda que temporal.

Como se percebe, o aspecto singular desse fenômeno está no fato de ele depender de uma circunstância excepcional. Obviamente, não é qualquer circunstância. É preciso que ela seja grave o suficiente para abalar nações inteiras ou parte relevante delas.

Além disso, ela precisa ser não apenas excepcional, mas também inesperada ou inevitável. Desastres naturais, a erupção de um vulcão, um tsunami, um terremoto e uma pandemia são os mais claros exemplos. Mas desastres provocados, como os ocorridos em Mariana e Brumadinho, também são representativos. Evidentemente, guerras também podem provocar esse fenômeno, ainda que possam ser relativamente previsíveis.

Observe-se que, no cerne desse fenômeno, há uma constatação aparentemente confusa, mas real: uma lei pode ser inconstitucional em razão de sua incompatibilidade com a realidade vivida em determinado momento, o que faz com que ela não se amolde ou passe a não mais se amoldar às exigências constitucionais, ainda que momentaneamente.

Isso significa que, superada a situação, uma norma pré-existente poderá retomar sua compatibilidade com a Constituição, mas também que uma norma aprovada durante o estado de excepcionalidade poderá passar a ser compatível com ela.

O fenômeno da inconstitucionalidade circunstancial enfatiza não só ideia de que a Constituição está em vigor, mas também a de que ela está atenta às circunstâncias em seu entorno. Uma vez unidas essas duas ideias, é possível afirmar que a Constituição não é só transformada de acordo com as necessidades de seu tempo, mas também pela situação excepcional vivida por seus destinatários. É em razão dessa relevante plasticidade temporal e circunstancial que podemos falar de uma genuína “Constituição viva”.[6]

Foi exatamente em razão de inúmeros desafios reais e dificuldades concretas e circunstanciais que vários tribunais ao redor do mundo se propuseram a agir pragmaticamente e passaram a proferir decisões ou sentenças intermediárias.[7]

Com o passar do tempo, essas verdadeiras técnicas de decisão empregadas por tribunais de grande reputação tornaram obsoleta a lógica binária segundo a qual esses órgãos só poderia declarar a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de uma norma. E, para o nosso bem, nenhuma dessas técnicas é desconhecida do Supremo Tribunal Federal, que as aplica rotineiramente em suas decisões.

É inegável que órgãos judiciais, principalmente os Tribunais Constitucionais e as Supremas Cortes, têm um papel relevante em situações de excepcionalidade. E isso não apenas diante de atos inconstitucionais, mas também nas hipóteses de omissão e lentidão dos governos em tomar as medidas necessárias para o enfrentamento de crises circunstanciais e excepcionais. Afinal, a depender da situação, a lentidão também pode representar ameaça de lesão ou mesmo violação concreta a direitos constitucionais.

Portanto, tendo em vista que o papel dos Tribunais Constitucionais e Supremas Cortes não mais se resume a retirar dos sistemas normas inconstitucionais, mas também tentar preservar ao máximo a legislação produzida pelos poderes representativas – dado, em especial, o caráter contramajoritário de que se revestem – podem esses tribunais também atuar para, em situações de excepcionalidade, salvar uma legislação cuja inconstitucionalidade seja momentânea, e não permanente.

O fenômeno que acabamos de descrever se mostrou presente em três casos concretos que os autores deste artigo levaram ao Supremo Tribunal recentemente em nome de Partidos Políticos.

Na ADI 6.359, proposta pelo partido Progressistas, busca-se a declaração de inconstitucionalidade circunstancial e progressiva do conjunto normativo que trata do prazo para filiação partidária, ante os potenciais impactos nas Eleições de 2020 decorrentes da continuidade do cenário de calamidade ocasionado pela pandemia de Covid-19.

Como sustentamos, diante das atuais e excepcionais circunstâncias e das incertezas quanto à superação da pandemia que atingiu e assola o país, o conjunto normativo impugnado encontrava-se em inegável transição para sua inconstitucionalidade, traduzindo-se em evidente estado de “lei ainda constitucional”.

A questão é problemática por inúmeras razões apontadas na inicial.[8] Mas, infelizmente, a Min. Rosa Weber, relatora da ação, ainda que reconhecendo o fenômeno da inconstitucionalidade circunstancial que sustentamos, indeferiu a medida cautelar requerida, mantendo o prazo de filiação partidária.[9]

Com todo o respeito devido à Ministra, não concordamos com sua decisão. O risco de as eleições serem prejudicadas não é ilusório. Até mesmo o próximo Presidente do Tribunal Superior Eleitoral já assume a provável necessidade de se adiar as eleições para dezembro.[10]

Ao não conceder a medida cautelar, a relatora deixou o conjunto normativo impugnado transitar para um estado de inconstitucionalidade. Portanto, pensamos que já não é mais possível afirmar que estamos diante de uma “lei ainda constitucional”, pelo menos enquanto perdurar a circunstância que ensejou sua inconstitucionalidade.

A ADI 6.371, ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores, foi proposta em face da expressão “conforme disposto em regulamento” prevista no art. 20, XVI, da Lei nº 8.036/1990, que dispõe sobre a movimentação de valores do FGTS em casos decretação de calamidade pública pelo governo federal.

Na inicial[11], sustentamos que no atual estado de calamidade pública formalmente decretado, condicionar a movimentação dos recursos do FGTS à regulamentação, viola inúmeros preceitos constitucionais e que a lentidão do governo somadas às medidas econômicas e de isolamento geram um impacto desproporcional e representam uma evidente proteção deficiente em relação aos trabalhadores, especialmente os de menor renda. A ação foi distribuída ao Min. Gilmar Mendes e, até o momento em que finalizamos esse artigo, o pedido de medida cautelar ainda se encontrava em apreciação.

Por meio da ADI 6.379, ajuizada pelo Partido Socialista Brasileiro, pedimos que sejam declaradas inconstitucionais as expressões “a partir de 15 de junho de 2020 e até 31 de dezembro de 2020” e “até o limite de R$ 1.045,00 (mil e quarenta e cinco reais) por trabalhador”, ambas do caput do art. 6º, da Medida Provisória nº 946. Na petição inicial[12], sustentamos que, diante do atual cenário, a liberação do saque das contas do FGTS deveria ser feita de forma imediata, mas prioritariamente, àqueles que recebem até dois salários mínimos e, acima dessa renda, àqueles com idade acima de 60 anos, gestantes e portadores de doenças crônicas, até o limite disposto no art. 4º do Decreto nº 5.113, de 22 de junho de 2004, podendo o valor ser parcelado pelo governo. Por prevenção, essa ação foi distribuída para o Min. Gilmar Mendes que está analisando o pedido de medida cautelar.

Note-se que os atos e trechos normativos impugnados nessas três ações tiveram sua constitucionalidade questionada não apenas em razão de seu conteúdo, que em situação de normalidade se presumiria constitucional. Na verdade, como sustentamos, a incompatibilidade dessas normas e trechos se revelava nítida diante do atual estado de calamidade, que aumentou as exigências constitucionais, sobretudo no que diz respeito aos direitos individuais e sociais.

Pandemias, portanto, podem trazer tempos de dor, mas também de importantes mudanças, tanto em comportamentos pessoais, sociais, sistemas de saúde, em governos e em posturas de órgãos judiciais, especialmente dos Tribunais Constitucionais e Supremas Cortes, que não podem nem devem ficar alheios ao fenômeno que acabamos de descrever. Em situações de excepcionalidades, tribunais como esses não podem ficar sentados na sala de espera da História. É em situações de pressão e em circunstâncias não familiares que essas Cortes têm a chance de aprimorar suas práticas e aptidões, capacitando-as a desafios futuros.

Vivemos uma situação excepcional que tem exigido dos Poderes constituídos soluções antes não pensadas. Decisões recentes, tomadas já na vigência do estado de calamidade, evidenciam esse cenário, no qual os Ministros do Supremo Tribunal Federal têm tomado decisões assertivas e importantes para o funcionamento do Estado e garantia de direitos constitucionais.

Desafios maiores podem estar nos aguardando e não sabemos o que virá a seguir. A única certeza é a de que devemos permanecer vigilantes. Afinal, é grande a probabilidade de inconstitucionalidades circunstanciais tanto de atos normativos já existentes como de atos a serem aprovados. E, diante desse cenário, só poderemos recorrer às instituições, sejam elas legislativas, administrativas ou judiciais.

Por fim, é sensato dar-se conta de que, durante períodos de pandemias, dos sistemas de justiça podem ser exigidos esforços comparáveis aos dos sistemas de saúde. Como guardião da Constituição, pensamos que o Supremo Tribunal Federal está à altura dessa desafiadora tarefa.

 


[1] Por exemplo, o longo lockdown acompanhado de sanções penais imposto na Itália provavelmente viola disposições constitucionais daquele país. A decretação de regulamentos de emergência pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, sem consulta ao Parlamento nacional, também representa uma possível violação às leis constitucionais de Israel. Na Rússia, o governo aumentou o uso da tecnologia para a vigilância da população e foram aprovadas normas severas contra notícias falsas sobre o vírus, que podem representar um aumento da perseguição aos meios independentes de comunicação e, assim, uma violação à liberdade de imprensa. Na Hungria, a concessão de poderes quase ilimitados ao Presidente Viktor Orbán talvez seja, até o momento, o exemplar mais significativo desse conjunto de decisões provavelmente inconstitucionais tomadas mundo afora como medidas de enfrentamento da pandemia.

[2] Cf. Red and Blue America Agree That Now Is the Time to Violate the Constitution: https://www.theatlantic.com/ideas/archive/2020/03/coronavirus-america-constitution/608665/?utm_source=twitter&utm_term=2020-03-25T09%253A30%253A17&utm_medium=social&utm_content=edit-promo&utm_campaign=the-atlantic

[3] Cf. Art. 27 da Lei nº 9.868/1999 e art. 11 da Lei nº 9.882/1999.

[4] Cf, em especial, ADC 2 (Rel. Min. Paulo Brossard, j. em 06.02.1992, DJ 21.11.1997).

[5] Cf., entre outros, RE 346.084 (Rel. p/ o acórdão Min. Marco Aurélio, j. em 09.11.2005, DJ 01.09.2006)

[6] Em sentido semelhante, cf., entre outros, STRAUSS, David A. The Living Constitution. New York: Oxford University Press, 2010; KAVANAGH, Aileen. The Idea of Living Constitution. Canadian Journal of Law & Jurisprudence, vol. 16, n. 1, 2003, p. 55-89.

[7] Cf., em especial, MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 1.454 e ss.

[8]http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=5884990

[9] http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15342827059&ext=.pdf

[10]https://www.jota.info/stf/do-supremo/em-caso-de-adiamento-de-eleicoes-barroso-sugere-dezembro-como-nova-data-06042020

[11]http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=5888266

[12]http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=5890830

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