Pandemia

O federalismo brasileiro no contexto de crise: o que muda com o PLP nº 39/2020

Reajuste de forças no federalismo brasileiro deve ser pautado pela responsabilidade na gestão fiscal

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Crédito: Wikimedia Commons

No último dia 6 de maio, após retornar da Câmara dos Deputados ao Senado Federal, enfim foi aprovado o Projeto de Lei Complementar nº 39, de 2020, que estabelece o “Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19)”.

O texto, que agora vai à sanção presidencial[1], representa novo auxílio da União a estados, Distrito Federal e municípios, motivado pelo contexto de calamidade pública já reconhecido por meio do Decreto Legislativo nº 6, de 2020.

O PLP nº 39/2020 fundamenta-se em três iniciativas principais: 1) a suspensão dos pagamentos das dívidas contratadas entre União, de um lado, e Estados e Distrito Federal, de outro, firmadas com base na Lei nº 9.496/1997 e na Medida Provisória nº 2.192-70/2001; assim como das dívidas de Municípios com a União, amparadas na Medida Provisória nº 2.185-35/2001 e na Lei nº 13.485/2017; 2) a reestruturação de operações de crédito interno e externo dos entes subnacionais junto ao sistema financeiro; e 3) o auxílio direto da União a Estados, Distrito Federal e Municípios mediante repasse de recursos em 2020.

Sobre a primeira iniciativa, qual seja a suspensão de pagamento das dívidas, o art. 2º do PLP prevê que, de 1º de março a 31 de dezembro deste ano, a União ficará impossibilitada de executar as garantias contratuais.

O § 1º do dispositivo enuncia que os valores não pagos no período deverão ser utilizados “preferencialmente em ações de enfrentamento da calamidade pública decorrente da pandemia da Covid-19[2], sendo apartados e incorporados aos respectivos saldos devedores apenas em 1º de janeiro de 2022, para pagamento pelo prazo remanescente de amortização dos ajustes.

Assim, um primeiro ponto a ser observado é que não haverá ampliação do prazo de pagamento, o que evita mais uma postergação do endividamento entre entes federativos.

Sobre o tema, recorda-se que, com a Lei Complementar nº 156/2016, os estados que aderiram ao termo aditivo previsto em seu art. 1º obtiveram prazo adicional de até duzentos e quarenta meses para o pagamento das dívidas refinanciadas.

Por certo, evitar a perpetuação dos vínculos de dívida caminha tanto na direção da autonomia das unidades federadas, como da própria Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 101/2000), que, em seu art. 35, veda operações de crédito entre entes federativos.

Outro ponto substancial do PLP está no seu art. 3º, que excepciona, durante o estado de calamidade pública decretado para o enfrentamento da pandemia, o atendimento às condições e vedações para renúncia de receita de que trata o art. 14 e para a criação ou aumento de despesa obrigatória de caráter continuado previstas no art. 17, ambos da LRF.

No período, também estará dispensada a necessidade de que, para ações governamentais que acarretem aumento de despesa, se declare a existência de adequação orçamentária e financeira com a LOA e compatibilidade com o PPA e com a LDO (art. 16, caput, II, da LRF).

Pelo texto do PLP, ficam igualmente afastadas no período de calamidade regras referentes a limites e condições para a realização e o recebimento de transferências voluntárias.

Nesse aspecto, ressalva importante do projeto legislativo é a contida no § 1º de seu art. 3º, que restringe o afastamento das citadas regras aos atos de gestão orçamentária e financeira necessários ao atendimento do “Programa Federativo” ou de convênios vigentes durante o período de exceção, não eximindo os gestores das obrigações de transparência, controle e fiscalização, deixando margem, por exemplo, para a atuação oportuna dos Tribunais de Contas.

“A esse mesmo respeito, lembra-se que, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.357/DF, o Ministro Alexandre de Moraes concedeu medida cautelar para conferir interpretação conforme a Constituição “aos artigos 14, 16, 17 e 24 da Lei de Responsabilidade Fiscal e 114, caput, in fine e § 14, da Lei de Diretrizes Orçamentárias/2020”, a fim de, “durante a emergência em Saúde Pública de importância nacional e o estado de calamidade pública decorrente de Covid-19, afastar a exigência de demonstração de adequação e compensação orçamentárias em relação à criação/expansão de programas públicos destinados ao enfrentamento do contexto de calamidade gerado pela disseminação de Covid-19”. Embora na sessão plenária do último dia 13 de maio a ADI tenha sido extinta por perda superveniente do objeto, haja vista a promulgação da Emenda Constitucional nº 106/2020, que instituiu regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para enfrentamento da pandemia (conhecido como “Orçamento de Guerra’), houve o referendo da medida liminar pela Corte.”

Já quanto à segunda iniciativa, o art. 4º do PLP permite a realização de aditamentos contratuais que suspendam os pagamentos devidos neste ano de operações de crédito interno e externo celebradas pelos estados, Distrito Federal e municípios com o sistema financeiro e instituições multilaterais de crédito, possibilitando que, no caso de operações que contem com garantia da União, seja ela mantida.

Caso a renegociação tenha sido inviabilizada por culpa da instituição credora, a União, nos termos do § 6º, ficará impedida de executar as garantias e contragarantias dessas dívidas durante o exercício financeiro de 2020.

Esse é, desde já, um ponto que carecerá de certa cautela interpretativa caso venha a ser sancionado, sobretudo no que toca à abrangência da expressão “execução de garantias” por parte da União, notadamente em contratos externos avalizados pelo ente central.

Isso porque, da forma como redigido o dispositivo, poderá haver dúvidas se, com o inadimplemento dos entes subnacionais, estaria ou não a União, por força de lei interna, dispensada de cumprir compromissos pactuados com entidades externas, como a honra de aval.

Por sua vez, representando a terceira iniciativa legal, o artigo 5º do PLP disciplina o auxílio financeiro direto aos estados, Distrito Federal e municípios, prevendo o repasse de recursos, em quatro parcelas mensais e iguais em 2020, da ordem de R$ 60 bilhões para aplicação em ações de combate à Covid-19 e mitigação de seus efeitos econômicos, sendo que R$ 10 bilhões serão destinados exclusivamente à saúde e à assistência social, dos quais R$ 7 bilhões ficarão a cargo dos estados – usando-se a taxa de incidência divulgada pelo Ministério da Saúde e os dados populacionais como parâmetros de distribuição – e R$ 3 bilhões dos municípios, cujo rateio ficará por conta apenas do tamanho de suas populações.

Os demais R$ 50 bilhões serão divididos de modo que R$ 30 bilhões fiquem com os estados – na forma do anexo I do PLP – e R$ 20 bilhões com os Municípios, seguindo a proporção destinada aos Estados no anexo I do projeto e os respectivos números de habitantes.

Aliás, elemento central dessa equação federativa de crise está presente no § 7º do art. 5º, que dispõe, como condição para o recebimento das quantias, que os entes subnacionais renunciem ao direito sobre o qual se fundam ações ajuizadas em face da União após 20 de março deste ano e que tenham como causa de pedir, direta ou indiretamente, a pandemia da Covid-19.

O dispositivo, à semelhança do que já se fez nas Leis Complementares nº 156/2016 (art. 1º, § 8º, e art. 12-A, § 7º) e nº 159/2017 (art. 3º, § 3º), representa uma efetiva ponderação do Parlamento, a desincentivar a crescente judicialização das relações financeiras intergovernamentais, evitando que estados, Distrito Federal e municípios, mesmo diante de acordos políticos construídos e firmados no Congresso Nacional, se valham de ações judiciais para lograr obter verdadeiros “regimes híbridos[3] por meio de decisões do Poder Judiciário.

Por outro lado, o art. 7º do PLP nº 39/2020 propõe alterar, de modo permanente, o art. 21 da LRF, para restringir a prática de atos que resultem em aumento de despesa com pessoal e que prevejam parcelas a serem implementadas em períodos posteriores ao final do mandato do titular de Poder ou órgão[4], e o art. 65 da mesma lei, que trata da decretação do estado de calamidade pública, gerando maiores flexibilizações de seu regime jurídico, para, por exemplo, dispensar limites, condições e demais restrições aplicáveis aos entes federados, bem como sua verificação, na contratação e aditamento de operações de crédito; concessão de garantias; contratação entre entes da Federação; e recebimento de transferências voluntárias.

Por fim, o art. 8º, objeto de debates mais intensos nos últimos dias, estabelece uma série de vedações relacionadas ao aumento de despesas obrigatórias até 31 de dezembro de 2021.

Entre as principais, citam-se  a impossibilidade de aumentos ou reajustes a membros de Poder ou de órgão, servidores e empregados públicos, à exceção de algumas categorias; as vedações à criação de cargos e alteração de estrutura de carreira que impliquem aumento de despesa; à contratação de pessoal, ressalvadas as reposições decorrentes de vacâncias de cargos efetivos ou vitalícios; à criação de despesa obrigatória de caráter continuado sem medida de prévia compensação e ao reajuste de despesa obrigatória acima da inflação (IPCA), entre outros.

Dessa forma, com o Projeto de Lei Complementar nº 39, de 2020, motivado pela crise econômica e sanitária decorrente da atual pandemia, está-se diante novamente de socorro federal às contas públicas estaduais e municipais.

O que se espera, desta vez, é que a medida, a título de representar um reajuste de forças no federalismo brasileiro, possa ser pautada pela responsabilidade na gestão fiscal, que é ferramenta para a concretização intertemporal de direitos fundamentais.

Afinal, nas palavras de Stephen Holmes e Cass R. Sunstein, “a confiança numa estabilidade de longo prazo é em parte um produto da imposição confiável das leis, ou seja, de uma ação estatal vigorosa e decisiva[5]. Que, nesse estado de excepcionalidades, possa ter sido a melhor saída. Aguardemos a sanção (ou os vetos).

 


[1] O prazo para sanção se encerra no dia 27 de maio de 2020.

[2] Interessante notar que o § 5º do art. 2º do PLP nº 39/2020 indica a necessidade dos entes subnacionais demonstrarem e darem publicidade à aplicação dos recursos, evidenciando a correlação entre as ações desenvolvidas e os recursos não pagos à União, sem prejuízo da supervisão dos órgãos de controle competentes.

[3] Sobre a judicialização das crises fiscais dos Estados brasileiros e o papel do Supremo Tribunal Federal, ver: ECHEVERRIA, Andrea de Quadros Dantas; RIBEIRO, Gustavo Ferreira. O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL COMO ÁRBITRO OU JOGADOR? AS CRISES FISCAIS DOS ESTADOS BRASILEIROS E O JOGO DO RESGATE. REI – REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, [S.l.], v. 4, n. 2, p. 642-671, dez. 2018. ISSN 2447-5467. Disponível em: <https://www.estudosinstitucionais.com/REI/article/view/249>. Acesso em: 09 de maio de 2020. doi:https://doi.org/10.21783/rei.v4i2.249.

[4] Foi o caso, por exemplo, da Lei nº 13.464/2017 no âmbito do funcionalismo público federal.

[5] HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R.. O custo dos direitos: por que a liberdade depende dos impostos. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2019. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. ePub.

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